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Ao libertar-se do esforço nos estudos oficiais, através dos quais obteve co- mo resultado prático o diploma, ele se encontrou diante de três grandes pro- blemas a resolver, três graves provas a superar, três poderosos inimigos a ven- cer, porquanto seu destino, que já amadurecia então, devia manifestar seus impulsos, favoráveis ou contrários, com plena eficiência. Esse período de vin- te anos, que vai dos vinte e cinco aos quarenta e cinco anos, é o mais obscuro da sua vida, exteriormente insignificante, mas, interiormente tempestuoso e trágico. Esse foi o período de sua mais dura expiação. Ele, que quase não ha- via conhecido o estouvamento da juventude, nem gozado aquela instintiva alegria de viver, à qual se afina mais facilmente a inércia espiritual do que uma laboriosa maturação, não teve qualquer trégua por vinte anos. Mas quem tem qualidades deve sofrer o peso e pagar o preço correspondente. Quem traz for- ças dentro de si deve aprender a manejá-las e dominá-las, porque elas, em seu ímpeto de se manifestarem através da ação, desencadeiam-se irrefreáveis. Quem traçou para si uma rota deve, sem ócios ou repousos, apressar-se em tomá-la e realizá-la, porque a vida é breve e o destino tem pressa. Quem mais tem, mais deve. Quanto mais se é forte, mais se é agredido. Quanto mais longe se deve chegar, mais se tem de correr.

Em primeiro lugar tratava-se de compreender, buscando resolver o proble- ma do conhecimento. Ele não era como os outros. Não podia agir senão depois de sentir-se claramente orientado quanto ao funcionamento do universo que o circundava. Esta premissa de claríssima visão lhe era absolutamente necessária para agir em consciência e com consciência. Necessitava dar uma resposta convincente e exaustiva pelo menos aos “porquês” fundamentais da vida: de onde venho, por que vivo, aonde vou, por que sofro? Perguntas que as crianças fazem, mas que os próprios sábios, geralmente, não sabem responder. Tinha sido enviado à escola aos cinco anos. Estudara sempre e haveria de estudar por toda a vida. Aos vinte e cinco anos, depois de haver interrogado todos os cam- pos do conhecimento humano, a única coisa que ele sabia era que nada sabia. Mas, além disso, percebia uma coisa ainda pior: que os próprios sábios tam- bém nada sabiam. Quem lhe haveria, então, de dar uma resposta? O que o ho- mem havia feito de útil até agora e como teria sido capaz de se dirigir, se não tinha sequer compreendido o porquê da vida?

Apenas mais tarde compreendeu que o sistema corrente, no qual a ação é dirigida somente pelo instinto, e não por um amplo conhecimento do universo e uma profunda consciência da própria função dentro deste, era o sistema prá- tico e econômico da natureza. Para ser mais facilmente prolífica, dado que lhe interessa antes de tudo a vida, a natureza simplifica as construções, fazendo- as em série, movidas por diretrizes simples, inconscientes e instintivas, porém suficientes para uma vida precária, feita muito mais de lutas que de pensa- mento, como acontece na vida humana atual. Assim, se o indivíduo normal leva uma existência gregária, poupa com isso muita energia. A natureza, que é sobretudo econômica, evita o dispêndio de esforços supérfluos, por isso não dotou a massa de certas diretrizes mais complexas, estabelecida por centros orientadores de maior amplitude, uma vez que hoje, na maior parte dos casos, tais meios se tornariam desproporcionais ante uma vida humana ainda tão primitiva, feroz e aleatória.

O nosso protagonista queria compreender e começou a interrogar a ciência. Esta, porém, partia da dúvida, que, sendo a premissa da incerteza demolidora, inquinava e destruía tudo já antes de começar a pesquisa. De fato, prisioneira do seu objetivismo, aquela ciência não concluía; presa à experimentação, ela permanecia sempre no relativo, sem saber atingir os princípios que ele procu- rava. Tratava-se de uma ciência materialista, que negava o mundo espiritual, no qual, sobretudo, ele vivia. Além disso, era uma ciência catedrática, mais presunçosa e dogmática do que os próprios dogmas religiosos que ela comba- tia! Ele, por outro lado, interrogava também a fé. Assim, libertava-se do longo caminho da razão, para atirar-se às grandes vias da intuição. Abriam-se-lhes as portas do mundo imenso do espírito. Mas as religiões não lhe davam uma res- posta completa, precisa e persuasiva, nem mesmo para os elementares “por- quês”. Não chegavam, como ele necessitava, até ao fundo das questões, pois deixavam muitas coisas indefinidas, sem solução, na sombra. Também lhe desagradava nelas o exclusivismo e a ilógica rivalidade, que contradiziam o princípio fundamental de fraternidade nos obséquios a um Deus que devia ser o mesmo para todas as religiões. Não podia aceitar algumas das suas explica- ções, que tornavam injusto esse Deus, dissonância essa para ele inconcebível, justamente no centro da ordem. Havia interrogado os eruditos na matéria. Re- petiam-lhe frases formais e decoradas, não assimiladas, não sentidas, não vivi- das. Um deles foi bastante sincero para dizer-lhe que não havia compreendido nada e que fora constrangido a renunciar a compreender. Apesar disso, mais

