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Estranho ser este, o super-homem, que, envolto numa terrível tragédia de incompreensão e de martírio, está destinado a ser odiado pelos homens nor- mais, inferiores, egoístas, invejosos e rivais, porque estes odeiam quem des- trói sua aparência de superiores. Aceita-se apenas o que se pode desfrutar. O gênio é, sobretudo, sensibilidade, e isto é sinônimo de sofrimento. O mundo todo parece refletir-se no seu espírito superior; tudo encontra eco em seus nervos e em seu cérebro, como se eles fossem os órgãos nervosos e cere- brais do ser coletivo, a antena com que o homem explora o futuro, o centro da síntese consciente da humanidade, o extremo limite das dores e dos es- forços de toda a vida terrestre. É como se o super-homem fizesse seu todo o cansaço da ascensão do mundo, todos os seus perigos e sofrimentos. O ser superior, o gênio, seja ele pensador, herói, chefe ou santo, não tem atrás de si senão um rebanho brutal, que desconfia dele e o destrói, roubando-lhe a tormentosa conquista, embora a reprove. Tem diante de si a vertigem do mistério e o dever de explorá-lo, sem contar com a ajuda de ninguém. Todos o consideram anormal e o condenam porque ele não compartilha do gosto e opiniões dos demais. Debate-se numa terrível inaptidão para viver como os outros, que o olham com suspeição. Mas ele é um hipersensível e não pode viver senão em um plano mais elevado e enxergar mais longe. Quando se é de tal tipo, tem-se uma missão irrevogável, estando-se fatalmente destinado ao martírio. Pelas leis da vida, isso é inevitável para todos os que subiram àquele nível. Não lhe resta, então, outro caminho senão o heroico triunfo do mártir. É inútil querer recuar.

A humanidade, que alimenta a sua vida e deve o seu progresso às con- quistas do gênio, já demonstrou historicamente que, além de não protegê-lo e de não encorajá-lo, nem ao menos o deixa trabalhar em paz. De fato, o que a humanidade costuma fazer é condená-lo e persegui-lo, tornando-se, por- tanto, uma ladra daqueles tormentosos produtos, aos quais – num regime de justiça, ao invés de violência e de usurpação – ela não teria direito. O siste- ma pelo qual a grande massa dos medíocres trata os homens superiores, a quem tanto devem, é sempre o mesmo: indiferença ou perseguição. Somente depois, quando já é tarde demais, vêm a compreensão, a exaltação e o des- frutamento. Mas nada de auxílio nos momentos adequados. Porém deve ser assim, porque o inferior ignorante precisa ser arrastado para cima, mesmo

contra sua vontade, não só para que à imbecilidade deste nada fique deven- do o gênio, mas também porque, afinal, a missão cumprida pelo gênio nutre- se, sobretudo, de luta e martírio.

