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O serviço público como pressuposto de materialização do Welfare State

2. O DIREITO À SAÚDE ENQUANTO CONQUISTA SOCIAL

2.7 O serviço público como pressuposto de materialização do Welfare State

A concepção que se tem acerca de serviço público passa por mudanças tais que repercutem nas representações jurídicas do fenômeno e nas palavras que o designam.

Com precisão Odete Medauar traça um interessante panorama paras as crises que permeiam o serviço público em dias atuais, destacando que o serviço público sempre espelhou

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o desenvolvimento da sociedade e do Estado, sendo movido por fatores econômicos, sociais e tecnológicos103.

Tais fatores foram intensificados nos últimos tempos, causando alterações e levantando questões, as quais também decorrem de preceitos contidos em tratados e textos de direito internacional, como os da Comunidade Européia, por exemplo, que alcançaram difusão fora dos Estados que a integram, repercutindo na doutrina publicista e nas leis de outros países.

2.7.1 O ponto de vista norte-americano

Os norte-americanos trazem a lume o pensamento dominante nos países da common

law, conhecido como o paradigma das public utilities. Esse pensamento serviu de inspiração

para os princípios que regem os tratados e outros textos da Comunidade Européia, dando origem a um grande interesse pelo seu estudo e sua conseqüente propagação.

Basicamente o teor desse modelo implica que as atividades que atendem a necessidades públicas devem ser providas de modo igual ao de qualquer outra atividade econômica, ou seja, devem ser providas por empresas privadas, as quais devem se submeter ao controle de agências federais ou de agências dos Estados-membros, para que se obtenha o resultado decorrente de uma conciliação entre o objetivo privado da maximização do lucro e o atendimento do interesse público, expresso no fornecimento de serviços adequados com tarifas moderadas, sem perder de vista a proteção à livre concorrência104.

As public utilities surgem como atividades que convergem para o interesse público, e,

por isto, se submetem ao controle dos preços, para que se tenha um preço justo e razoável, ao controle da qualidade dos serviços105 e outros controles, realizados, sobretudo, por agências

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Domenico Sorace citado por Odete Medauar (MEDAUAR, Odete. Nova crise do serviço público? In:

Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. Coordenado por Eros Roberto Grau e Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 527-538).

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Esse pensamento exara da mera exegese do artigo 170 da CF, o qual, não casualmente, inaugura o capítulo que trata da ordem econômica.

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A Constituição brasileira consagra a eficiência nos serviços públicos como princípio de balizamento necessário à Administração Pública em todas as esferas (art. 37, caput).

reguladoras independentes106, com vistas a alcançar o controle dos monopólios privados e integrar as falhas do mercado e garantir a concorrência.

2.7.2 O ponto de vista europeu

No ocidente, a França foi o lugar de origem da noção de “serviço público”. Desnecessário volver sua origem mais remota, é possível afirmar que foi no começo do século XX, com Duguit e Jèze, que deu-se início em território francês à Escola do Serviço Público e se alicerçou no ordenamento daquele país a noção de serviço público107.

Em Duguit e Jèze detectam-se as idéias principais a respeito do serviço público. Duguit emite o seguinte conceito: “Serviço público é toda atividade cuja realização deve ser assegurada, disciplinada e controlada pelos governantes, porque a realização dessa atividade é indispensável à efetivação e ao desenvolvimento da interdependência social e não se pode realizar a não ser com a intervenção da força governamental”108.

Segundo Duguit “a idéia de serviço público está na obrigação que se impõe aos governantes”. “Se há uma puissance publique ela é um dever, uma função, não um direito.” Por seu turno, Jèze afirma que o Estado constitui conjunto de serviços públicos e que a idéia de serviço público está intimamente vinculada com a de procedimento de direito público. Odete Medauar ressalva que a última associação, serviço público/procedimento de direito público, não é citada por Duguit109.

O conhecimento acerca da idéia de serviço público somatizou tanta consistência no sistema francês que passou a servir de ponto inegável de partida no direito administrativo e exigência sine qua non para o exercício da competência jurisdicional administrativa.

A partir de 1921, começaram a surgir inquietações acerca dessa noção do serviço público, relacionadas à iniciativa privada, tais como: gestão por particulares; serviço público realizado sob normas do direito privado etc. Esses acontecimentos levaram a concepção da Escola do Serviço Público à chamada “Crise da Noção de Serviço Público”, nome, aliás, dado

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As agências reguladoras surgem no Brasil em meio as grandes privatizações ocorridas na década de 90 (séc. XX). Sobre o assunto ver: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 107

Odete Medauar, op. cit., p. 528. 108

Odete Medauar, op. cit., p. 528. 109

à obra de Jean-Louis Corail, da década de 50, séc. XX. Esse fenômeno levou muitos autores franceses, Eisenmann é um deles, a divulgarem o fim da noção de serviço público110.

Em verdade, essa dificuldade, significou apenas uma transformação da concepção da Escola do Serviço Público. Os franceses passaram a admitir a gestão privada e a aceitar o direito privado no regime jurídico do serviço público, aparecendo, então, como seguimento de estudo, o serviço público industrial e comercial.

