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Substratos políticos e sociológicos da tutela coletiva: a tutela coletiva como “processo de interesse público” ( public law litigation)

FUNCIONAMENTO DE APARELHOS AUDITIVOS EM FAVOR DE MENOR SAÚDE DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL ART 227 DA CF/88 LEGITIMATIO AD CAUSAM DO PARQUET ART.

3. ASPECTOS PROCESSUAIS RELEVANTES PARA O ESTUDO DA TUTELA COLETIVA

3.6 Substratos políticos e sociológicos da tutela coletiva: a tutela coletiva como “processo de interesse público” ( public law litigation)

Em excelente discorrer George Salomão Leite lembra que o Direito é um fenômeno cultural. Sendo a Constituição Direito, também se encontra inserida nesse contexto, porquanto seja a cultura a soma de todos os objetos culturais ou a própria realidade transformada pelo ser humano. Com o aporte de Luís Recaséns Siches, George Salomão Leite informa que cultura é “o conjunto das obras que o homem faz em sua vida, os produtos de sua ação, dotados de sentido, impregnados de significação”. Em breve resumo é possível inferir dessas preleções que “cultura é sinônimo de natureza bruta mais valor”. Que todos os objetos culturais têm substratos reais, sejam corpóreos, sejam psíquicos. Contudo, adverte o autor que a essência destes objetos não se encontra naqueles substratos reais, mas sim no fato deles serem dotados de significado ao qual se acopla uma intencionalidade (elemento vontade ou político)304.

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Isso ocorre porque a matéria litigiosa veiculada nas ações coletivas refere-se, geralmente, a novos direitos e a novas formas de lesão que têm uma natureza comum ou nascem de situações arquetípicas, levando à transposição de uma estrutura “atômica” para uma estrutura “molecular” do litígio (WATANABE, Kazuo.

Demandas coletivas e problemas emergentes da práxis forense. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 7, no 67, jul. / set. 1992, p. 15.

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George Salomão Leite conclui que “Inexiste objeto cultural sem um valor a ele agregado. Deste modo, sendo o Direito uma realidade transformada pelo homem, ou dito de outro modo, uma manifestação objetiva do pensamento correlacionada a valores, conclui-se, conforme já afirmado, que o Direito é um fenômeno cultural, e portanto, a Constituição também o é. Mas o que vem a ser este elemento denominado “valor” que dá sentido ao Direito, mais especificamente, à Constituição? Os valores são qualidades historicamente objetivados. É a própria essência do objeto cultural”. Com precisão Peces-Barba, citado pelo autor em referência, informa que os valores são guia e limite para o desenvolvimento do sistema jurídico (LEITE, George Salomão. Interpretação

Dois fundamentos, um de ordem sociológica e outro de ordem política, sobressaem das ações coletivas contemporâneas: o primeiro, de caráter eminentemente sociológico, se revela no princípio do “acesso à justiça”; e, o segundo, de natureza política judiciária, no princípio da “economia processual”.

A relevância da questão política reside, especialmente, no interesse público (primário e secundário) na diminuição dos custos materiais e econômicos na prestação jurisdicional; obtidas, também, através da uniformização dos julgamentos, fator de harmonização social, prevenção de decisões contraditórias e resgate de credibilidade nos órgãos jurisdicionais e do próprio Poder Judiciário enquanto instituição republicana305.

Do ponto de vista sociológico, está mais do que justificada a tutela coletiva em razão de que o litígio de massa propiciado pela crescente industrialização, urbanização e globalização da sociedade contemporânea, é uma realidade inconteste que reclama urgente regulação.

A prestação jurisdicional em demandas coletivas é um serviço público enraizado na “litigação de interesse público”. Nas palavras de Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., “servem às demandas judiciais que envolvam, para além dos interesses meramente individuais, aqueles referentes à preservação da harmonia e à realização dos objetivos constitucionais da sociedade e da comunidade”306.

Com exatidão os autores ainda esclarecem que o entendimento proposto se refere não apenas à mera característica pública do processo enquanto elemento de atuação da vontade estatal, mas vai além ao evidenciar a defesa do interesse público primário através de demandas cíveis, inclusive no exercício de controle e efetivação de políticas públicas por meio dessa “litigação”307.

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Outra conseqüência benéfica para as relações sociais é a maior previsibilidade e segurança jurídica decorrente do atingimento das pretensões constitucionais de uma Justiça mais célere e efetiva (EC 45 de 2004).

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Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., op. cit., p. 36. 307

Como ficou bem marcado pela melhor doutrina de direito administrativo, interesse público verdadeiro é o interesse primário, de acordo com ele deverão atuar sempre os órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. O interesse público secundário, representados nos interesses imediatos da administração pública, jamais pode desenvolver-se fora deste quadro estrito de consonância com o interesse público primário, seu legitimador e fundamento constitutivo. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello o interesse coletivo primário ou simplesmente interesse público é o complexo de interesses coletivos prevalente na sociedade, ao passo que o interesse secundário é composto pelos interesses que a Administração poderia ter como qualquer sujeito de direito, interesses subjetivos, patrimoniais, em sentido lato, na medida em que integram o patrimônio do sujeito. Cita como exemplo de interesse “secundário” da administração o de pagar o mínimo possível a seus servidores e de aumentar ao máximo os impostos, ao passo que o interesse público “primário” exige, respectivamente, que os servidores sejam pagos de modo suficiente a colocá-los em melhores condições e tornar- lhes a ação mais eficaz e não gravar os cidadãos de impostos além da certa medida (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed., rev. e atual. até a EC 48, de 10.08.2005. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 54 e seguintes).

