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2. O DIREITO À SAÚDE ENQUANTO CONQUISTA SOCIAL

2.1 Aspectos introdutórios

Em toda petição é necessário apresentar o fato constitutivo que autoriza a causa de pedir. Igualmente, exigir uma prestação social do Estado também significa ir de encontro a uma justificativa racional que o obriga: o contrato social. Esse contrato instituiu como árbitro o Estado capaz de repassar de maneira eqüitativa as liberdades que lhes foram confiadas37.

Aparente equação irresolúvel se instala se formos pensar se é possível, sem romper com a lógica e sem transgredir os limites da linguagem, um contrato ou uma convenção sem a

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Da carência de previsibilidade das decisões capaz de restaurar a confiança entre governantes e governados e do esforço racional nasce o positivismo jurídico como empenho em transformar o estudo do Direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse características semelhantes às das ciências físico-matemáticas e naturais. Para tanto, o positivista exclui de sua análise os “juízos de valor”, passando a emitir apenas “juízos de fato”, isto por que este consiste na tomada de conhecimento da realidade, enquanto aquele representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade. Assim, novas formas de pensar os problemas da saciedade determinaram o surgimento de tradições racionalistas. Todas as tradições – utilitarista, marxista e contratualista – , as quais foram moldadas de maneira decisiva pelo Iluminismo, exercem sua influência nos moldes de Estado Social modernos, por via de regra no Direito Positivo global-ocidental (Ian Shapiro, op. cit., p. 6). Esses movimentos filosóficos, intimamente relacionados com o positivismo jurídico, têm como objetivo racionalizar (tornar funcional, operacional, noutras palavras: dogmatizar) a vida social baseando-a em princípios científicos. Existia (e ainda existe) nesses movimentos de transformação, um poderoso impulso normativo para levar a sério o ideal de liberdade humana, expresso em uma doutrina política dos direitos individuais. O utilitarismo norte americano lastreia seus fundamentos na afirmação de que a legitimidade dos governos está ligada à sua vontade e capacidade de maximizar a felicidade, não importando a hierarquia do mecanismo normativo se a concretização dos princípios democráticos for conseguida. O marxismo difere no que se refere à exploração, às relações tanto desta com o trabalho quanto com os sistemas políticos e econômicos, e no papel das instituições políticas no que se refere a sua erradicação. Todavia, em todas as interpretações marxistas as instituições políticas carecem de legitimidade na medida em que chancelam a exploração, e ganham-na na medida em que promovem sua antítese, a liberdade humana.O contratualismo tem como seu maior representante Jean-Jaques Rousseau, com o expoente literário ‘O pacto social’. Contudo, muitas críticas são feitas às sua teorias, sobretudo as que ‘explicam’ a origem do Estado. Indaga-se se houve um consenso verdadeiramente consciente (como propôs Rousseau), tácito como remediam os jusfilósofos apaziguadores, ou, ainda, se não houve pactuado algum. Neste último caso, o homem como produto do meio, pelo meio é criado, não havendo mais por que se discutir ato de vontade tácita ou consciente. O fato é que atualmente essas tradições de pensar, ao mesmo tempo que determinam também são determinadas pela vontade humana, o que determinou o surgimento de uma nova área de estudo, que tem com produto várias teorias, todas relacionadas à compressão dos interesses que motivam o ânimo das pessoas e das coletividades, bem como os liames que separam a esfera privada da pessoa da esfera pública onde se encontra inserida, são elas: teoria da vontade, teoria do interesse, teoria da faculdade, teoria da ação lícita, teoria do assenhoramento, teoria da garantia, teoria da pretensão, entre outras (sobre estas teorias ver: LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos: consumidor - meio ambiente – trabalho – locação -

presença do elemento “vontade consciente”. Noutras palavras: há consistência numa vontade inconsciente voltada para a atributividade? 38

A contribuição de Rousseau reside não no fato de apregoar um contrato em si, com todos os elementos que o constitui, mas, sobretudo, no fato de verificar que as pessoas não doam liberdade sem esperar algo mais compensador em troca, ou seja, mais liberdade. E toda troca, de fato, não deixa de ser um contrato, que quando descumprido, revolve às condições da permuta. Nesse sentido, é possível exigir do Estado que resolva ou devolva-lhe a liberdade tomada a pretexto da reciprocidade e da atributividade, que negadas têm o condão de tornar indevido o monopólio do Estado. Isto é algo que se processa invariavelmente de maneira inconsciente, movido apenas pelo sentimento de justiça, fator permanente de correção.

Enfim, troca é transferência mútua e simultânea de coisas entre seus respectivos donos. Nesse sentido, sendo a liberdade própria de cada pessoa, está-se diante da maior de todas as “propriedades”, donde se origina todos os direitos e garantias do homem contemporâneo: a liberdade de construir a própria felicidade39; o que sobreleva em significado e complexidade o pacto social.

A convenção social é produto da necessidade de agregação entre os homens para a formação de uma força comum que acastele adequadamente os interesses individuais de cada um, contudo, sem que isso insinue a eliminação da liberdade ou a sujeição à vontade alheia.

Nesses termos, a organização do Estado representa um estado de igualdade, já que para a formação da força coercitiva dessa convenção, todos entregam suas liberdades em módulo. Contudo, a solidariedade – a qual ao mesmo tempo em que motiva também renova o pacto -, igualmente determina que diferentes necessidades sejam alcançadas pela proposta40.

A espinha dorsal desse pacto reside mesmo na “atributividade”. Significa que a todo direito deve corresponder uma obrigação pelo menos; como, por exemplo, a de reconhecer o mesmo direito e em igual medida para o outro sujeito (reciprocidade, isonomia).

O contrato celebra-se entre três partes: um indivíduo, outro indivíduo (ou demais indivíduos que juntos compõem a sociedade a que se refere a ordem: grupo, classe ou

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Atributividade é a nota essencial do Direito que se traduz no estabelecimento de uma relação jurídica, que quando iniciada vincula um indivíduo a outro, ou ao Estado. Em outras palavras, é a possibilidade jurídica de exigir uma contraprestação. A atributividade reside no direito de poder exigir a atuação do arbitro (o Estado dotado do monopólio da violência) para resolver o contrato caso a outra parte se negue a cumpri-lo. Este fato será verificado tanto na obrigação do Estado de agir, quanto de abster-se de determinadas práticas porque injustificáveis com base nas premissas em que se estabeleceu o contrato, sob pena de resolução do pacto.

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Norberto Bobbio, 2004, passim. 40

CRUZ, Álvaro Ricardo Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, perfaz interessante estudo acerca do assunto, o qual retomaremos mais adiante.

coletividade) e o Estado, agora dotado de personalidade jurídica e, hodiernamente, comprometido com a realização do homem.

A respeito desse Estado voltado para o bem-estar social pleno (Welfare State), Paulo Bonavides, com exatidão, informa que surgiu a partir das críticas e do conseqüente esgotamento dos postulados do liberalismo econômico (individualismo), já observável desde as últimas décadas do século XIX, mas que se tornou evidente quando do fim da Primeira Guerra Mundial41.

Assim, passemos à análise dos pressupostos teóricos que autorizam perquirir acerca da efetividade com eficiência do direito à saúde enquanto serviço público juridicamente tutelado pelo Welfare Satate, ou Estado do Bem-estar Social, numa perspectiva supraindividual.

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