Com a força pela estatização implementada a partir da década de 50 do século XX, a qual levou ao influxo pelo Estado, instalando-se em regime de monopólio total, de vários serviços públicos antes executados pelo setor privado, o assunto “serviço público” não mais recebeu atenção privilegiada por parte de estudiosos e representantes.

O modelo europeu de serviço público é inegavelmente semelhante à concepção anglo- saxônica. Até os anos 90 (séc. XX) não existia desempenho significativo da Comunidade Européia em matéria de serviços públicos. A idéia de serviço público passa a existir no artigo 77 do Tratado de Roma, referindo à política comum dos transportes, prevendo alguns subsídios111.

Posteriormente, com a consagração da concorrência nessas atividades, apareceram textos voltados para dar tratamento econômico a funções que sempre foram consideradas serviços públicos. O serviço público face ao monopólio estatal aparecia, então, como um empecilho à livre circulação e ao livre mercado.

Mais significativo, o artigo 90.2 do Tratado em referência, que é o artigo 86.2 na versão materializada, consigna a matéria nos seguintes termos:

As empresas encarregadas de serviços de interesse econômico geral ou apresentando o caráter de um monopólio fiscal estão sujeitas às normas do presente Tratado, em especial às regras da concorrência, nos limites em que a aplicação de tais normas não obste ao cumprimento, em termos de direito e de fato, da específica missão que lhes é atribuída. O desenvolvimento das trocas não deve ser compromissado em medida contrária aos interesses da comunidade112.

De acordo com esse dispositivo, os serviços públicos, sob o nome de “serviços de interesse econômico geral”, submetem-se às regras da concorrência e demais normas do

110

Odete Medauar, op. cit., p. 529. 111

Odete Medauar, op. cit., p. 530. 112

Tratado. Todavia, algumas ressalvas são admitidas, em caso de risco à tarefa especialmente imputada, ou seja, a defesa de interesses da comunidade.

Textos da comunidade européia aprimoraram e deram notoriedade ao conceito de “serviço universal”, indicando que a finalidade do serviço universal é disponibilizar para o consumidor um serviço mínimo, segundo uma qualidade definida e a um preço justo.

Ainda mais precisa é a concepção de serviço universal presente na Diretiva 97/33/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30.6.1997, que clareia com os seguintes parâmetros: “Um conjunto mínimo definido de serviços de determinada qualidade, disponível a todos os consumidores de serviços públicos, independentemente de sua ubiquação geográfica e a um preço acessível”113.

Esses apontamentos provocaram altercações e laborações doutrinárias em torno da prevalência ou não da concepção de serviço público. Há quem afirme ser essa uma nova crise do serviço público.

Vários autores franceses foram contrários a tais concepções. Alguns autores espanhóis chegaram a afirmar que o serviço público deixou de existir, devendo-se repelir a titularidade do Estado dessas atividades; esse comando era no sentido de pensar em prestações a serem garantidas, e não em reserva de setores de atividades. Entretanto, esses proponentes também observam tratar-se de prestações concretas, de caráter básico e universal114.

Inúmeras expressões levaram a Comissão da Comunidade Européia a publicar um “Vocabulário”. Na Comunicação de 11.9.1996 acerca dos “serviços de interesse geral” surge a seguinte questão: do que se fala? Em seguida são propostas definições distintivas: “Serviços de interesse geral” – designam as atividades de serviço, mercantis ou não, consideradas de interesse geral pelas autoridades públicas e submetidas, por esta razão, a obrigações específicas de serviço público. “Serviços de interesse econômico geral” – Mencionados no Tratado, no artigo 90, designam as atividades de serviço mercantil realizando missões de interesse geral e, em virtude disso, submetidas pelos Estados-membros a obrigação específicas de serviço público. É o caso, em particular, dos serviços em rede de transporte, de energia, de comunicação. “Serviço público” – esta expressão tem duplo sentido: ora designa o

organismo de produção de serviço, ora visa à “missão” de interesse geral confiada a este. É

com o objetivo de favorecer ou de permitir o cumprimento da missão de interesse geral que específicas obrigações de serviço público podem ser impostas pela autoridade pública ao organismo de produção do serviço, por exemplo, em matéria de transporte terrestre, aéreo ou

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Odete Medauar, op. cit., p. 531. 114

ferroviário ou em matéria de energia. Essas obrigações podem se exercer no escalão nacional ou regional. Note-se que freqüentemente confunde-se, de modo errôneo, “serviço público” com “setor público” (aí incluída “função pública”), isto é, missão e estatuto, destinatário e proprietário. “Serviço universal” – Desenvolvido pelas instituições da Comunidade, este conceito evolutivo define um conjunto de exigências de interesse geral às quais deveriam se sujeitar, em toda a Comunidade, as atividades de telecomunicações ou de correios, por exemplo. As obrigações decorrentes visam a assegurar em toda parte o acesso de todos a certas prestações essenciais, de qualidade e a um preço acessível115.”

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