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3. O PLANEJAMENTO E OS PLANOS URBANÍSTICOS

3.5 Planejamento urbano e valoração principiológica da Constituição Federal

Os modelos normativos de planejamento urbano evoluem até chegar ao proposto pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, com as feições ditadas pelas características do Estado Democrático de Direito.

Assim, no modelo de planejamento urbano anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, por falta de melhor determinação, as normas urbanas podiam ser realizadas por qualquer ente federado, independentemente de diretrizes constitucionais, tendo como referência a legislação ordinária e, em muitos casos, com ela conflitante.114

112 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 387.

113 Segundo Adílson Dallari os planos setoriais referem-se “a áreas específicas de atuação, podendo ter maior ou

menor amplitude (por exemplo: saneamento básico ou coleta e disposição do lixo, educação ou ensino básico, saúde ou atendimento de emergência etc.)” (Instrumentos da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 77).

114 Apesar disso, cumpre esclarecer que antes da Constituição de 1988 e da promulgação do Estatuto da Cidade,

muitas cidades brasileiras possuíam planos diretores e legislação urbanística tecnicamente sofisticados, das quais um exemplo internacionalmente reconhecido é o da cidade de Brasília (inaugurada em 1960).

Neste contexto de liberdade normativa, os planos diretores municipais eram, em geral, documentos técnicos elaborados a partir da decisão unilateral da Administração municipal e com orientação metodológica dos órgãos federais.

No modelo pré-constitucional de decisão, os planos urbanísticos em sua grande maioria constituíam documentos “técnico-especializados”, fundados no zoneamento e no uso do solo, realizados por engenheiros e/ou arquitetos contratados ou funcionários públicos, a partir de diretrizes dos órgãos federais e aprovados pelo poder legislativo municipal, independentemente de participação popular.115

A inclusão de um capítulo próprio dedicado à política urbana, no título da Ordem Econômica e Financeira, foi uma das novidades da Constituição de 1988. Assim, a Constituição Federal ao descrever no seu artigo 182 e parágrafos o plano diretor como elemento fundamental da ordenação do território e como instrumento básico do desenvolvimento urbano informa que, em seu conteúdo, incluem-se, pelo menos, dois princípios: o da função social da propriedade urbana e o da função social da cidade.

Estes, ao lado dos princípios que fundamentam a existência do Estado brasileiro, conferiram uma nova dimensão jurídica ao planejamento urbano, contextualizando- o na perspectiva do constitucionalismo contemporâneo na qual também os direitos fundamentais, os objetivos a serem alcançados pelo Estado e a sustentabilidade ambiental alcançam especial relevo.116

A mudança de paradigmas no âmago da Constituição que propicia a centralidade de alguns princípios no ordenamento é analisada com nitidez por Carlos Ayres Brito. Vejamos:

(...) o fato é que, à sua dignidade formal a Constituição adicionou uma dignidade material. E assim recamada de princípios que são valores dignificantes de todo o Direito, é que ela passou a ocupar a centralidade do Ordenamento Jurídico, tanto quanto os princípios passaram a ocupar a centralidade da Constituição. Estrada de

115 OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano, p. 101.

116 Para Eros Grau “a falta de reflexão tem levado alguns analistas do pensamento da doutrina a confundir

valores (teleológicos) com princípios (deontológicos), colocando-se à deriva diante de uma mal-digerida apreensão da exposição dworkiniana, que em rigor exclui os princípios do âmbito normativo; cumpre observarmos que os conflitos e as oposições entre princípios são conflitos e oposições entre normas (...)” (Ensaio

mão dupla, pois o fato é que o reconhecimento da força normativa dos princípios coincide com o reconhecimento da força normativa da Constituição, num crescendo que chega à superforça de ambas as categorias.117

A República Federativa do Brasil está atualmente estruturada em cinco fundamentos que indicam a forma correta de interpretar toda a aplicação do direito positivo brasileiro em vigor.118 Ou seja, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, a República Federativa do Brasil, a partir de 1988, veio a se constituir em Estado Democrático de Direito, adotando como alicerce a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, assim como o pluralismo político (art. 1º, I a V).

Do mesmo modo, a República Federativa do Brasil, ao organizar seu sistema jurídico, a partir de 1988, pretendeu alcançar de maneira deliberada alguns propósitos que foram claramente estabelecidos no art. 3º, I a IV.