Serão tais seres felizes? Em confronto com a fácil e alegre inconsciência de uma existência vegetativamente satisfeita, a vida deles é muitas vezes uma pavorosa sensação de viver, cheia de ânsia e de tristeza. Uma inteligência mai- or não pode manter-se iludida pelas miragens comuns, pois traz consigo sem- pre novas necessidades, possuindo uma grande insaciabilidade, um incansável anseio por mais vastas indagações. A inteligência é um dom que cria para os outros, e não apenas uma fonte de prazer para o seu possuidor. Somente os tolos acreditam o contrário. A inteligência é apenas uma posição de vanguarda para um trabalho de vanguarda, que, além de ser mais difícil, mais árduo e mais perigoso, constitui também um mais pesado dever, porque é mais consci- ente que os outros. Diferente daquela comum, a felicidade do gênio, quando ele a encontra, é cansativa e heroica, sendo produzida principalmente pelo poder da criação. Neste poder está a desforra daquela alma, que, no plano hu- mano, sofre abatida e sozinha. Neste poder está a sua ressurreição, seu triunfo e sua justificação. Sua insatisfação com as coisas humanas não fica estagnada num estéril pessimismo, nem permanece como negativa amargura, mas se tor- na agente de reação, impelindo a subir e descobrir. Só os insatisfeitos são le- vados a criar. Essa angústia, chamada de loucura pelos normais, conduz a um trabalho que termina sempre por encontrar alguma coisa com serventia para todos, inclusive para os ociosos e ignorantes, que julgam e condenam. Portan- to o gênio trabalha, sobretudo, para os outros. Essa é a sua missão e a sua feli- cidade. Para si mesmo, é um infeliz. Não lhe é dado conforto algum, apesar de tanto necessitar e merecer. Tem diante de si um imenso trabalho. Sabe não apenas que sua vida é um martírio, mas também que lhe está confiado o pro- gresso do mundo. Gostaria de ter mil braços para trabalhar e mil bocas para falar. Não pode deter-se na autocompaixão, coisa insignificante, que, para os outros, merece tanto cuidado e proteção. A sua alegria é criar, porque, criando, ele esquece o próprio tormento. Sabe que faz o bem e, se o presente não o compreende, lança sua voz às gerações futuras, pois tem certeza que suas pa- lavras serão recolhidas. Sua comunhão com os próprios semelhantes é uma comunhão de sacrifício e doação.

Às vezes, o gênio oferece o trágico espetáculo de um ser que parece de ou- tro mundo, como se tivesse caído aqui embaixo, numa terra que não é a sua,

na qual ele se debate desesperadamente com suas asas mutiladas, ferindo-se e sangrando, onde para os outros a alegria é tão fácil. Fecha-se, então, num iso- lamento carregado de tristeza e aí canta, cheio de melancolia, uma estranha melodia de arrebatamento que jamais se cala, de fome que jamais se sacia, de sofrimento que não tem consolo. Este canto de dor é o mais profundo canto da vida, é a música mais intensa e sutil, que piedosamente nos embala ou tra- gicamente nos abate. Do outro lado, o homem comum fica a ouvi-lo, sentindo que, naquele canto, um raio desce do céu e, arrancando-lhe o véu, escancara o mistério ao sangrento cansaço do gênio.

Mas há também a tragédia oposta, contida na tática do homem para alcan- çar o ideal. Ao lado da fatalidade da vontade que o alto tem de se fazer hu- milde, para se tornar acessível, há também a fatalidade do impulso que impe- le o humano, mesmo com toda a sua impotência, em direção ao inacessível divino. É algo estranho, pois o mundo, apesar de detestar e combater tudo isto, sente-se dominado por uma instintiva atração, por um pressentimento de futuro, que o deixa fascinado. A matéria odeia o espírito, mas depende dele. O inferior detesta o superior e rebela-se contra ele, mas sente a sua força e acaba por obedecer-lhe. É o que ordena a invencível lei da evolução.

Desse modo, se o mundo se rebela, se a realidade biológica impede os passos rumo ao ideal, se a Terra é um ambiente absolutamente inadequado às afirmações do céu, mesmo assim existe – por um instinto em formação, ain- da confuso – a percepção da superioridade do espírito. Quanta canseira do espírito para dominar a matéria! E quanta impotência da matéria para seguir o espírito! A maior luta do mundo é travada contra ele mesmo, para vencer sua resistência à atração que o impele irresistivelmente para o espírito. O ideal evangélico é um enigma para o homem, porque, embora lhe repugne, como algo difícil e cansativo, é ao mesmo tempo um convite, uma censura muda, uma ordem insuprimível. Apresentando-se a ele como atração e repul- são, numa contraposição de forças, esse ideal o agita e o interessa por cami- nhos opostos. Há para o homem, naquelas doces palavras desarmadas, uma ordem irresistível como uma ameaça.

