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Outro fato agravava a sua posição. Estava doente. Grave e imperdoável er- ro! Porque um doente é um débil que se deve expulsar ou um peso que se deve suportar, sendo sempre igualmente detestado.

Na luta pela vida não há margem para auxílio nem repouso. E qual era a sua doença? Os médicos giravam em torno dele havia vinte anos, sem com- preender nem concluir nada. Assim, pacientemente, ele se transformara, para eles, num campo experimental de infrutuosas tentativas e numa fonte de ren- dimento. Despesa e sofrimento eram o único resultado. Há gente que acredita que, para sarar, basta ir ao médico e tomar seus remédios. Isto pode, sem dú- vida, acontecer em muitos casos, sobretudo naqueles evidentes e bem defini- dos por sua natureza, mais acessíveis a uma ciência necessariamente mecani- zada em sua aplicação. Mas há doenças que são um temperamento, e há tem- peramentos que são uma doença.

Existem constituições que, por estrutura orgânica congênita, trazem con- sigo um insuprimível desânimo de viver, uma sensação fundamental de mal- estar ao invés de bem-estar. A dominante medicina atual agarra-se ao lado físico do indivíduo e não cura o lado espiritual, que, em algumas pessoas, pode ser preponderante.

Ele não tinha lesão alguma; todos os órgãos estavam em perfeito estado, portanto, teoricamente, devia estar bom. Tinham-lhe feito os mais disparata- dos e inconciliáveis diagnósticos, tanto que a medicina não lhe parecia mais que uma opinião. Mas todos se agarravam a este ou àquele órgão; ficavam de fora; eram analiticamente parciais, embora sinteticamente totalitários, en- quanto a chave estava num dissídio no funcionamento mais íntimo das trocas celulares, quase um embate entre espírito e matéria, entre o aparelho elétrico diretor, rebelde aos desejos que querem dirigi-lo, e o metabolismo bioquímico de seu organismo. Foi-lhe aconselhada afinal uma intervenção cirúrgica: cor- tar para ver. Mas certas coisas não se veem ao microscópio ou na análise química; não se percebem por métodos mecânicos ou racionais. Sentem-se apenas por intuição e alcançam-se por síntese.

Um médico que tivesse compreendido o caso especial teria dito, honesta- mente, que não sabia a causa da doença, que nada poderia fazer, que sua ori- gem era uma questão de temperamento e que aconselhava o doente a encon- trar por si e seguir o regime mais conveniente. Mas como se pode pretender o

antibiológico, esperando que o homem biologicamente normal que mora den- tro do médico reconheça a sua própria ignorância? Como pretender que o edifício construído por meio de afirmações se destrua a si mesmo, para admi- tir a própria incapacidade? E as exceções não podem ser encontradas a cada passo. Certas visitas médicas são planejadas em série, sob a necessidade de lucro, sendo feitas a um público que, pelo fato de pagar, impõe mais ou me- nos ao médico a sua psicologia e apresenta alterações de grande importância, situadas no plano físico.

Estas visitas médicas são, por sua própria natureza, apenas um rápido exame externo, no qual é o doente que, declarando os sintomas, prepara o diagnóstico. Não podem ser uma observação longa e profunda, que só o doen- te, por estar em contato constante e direto com o fenômeno, pode fazer. Este gênero de auxílio médico não lhe podia trazer senão fastio. Isto se concluía pela habitual prescrição oral, ou pior ainda, pelas injeções, que são a forma de intervenção mais violenta, inassimilável e mortífera.

Mas seu organismo era de ferro e resistiu durante vinte anos. Um médico o tratou com lavagens gástricas e, para sofrer menos, ele acabou fazendo-as sozinho, engolindo um comprido tubo de borracha. Outro, considerando vá- rios sinais descobertos na radioscopia, havia diagnosticado uma doença no peito. O diagnóstico dependia muito da especialização do médico. Um ho- meopata aplicou-lhe, naturalmente, a homeopatia. Uma vez, recorreu a um famoso doutor de doenças nervosas e foi tratado como neurastênico. Não deixou escapar, durante a visita, o aspecto nervoso e agitado do médico, não compreendendo como tal sumidade não soubera curar-se a si mesmo. Esca- pou por pouco de cair em uma clínica onde já se projetavam tão sábias com- plicações, que não lhe seria fácil sair dali vivo e são.