tarde, este mesmo indivíduo fez bela carreira no caminho escolhido. Outro, ainda mais sincero, confessou-lhe, como conclusão de santas considerações sobre o valor do espírito, que a única coisa realmente importante para ele era somente a riqueza, afirmando isso com tanta convicção, num desabafo tão espontâneo, que nosso personagem se calou. Persuadiu-se então de que muitos daqueles a quem pedia a verdade eram de fato ateus, e não mais se admirou do indiferentismo religioso dominante.

Havia olhado na alma dos seus semelhantes e, muito frequentemente, nada mais havia encontrado ali senão trevas, nenhum outro motivo dominante senão os instintos animais. Espetáculo pavoroso. Para onde, então, voltaria o olhar? Quem haveria de lhe dar uma resposta? Se o homem não sabia dar-lhe esse conhecimento, de que tinha absoluta necessidade, só lhe restava descobri-lo por si mesmo. Não teve forças para tomar a sério as abstrusas e áridas elucu- brações dos filósofos que encontrara, cujas explicações o cansavam, sem terem a força de convencê-lo. Só mais tarde pôde aproximar-se do melhor da nossa época, como Boutroux, Bergson, Blondel, Petrone, I. Caird, Whithead, Von Hugel etc., e os menos recentes, como Rosmini, Gratry, Ravaisson, Kirkgaard, Lotze, Krouse etc. Não lhe restava, assim, mais do que cingir-se corajosamen- te e sozinho ao trabalho. Mas isto foi talvez um bem, pois não poderia ser ori- entado pelo conhecimento humano, ante a dificuldade deste para se orientar em meio ao funcionamento orgânico do universo. Urgia ler, viver, interrogar os livros, a ciência, a religião e, sobretudo, a vida. Havia muitos fragmentos da verdade esparsos pelo mundo, separados e contraditórios. Precisava despojá- los do supérfluo, descobrir-lhes a substância, reencontrar-lhes o nexo, rejuntá- los de novo. Precisava percorrê-los todos, mas conservando-se livre, sem prender-se a nenhum deles. Precisava penetrá-los, mas saber evadir-se, para não ficar prisioneiro de nenhuma limitação preconceitual, em nenhuma daque- las circunscrições do interesse humano que se haviam formado em torno das várias verdades. Precisava pesquisar além do homem, interrogando o espírito através da intuição e a natureza através da ciência; precisava dirigir-se direta- mente à observação do universo no seu funcionamento orgânico, para desco- brir-lhe a técnica, a lógica, o significado e o objetivo. Sentia, pela intuição, que o universo devia ser um sistema de leis. Era necessário encontrar a chave desse sistema, que devia ser a verdade. Esta ordem não podia ser senão a manifesta- ção exterior e sensível da grande causa universal, que se chama Deus. Essa verdade devia ser a expressão do pensamento de Deus.

Logo, porém, outro grave problema apresentava-se para ele. Uma vez con- seguido o conhecimento do grande plano universal, devia enquadrar nele o plano da sua própria vida; devia encontrar na ordem universal o sentido desta ordem menor, as suas causas, a sua trajetória e os seus objetivos; devia com- preender claramente a si mesmo e ao seu destino. Talvez, o homem comum pudesse viver sem esse conhecimento, bastando-lhe, para agir, os instintos, em obediência aos quais ele cumpre cegamente as leis de Deus. Na prática, não há necessidade alguma de se conhecer o porquê das coisas, a sua razão, para colocá-las em execução. A natureza preocupa-se em ser obedecida, e não em elucidar-nos sobre o porquê das suas ordens. O conhecimento é talvez uma necessidade útil, mas somente em certo grau da evolução, quando sua necessidade se faz sentir, não podendo, portanto, aparecer antes disso. O fato é que ele sentia essa necessidade e devia satisfazê-la. O seu grau evolutivo não lhe permitia agir inconscientemente, pelo instinto, como os animais. Não podia, tal como era, transformar-se em cego instrumento de forças desconhe- cidas. Para obedecer, devia saber; para guiar-se, carecia de orientação; sentia o dever de manter-se consciente e de tomar parte consciente e responsável na direção da sua vida. Esta era espiritualmente muito complexa, para que uns poucos instintos bastassem para guiá-la. Tinha necessidade de consciência nos seus atos, uma consciência profunda, completa, que se harmonizasse com a consciência do funcionamento universal. Por um senso de íntima convicção, sentia-se no direito de participar da direção do seu destino, no direito de co- nhecê-lo, para corrigi-lo e melhorá-lo. Sentia ser capaz e ter o dever de assu- mir a responsabilidade dessa direção. Não lhe era possível ser apenas “uma coisa”. Ele precisava ser “um homem”, um colaborador da obra divina, ho- nesto, consciente e responsável. Encarou então, face a face, as leis biológicas e, sem preocupar-se com o homem, perguntou a elas ardentemente o tremen- do porquê do seu próprio destino.