A grande tragédia humana está se aproximando deste conflito dual, de re- conhecer no íntimo a superioridade do ideal, mas não saber realizá-lo; de sen- tir a sua grandeza e beleza, mas convencer-se da própria impotência, que traz aversão e revolta; de compreender a possibilidade de existirem formas mais elevadas de vida, mas sentir que elas são inacessíveis; de ver o céu de longe,

mas não poder alcançá-lo; de conceber na mente o sonho, mas não ver nada além de sua própria miséria. No fundo da utopia do ideal há esta grande paixão humana de não poder realizá-lo.

Todos sabem que o verdadeiro desejo do homem é a vida humana, no en- tanto ninguém sabe desejar acima da animalidade, porque elevar-se isolada- mente, buscando o mais alto, é martírio, do qual se foge. Cada um de nós espera que o vizinho o faça, enquanto o vizinho espera o mesmo de nós. Se um homem de exceção busca tal intento sozinho, todos se encarniçam contra ele, para destruir esta insuportável vergonha de todos. A guerra movida con- tra quem realiza o ideal mostra que este é sentido pelos homens, até demais. Nada os ofende tanto como a visita de um ser que, já tendo-as conquistado, está empenhado em ensinar-lhes aquelas virtudes que eles receiam jamais poder alcançar. Desta ofensa nasce uma guerra que, embora seja vingança da impotência, está cheia de lágrimas. Assim, com um suspiro nascido do cora- ção, voltando as costas ao arriscado impulso do ideal, cujo objetivo é revolu- cionar a vida para melhorá-la, o homem segue preguiçosa mas seguramente, contentando-se com os velhos costumes, para recair na solidez das leis bio- lógicas conservadoras, econômicas e prudentes.

Homem e super-homem nada mais são nesta batalha senão atores movidos por forças profundas. A verdadeira guerra se trava entre duas fases contíguas da evolução, sendo esta a luta que cada semente enfrenta para germinar e cada vida trava para vir à luz. Sem dúvida, o passado sempre criou muito, repre- sentando o caminho mais experimentado e seguro, onde estão os resultados peneirados na aplicação prática, cujas vantagens o presente desfruta. Mas, se estas normas construídas pelo passado são um guia, são também uma mentira e uma prisão. Os princípios foram recobertos por tantas incrustações, desvia- dos por tantas adaptações humanas, que já não são reconhecidos. Mesmo as- sim, a alma humana continuou a se desenvolver, concebendo novas necessi- dades, a ponto de não poder mais cingir-se aos antigos moldes. Se o passado representa segurança e se o novo, ao contrário, representa risco, o progresso vem de tal modo amadurecendo tantas coisas, que a pressão destas acabará impondo o desmantelamento daquela cômoda segurança, realizando a tarefa de destruir o que é velho e encorajando o risco de construir o que é novo. En- tão, um dia, aparecerá a necessidade de se romper a velha casca protetora, porque a vida transborda de seus limites.

Assim, cada geração tem a vantagem de se utilizar das construções dos seus ancestrais, mas também sente o ímpeto de superá-las, destruindo e re- construindo. A substância do fenômeno está sempre na fatal maturação evolu- tiva e na pressão interior do progresso, que deseja romper a casca e realizar- se. Então, finalmente, agarra-se a mão que o gênio inutilmente estendeu e procura-se avidamente, como elementos vitais, os progressos brotados de seu tormento e com essas centelhas – que o homem, na sua louca agressividade inconsciente, não conseguiu destruir – ilumina-se o caminho das ascensões humanas. Só então cumpre-se a missão do gênio.

Assim, colocando a questão não em forma racional e abstrata, mas sim bio- lógica e prática, torna-se compreensível a posição do problema evangélico ante o mundo, a razão do contraste entre terra e céu.