Dentre suas finalidades nossa Lei Fundamental deixou clara a necessidade de erradicar a pobreza assim como a marginalização, destacando por outro lado o objetivo declarado de procurar reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III).119

Por outro lado, a República Federativa do Brasil reconhece que, por força do fundamento constitucional descrito no art. 1º, IV, necessita adaptar seu direito positivo, vinculado ao fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), para reduzir as desigualdades sociais e regionais do Brasil”.

117 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 181.

118 Como anota Juarez de Freitas, a interpretação jurídica há de reafirmar os fins, os princípios e os objetivos do

sistema posto, partindo-se do ápice constitucional, os quais precisam rumar para a concretização plena, exemplificativamente, onde a ordem econômica esteja sujeita aos ditames teleológicos e racionais da justiça social, para a concretização de uma sociedade livre, justa e solidária (FREITAS, Juarez. A interpretação

sistemática do direito, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 137).

119 Trata-se de exemplo típico de “norma-objetivo”, operando a definição dos fins primordiais do Estado

brasileiro. Para Eros Roberto Grau o crescimento do Estado-ordenamento e do Estado-aparato trouxeram consigo a experiência concreta do surgimento de normas jurídicas diferenciadas, que rompem os modelos tradicionalmente conhecidos, de norma de conduta e de norma de organização. Assim, para o referido autor “deixando o Estado – operador último do Direito – de ser um mero produtor de ordem, segurança e paz (isto é, de ordenação) e passando a atuar também como conformador da ordem social e da ordem econômica, surgem, no Direito positivo, inúmeros exemplos de normas que não têm o sentido de disciplinar condutas ou de instrumentar a organização de entidades ou atividades, mas sim, tão-somente, de fixar fins (objetivos) a serem alcançados”. Para ele, as disposições da lei do plano que aprova as diretrizes e prioridades nele contidas é também exemplo de “norma-objetivo” (Notas sobre a noção de norma-objetivo. Direito constitucional: teoria geral da constituição. Coleção doutrinas essenciais, v. 1. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 843 e 847).

Há de se destacar, ainda, que o Brasil, seguindo uma tendência mundial, conferiu destaque especial à preservação do meio ambiente, que se incorporou como princípio na vigente Lei Maior, conforme registra Paulo de Bessa Antunes:

A Lei Fundamental reconhece que as questões pertinentes ao meio ambiente são de vital importância para o conjunto de nossa sociedade, seja porque são necessárias para a preservação de valores que não podem ser mensurados economicamente, seja porque a defesa do meio ambiente é um princípio constitucional que fundamenta a atividade econômica (Constituição Federal, artigo 170, VI). Vê-se, com clareza que há, no contexto constitucional, um sistema de proteção ao meio ambiente que ultrapassa as meras disposições esparsas.120

Não é por outra razão que a qualidade do meio ambiente urbano assume feição especial no ordenamento jurídico nacional, sendo que os planos urbanos, antes preocupados basicamente com o controle do uso do solo, voltam também sua atenção, atualmente, para os recursos naturais urbanos.

Pode-se dizer, ainda, que a Constituição Federal trouxe novos paradigmas ao planejamento urbano, com a introdução do conceito normativo de democracia participativa (art. 1º e parágrafo único). Vale frisar que a participação, enquanto atividade eminentemente política dos cidadãos, é um dos pressupostos do Estado Democrático.121

Necessário observar, por oportuno, que do ponto de vista jurídico a democracia é tida como princípio geral de Direito, expressamente reconhecida pelo ordenamento constitucional brasileiro.122

Extrai-se do princípio democrático não somente a obrigação do Estado de respeitar as mais elementares normas de democracia representativa (eleições periódicas, separação de poderes, liberdade partidária), mas também, como enfatiza Canotilho, que ele “implica a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de apreender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer o controlo crítico na

120 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 2. ed. rev e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 40. 121 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 89-90. 122 Pode-se afirmar que princípios jurídicos são normas dotadas de um elevado grau de generalidade e abstração

e que formam a estrutura fundamental de um sistema jurídico. Diferenciam-se das regras, que também são normas, pelo menor grau de generalidade e abstração e pela menor importância estruturante destas dentro do sistema jurídico (Cf. GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 19).

divergência de opiniões, produzir imputs políticos democráticos”,123importando, por isso, numa “forma de organização” do Estado e da Administração Pública.

Para Carlos Ayres Brito, a democracia constitui o valor-síntese da Constituição, ou, de acordo com suas palavras “o próprio ser da Constituição, a sua quinteessência”124, não havendo na Constituição outro que se lhe iguale em importância funcional-sistêmica.