Não se prejudicam com isto os maravilhosos e benéficos progressos da medicina, nem o mérito dos grandes que, com tanta abnegação e fadiga, con- quistaram-nos. Não se afirma que o médico seja sempre assim, mas apenas que assim se afigurara ao nosso protagonista. O leitor saberá se o caso é fre- quente ou raro.

Sem dúvida, existem na medicina orientações sadias, secundando os siste- mas de equilíbrio que a natureza ensina e deseja, mas a medicina oficial tende com frequência à intervenção forçada e unilateral. Assim, em vez de se aplicar por meio de síntese e intuição nas leis da vida, tendo consciência do paciente, tenta convencê-lo através de análise e cerebralismo, não conseguindo com este

instinto másculo de imposição e constrangimento senão perturbar os comple- xos equilíbrios da natureza.

Todo o nosso tempo – também nos outros ramos da ciência, como na músi- ca, na pintura e na literatura – é uma hipertrofia de cerebralismo, de virtuosis- mo técnico, de mecanização, onde a luz do espírito intuitivo, sintético e cria- dor é sufocada e extinta. Mas esta é a hora da matéria, sendo preciso vivê-la enquanto o ciclo não for superado.

Assim, ele se enfastiou até à náusea, foi sugado enquanto teve dinheiro, e ficou com seu organismo saturado de medicamentos. Eis o que o mundo lhe dera. A responsabilidade, no entanto, não era da ciência, da medicina em si, mas sim do homem, que, sob qualquer pretexto social, atirava-lhe sempre a mesma verdade biológica: lutar é a lei, ai dos fracos que não sabem defen- der-se, ai daqueles que imploram socorro! Esta é a substância permanente e infalível, presente em todos os diagnósticos, mesmos os mais discordantes. Tal foi, portanto, a sua conclusão desta experiência: defender-se.

Então um dia disse: “é melhor morrer que chamar o médico”, e manteve a palavra. Assim, uma das primeiras vantagens de sua pobreza foi esta necessi- dade de aprender, sobretudo através de um sábio regime, a defender a sua saú- de, porquanto somente ele podia conhecê-la bem, evitando o perigo de pedir ajuda e colocá-la sob a administração e manuseio de outrem. De resto, já per- cebera que, em qualquer assunto, aquilo que se confia à administração de ou- tros está perdido. Estes são os perigos da riqueza, que leva seu possuidor a crer na possibilidade de utilizá-la para fugir da luta e do sacrifício, burlando a dis- ciplina das leis da vida. Mas tudo isto é uma insuprimível norma da natureza, razão pela qual o convite ao repouso e ao arbítrio não passa de uma mentira.

A vida é séria e dura. Cada um precisa saber defendê-la e discipliná-la por si mesmo. A tarefa da proteção da própria saúde não pode ser realizada mediante pagamento. As leis econômicas têm um limite, e o dinheiro não pode tudo. A saúde será naturalmente resguardada com a observância das leis biológicas, que a outorgam apenas por merecimento, e não a troco de qualquer riqueza.

No entanto ele havia aprendido a conhecer o próprio organismo. O estudo, ainda que elementar, da medicina fora para ele muito atraente. Como em tudo o mais, desejava, antes de tudo, compreender a si mesmo. Para sobreviver a vinte anos de tratamento, seu organismo havia dado provas de uma resistência excepcional. De fato, seu sofrimento não o impedia de estar continuamente ativo, sempre trabalhando – dinâmico e criador, temperado pelo cansaço físi-

co e intelectual, enriquecido por uma produção contínua. Naquele corpo ma- gro, todo ele pensamento, nervos, sentimento e vontade, existia um espírito extremamente rico, indômito e inexaurível, que comunicava a cada fibra do organismo a sua força e a sua resistência. Este espírito parecia queimá-lo e decerto o fazia, exigindo dele uma atividade que, embora seja natural ao espí- rito, o corpo não pode seguir.