Deste modo, o nosso protagonista se orientou claramente, em plena consci- ência, diante de sua última experiência no mundo, de cuja compreensão irá tirar todo o possível rendimento da nova prova. Ele tinha agora, diante do seu olhar, as duas realidades: a do céu, que conhecera primeiro, e a da terra, que somente agora compreendera. A vida real apresentava-se-lhe como um duplo jogo; duas visões opostas que, exprimindo-se em linguagens diferentes, não se compreen- diam. De um lado, o jogo curto do materialismo, hedonista e epicurista, que se apoia no passado e escolhe os caminhos da animalidade, buscando os resulta- dos imediatos, como o gozo, o bem-estar e a expansão no plano da matéria. De outro lado, o jogo longo do idealismo altruísta, que se apoia no futuro e escolhe o caminho do espírito, buscando a realização longínqua, em prol da qual sacri- fica o presente, e se expandindo no céu, ao invés de na terra. Em nosso mundo, a vida oscila entre estes dois extremos. Míopes e presbitas esbarram em difi- culdades, mas cada vantagem é regiamente paga e compensada.

O jogo curto leva a vantagens imediatas e tangíveis. O resultado está pró- ximo e é alcançado rapidamente. Trata-se de um método positivo, concreto e humano, sendo o preferido pelas pessoas práticas. Conquista-se apenas aqui- lo que se vê, aquilo que já existe realmente sobre a Terra. Mas este jogo tem um defeito grave, pois acaba-se com a morte, quando tudo desmorona, res- tando apenas as cinzas da ilusão. E mesmo antes disso, quantas traições, quantas lágrimas, que íntimo sentido de vacuidade nos resultados consegui- dos com tanto trabalho! Por fim, nada mais resta na alma senão uma triste amargura de insatisfação, uma pavorosa sensação de vazio, uma demolidora certeza da inutilidade dos esforços realizados. O secreto instinto da evolução

deixa-se manifestar pelo desespero final, que é a herança de todos que vive- ram inutilmente, sem progredir, sem evoluir.

O jogo longo é de resultados longínquos e de realizações demoradas. Conquista-se bens imperecíveis, mas colocados fora da Terra, num mundo que foge aos nossos sentidos. Compreende como dever do indivíduo a cons- trução de si próprio com sabedoria e sofrimento, sendo este um bem que – em contraste com a atitude daqueles que, gozando e vivendo no ócio, des- perdiçam a vida e, para sua desvantagem, destroem a si mesmos – somente é conquistado à custa de graves sacrifícios e de duras lutas na vida presente. Então o instinto secreto da evolução fica satisfeito com as conquistas reali- zadas. Para isso, no entanto, quantos riscos e sacrifícios, quanto cansaço e tensão ao longo de toda uma vida!

Seja qual for o caminho escolhido, não há uma saída gratuita que nos livre do trabalhoso dever de evoluir. É inútil procurar animalizar-se. Existe na alma humana uma necessidade instintiva de melhoramento, um irresistível sentido de insaciabilidade, que fatalmente estimula e impele. Além disso, os cami- nhos terrestres são cansativos e inseguros. Valerá a pena, então, sacrificar conscientemente tanto trabalho por um resultado tão incerto? Sim! A moral biológica do mais forte, sempre vencedor, é viril e grandiosa; mas quantas tristezas, quantas traições e quanta miséria atrás da cena; quão vis explorações e quão desgastante instabilidade implica o sistema da força! Tal condição se reduz a uma luta sem tréguas.

Destas considerações devem ter nascido na Idade Média os ideais de po- breza absoluta, de renúncia a tudo, que são, do ponto de vista humano, os ideais do desespero. Quanta paz dá à alma o Evangelho com sua confiança em Deus, ante esta atroz lei biológica que desencadeia todos os apetites, sem lhes garantir a satisfação! A quão elevado preço se vence! Que fadiga é a vida! E que desilusões se recolhem! Mas a dificuldade move o instinto do progresso, que estimula as tentativas de evasão do pestilento pântano terrestre. Então se realiza o esforço para elevar-se a qualquer custo. É assim que, em nossos tempos de louca sapiência, esta pobre humanidade, louca de dor, desesperada no bem-estar, torturada nos gozos, insatisfeita de tudo, armada até os dentes para defender a sua insegura posição, agita-se sem repouso, em busca de ca- minhos mais altos, mais civilizados, mais dignos.

XXV. RESSURREIÇÃO