A adoção do sistema democrático não importa somente o poder de selecionar eleitoralmente os governantes, mas, também, de dividir com eles algumas funções de governo e ainda controlar o modo pelo qual tais governantes se desincumbem do mandato ou do papel institucional que lhes é confiado. E, para tanto, adverte o citado autor:

É do nosso entendimento que o controle social do Estado, tanto quanto a direta participação popular nos atos de governo, sejam atividades tanto mais eficazes quanto mais numerosos forem os mecanismos de divisão interna do poder político (Federação, Separação dos Poderes, Sistema Parlamentar de Governo...). É que o povo já encontra os órgãos e pessoas estatais reciprocamente limitados. Mutuamente contidos. E aí passa a conviver de modo mais facilitado com instâncias governamentais já relativizadas ou quebrantadas, cotidianamente, no seu poder institucional. O controle e a participação popular, nesse contexto, apenas dão seqüência a mecanismos constitucionais de desconcentração e descentralização da autoridade. Daí a compreensão de que a Democracia pressupõe uma organização estatal que prime pela divisão orgânica e territorial do poder político, em bases equilibradas; quer dizer, sem hegemonia de um órgão estatal sobre outro, ou de uma pessoa territorial sobre as demais.125

O ordenamento jurídico prevê expressamente diversas formas de participação do cidadão na gestão pública. Nesse sentido, por exemplo, há previsão desta participação no planejamento municipal (art. 29, X, da CF), na gestão orçamentária e da cidade (art. 4º do Estatuto da Cidade), no sistema de saúde e seguridade social (art. 198, III e art. 194, VII, da CF), bem como na política de habitação de interesse social e na regularização fundiária dos assentamentos informais urbanos.

123 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003,

p. 288.

124 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 181. 125 Ibid., p. 185.

No Estatuto da Cidade a democracia participativa está fixada como diretriz da gestão democrática (art. 2º, II). Além disso, a participação popular é contemplada no inciso XIII, do art. 2º, no inciso III, do art. 4º (planejamento municipal) e no § 4º, I, do art. 40 (elaboração do plano diretor).

A noção de participação popular está intrinsecamente ligada à própria concepção de democracia. Nesse sentido, ainda que não contasse com nenhuma referência expressa no Texto Constitucional de 1988, ao avesso do que verdadeiramente ocorre, deduziríamos a presença implícita de norma constitucional autorizante da criação de institutos de participação popular na Administração Pública, através dos princípios democráticos e do Estado de Direito, princípios básicos de organização do Estado Brasileiro, conforme definido pelo art. 1º da Constituição Federal. 126

Portanto, a participação popular na elaboração e execução do plano urbanístico possui fundamento constitucional. Constitui-se em regras de cumprimento obrigatório, materializando um tipo de planejamento democrático e participativo com pretensão de eficácia administrativa.

Com efeito, a partir da determinação legislativa, tanto na elaboração quanto na gestão dos programas, projetos e planos urbanos, é necessária a participação dos cidadãos, como critério de legitimidade das decisões.

Diante desse contexto, a legislação urbanística deve abarcar as exigências constitucionais acima elencadas, além das recomendações globais, maximizando o princípio da dignidade da pessoa humana, dentro de um ambiente saudável e uma vida de acesso ao bem-estar.

Por certo, o ordenamento do território (através dos planos urbanísticos), assume uma função essencial, especialmente diante das carências das nossas cidades. Assim, ele é orientado, constitucionalmente, a ser instrumento destinado a assegurar resultados úteis, vinculado aos objetivos apontados na Constituição Federal.

Destarte, os planos de ordenação dos territórios se caracterizam por serem fundamentalmente instrumentos, dentre outros encontrados na Carta Magna, destinados a também contribuir, em seus respectivos âmbitos de aplicação, para o atingimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Desse modo, o recurso ao planejamento, cujo plano urbanístico é uma das suas expressões, é de suma importância para se atingir os objetivos fundamentais da

126 Cf. PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popular na

República Federativa do Brasil. O art. 182 da Constituição de 1988, por sua vez, dispõe que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo garantir o bem-estar dos habitantes da cidade. Assim, para o alcance de tais objetivos é necessário que métodos e estratégias sejam reunidos, para conformar uma atuação planejada.

A planificação, neste contexto, não pode desconsiderar tais aspectos, servindo-lhes como garantia de efetivação.