Esta exuberância espiritual parecia manter-se à custa do organismo físico, ao qual depauperava continuamente. O segredo de seu sofrimento parecia estar nesta hipertrofia evolutiva psíquica e sensitiva, neste desequilíbrio de proporções, cuja recuperação se dava continuamente em algum misterioso contraste no fundo do fabuloso processo da vida, que é a troca das células. Aí, por certo, as qualidades espirituais do indivíduo se põem em contato com os mais complexos processos da química orgânica. É aí que as zonas inferiores do espírito, representadas pelo sistema nervoso, confundem-se num estreito abraço com as zonas superiores da vida da matéria. Neste processo, inacessí- vel à medicina, estaria certamente o desequilíbrio não percebido pelos médi- cos. O inevitável contraste entre espírito e matéria, presente na linha do seu destino, estava tão profundamente impresso em seu ser, que se projetava ativo e sensível em seu organismo. Assim como a sua vida espiritual demasiado intensa não se adaptava ao ambiente humano, seu organismo espiritual tam- bém não se adaptava ao seu corpo físico, com o qual, ao invés de se encontrar em acordo, estava em contínua desavença.

O homem do nosso século, dinâmico e esportivo, não achará simpático que o protagonista seja apresentado como um doente e ficará justamente des- confiado com a exaltação de mentalidades elevadas em corpos doentes, con- dição que não vale para a média, pois as criaturas normais devem ser, antes de tudo, sadias de corpo. Mas a doença do nosso protagonista não era no sen- tido comum, implicando inferioridade orgânica. Tratava-se da pseudodoença da evolução, condição pseudopatológica que induz muitos ao erro, caracteri- zada pela maior fecundidade e dinamismo construtivo, sendo a febre o resul- tado do desequilíbrio nas profundas transformações biológicas, devido à in- tensa maturação do espírito.

Realmente, no fundo de seu sofrimento estava o germe de suas mais poten- tes criações intelectuais e morais. A sua tentativa de superação humana tinha raízes tão profundas em toda a sua natureza, que se revelava primeiramente em seu organismo. Dos superiores planos do espírito aos ínfimos planos da maté-

ria, ele era um único e mesmo fenômeno, que envolvia sua alma e corpo na mesma tensão do destino e na mesma transformação. Ele estava todo projetado para diante na evolução. No fundo, era o mais dinâmico entre os dinâmicos, ativo sobretudo no espírito; era o biótipo expoente do século XX, o tipo bioló- gico da nova civilização do Terceiro Milênio. De fato, amava o trabalho e ti- nha coragem para encetar as mais arriscadas aventuras espirituais. Magro, ágil e sempre em movimento, resistia bem à marcha, à escalação de montanhas, ao calor e ao frio. Bronzeado pelo sol, robusto e filho de pais longevos, destinava- se também a ser longevo. Sempre ao ar livre e amante de banhos, tomava-os a toda hora, quentes ou frios, não obstante a suposta doença do peito, que, na verdade, não passava de um resfriado. Detestava a calefação e vivia entre ás- peras montanhas, numa choupana exposta a todos os ventos no inverno.

Isto nada mais era que um efeito. O centro de sua vida estava no espírito, que continha todas as suas maiores alegrias: conceber, criar, conquistar, pro- gredir. Ele parecia uma célula nervosa da sociedade, projetada para diante, especializada em funções evolutivas. Era inútil pretender que a medicina com- preendesse o fenômeno e fosse capaz de curar o íntimo dissídio físico- espiritual do seu ser, para acalmar seu tormento. Ele não podia reequilibrar-se no plano humano. Fora construído para a luta e nascera em um século de luta, por isso devia correr com todos e a frente de todos. Era-lhe impossível viver no repouso. Nada mais lhe restava, portanto, senão equilibrar-se na luta. Esta era a sua natureza, desde as suas qualidades morais às suas características ce- lulares. Assim era ele, tanto de alma como de corpo. Embora apresentasse a aparência e o sofrimento de um estado patológico, aprendera a compreender a função biológica desta condição, descobrindo o significado evolutivo daqueles sintomas e as razões que justificavam aqueles sofrimentos. Estes continuavam, mas o espírito resistia. O espírito suportava, afrontava, resolvia e superava tudo. Ele deixava agir a grande sabedoria da natureza, que protege a laboriosa gestação da evolução, pois deseja a vida, e não a morte.