A ampliação obtida por meio dessa compreensão abrange direitos coletivos lato sensu e ainda direitos individuais considerados indisponíveis em razão da presença de “interesses de ordem social e pública” no direito posto308.

Contudo, ainda existe alguma resistência por parte de órgãos do Poder Judiciário, de modo que essa perspectiva tem levado o STF a intervir na realização de políticas públicas apenas em situações de extrema necessidade309. Em igual sentido tem se apresentado os julgados do STJ.

O quadro que se apresenta induz à conclusão de que, atualmente, se desenha um novo significado para as ações coletivas, o qual reclama a novel aderência da idéia de o processo coletivo rezinga o reconhecimento, amplo e inconteste, de procedimento dotado de “elevado interesse público”.

Para melhor localizar essa razão Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., com o suporte de Mirjan R. Damaska, enumeram três tipos de relação entre as faces da Justiça e a autoridade estatal: a) o modelo hierárquico de autoridade, vocacionado à implementação de políticas públicas (Europa continental); b) o modelo coordenado de utilização do poder, vocacionado para a solução dos conflitos (Estados Unidos da América do Norte); e, por último, o modelo híbrido que está em formação e que parece mais indicado para realizar as tarefas de uma democracia deliberativa procedimental em uma sociedade pluralista, c) o modelo coordenado de implementação de políticas públicas. Este último arquétipo está de maneira especial

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Vejamos alguns dispositivos do nosso direito positivo: Art. 127 da CF88: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Art. 227 s CF88: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Estatuto do Idoso, Lei Federal no 10.741/2003: “Art. 81. Para as ações civis fundadas em interesses difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos, consideram-se legitimados, concorrentemente: I – o Ministério Público; II – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; III – a Ordem dos Advogados do Brasil; IV – as associações...”

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Boletim Informativo do STF no 410 (RE-436996): “Educação Infantil. Atendimento em creche. Dever Constitucional do Poder Público. A turma manteve decisão monocrática do Min. Celso de Mello, relator, que dera provimento a recurso extraordinário interposto pelo Ministério Púbico do Estado de São Paulo contra acórdão do Tribunal de Justiça do mesmo Estado-membro que, e ação civil pública, afirmara que matrícula de criança em creche municipal seria ato discricionário da Administração Pública – v. Informativa 407. Tendo em conta que a educação infantil representa prerrogativa Constitucional indisponível (CF, art. 208, IV), asseverou-se que essa não se expõe, em seu processo de concretização a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. (...) Por fim, ressaltou- se a possibilidade de o Poder Judiciário, excepcionalmente, determinar a implementação de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sempre que os órgãos estatais competentes descumprirem os encargos político-jurídicos, de modo a comprometer, com a sua missão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. RE 436996 AgR/SP, rel. Min. Celso de Mello, 22.11.2005”. (RE-436996). Outro exemplo, bastante significativo e suficiente para indicar a tônica coletiva nos processos de interesse público, voltados para a consecução de políticas públicas, é a previsão na lei para combater a violência doméstica (Lei Federal no 11.340/06 – art. 37).

voltado para atuação do controle e da realização de políticas públicas através do Poder Judiciário310-311.

Como afirmado alhures, o Poder Judiciário permanecia inativo, voltado para uma justiça redistributiva nos moldes liberal, com poucas decisões em ações populares e, posteriormente, na nascente ação civil pública, que autorizavam falar em uma atividade judicial proativa no Brasil. Nesse contexto, a Constituição de 1988 criou um novo modelo, agora denominado Estado Democrático de Direito.

Chamada por muitos de “A Constituição coragem”, a nova Carta Política, mas do que reconhecer expressamente uma dimensão coletiva de direitos fundamentais criou institutos para a concretização desses direitos, como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, a argüição de descumprimento de preceito fundamental, além de desvincular o Ministério Público Federal das atividades de defesa dos interesses da União (art. 129, IX da CF/88)312, conferir à Advocacia Geral da União a obrigação de representação das entidades estatais e subdividir as competências dos tribunais de modo a assegurar ao STF a especial competência de guarda da Constituição Federal.

Em conclusão parcial, é possível inferir de todo exposto que o alto número de interesses, bem como as particularidades das lesões invariavelmente apontam para a presença do interesse público primário nas ações coletivas. A relevância social, por certo, justifica a legitimação ad causam do Ministério Público que passa a ser constitucionalmente obrigado a intervir no feito; na menor das hipóteses como fiscal da lei313. Contudo, não deveria ser o único. Isto porque, especialmente no caso das associações civis, nada obstante a previsão legal, poucos precedentes verificam-se na “biblioteca virtual” do Superior Tribunal Justiça.

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