Desta verdade menor e mais próxima ele tinha necessidade, para orientar a sua vida no campo das ações. Queria conhecer os princípios que devia seguir, o conteúdo que devia dar às suas horas, a direção que devia imprimir aos seus passos. Sem uma precisa direção guiando nossos passos, sem uma exata finali- dade orientando nossas ações, a vida se transforma num recipiente vazio. A vida é um vaso ao qual se deve dar um conteúdo, é um meio que necessita de um fim. E não bastava para ele um fim genérico, de uso geral, feito para todos. Sentia-se irremediavelmente diferente; pressentia não somente um trabalho,

mas também um objetivo especial. Não podia absolutamente reduzir-se à situa- ção de ovelha no rebanho, de homem construído em série. Tinha o seu caminho inexoravelmente traçado, doloroso, perigoso e exaustivo, mas seu, inconfundi- velmente seu. Embora submetido à incompreensão, devia percorrê-lo com hu- mildade, sozinho, sob a cruz da dor. Era seu sagrado dever conhecê-lo, para percorrê-lo. É um fato que ninguém pode, mesmo no fundo das mais terríveis desgraças e sob a mais severa condenação do destino, destruir a consciência da sua própria íntima nobreza, o que não é soberba, pois se cala, nem pode excitar a inveja, pois é frequentemente sepultada sob a mais esquálida miséria.

Tanta consciência queria ter dos seus atos, que sentia o dever de conhecer primeiro o plano universal, para, dentro desta ordem, descobrir o seu particular plano de vida. Este era para ele, e não podia deixar de ser, uma construção or- gânica, um edifício complexo, para cuja edificação se fazia indispensável um projeto exato. Quanta distância de certa leviandade inconsciente, quanta serie- dade em face de certos epicurismos de gozadores! Apesar disso, este relato ainda corre o risco de não interessar, pois uma consciência tão profunda será, provavelmente, considerada por muitos como procedimento de louco. Que gra- ve timbre de bronze adquiria então o som dos seus pensamentos e o significado dos seus atos! Preparava-se assim para um trabalho muito sério, para o qual sentia não poder encontrar ajuda senão em si mesmo: compreender o universo, compreender-se a si próprio e, na vida do universo, entrosar a sua vida.

Entretanto já sentia quão pouco teria feito ao conseguir tudo isso, diante do quanto ainda lhe restava a fazer. Chegando até lá, não conquistava mais do que uma luz fria, pois a simples aquisição do conhecimento não modificava nada, não atuava, não fazia amadurecer, não transformava. O farol indica, mas não percorre o caminho. Depois de compreender, é necessário atirar-se ao campo e seguir a rota. Tratava-se de um áspero caminho espiritual, no qual ele estaria ainda mais solitário do que na procura do conhecimento. Após mo- bilizar todos os recursos da inteligência, do estudo, da observação e da intui- ção, era necessário acender a grande flama do coração, do sentimento, da pai- xão, porque só quem arde realiza, amadurece e se transforma. Precisava agir, precisava modificar-se. O pensador arrisca-se a permanecer um teórico, pois, quanto mais pensa, mais foge à ação. Após a iluminação da mente, era neces- sário lançar o coração, e após o coração, o seu próprio ser, por inteiro. O pro- blema não era mais compreender, e sim arder, consumir-se. As concepções deviam transformar-se em sensações, o conceito de Deus em sensação de

Deus. Que tremenda transformação biológica o esperava! Devia trocar conti- nuamente os gêneros de trabalho, modificando sua capacidade e aptidões; devia adaptar-se, sabendo transformar-se segundo as mutáveis exigências do caminho a percorrer. Hoje, busca e reflexão; amanhã, paixão; a seguir, ação e transformação; e depois, sensação no mundo do espírito. Mas qual era o su- premo objetivo, a máxima realização? Nesse momento, o sonho tornava-se gigantesco, estando além das possibilidades da sua compreensão; o anelo de ascensão atingia uma vibração tão intensa, que ultrapassava as suas possibili- dades de percepção. Assim lhe aparecia a princípio confusa, mas lhe surgiria sempre mais límpida e evidente, aquela zona de luz que estava no seu destino, ao fundo, além do báratro escuro das provas. Nessa luz se cumpria o ciclo da sua vida. Nessa luz se reencontrava com o Cristo.

Mas surgiu-lhe desde logo um terceiro problema. O problema da prova e da dor. A sua vida continha nada menos que um abismo de sofrimento, um mar de obstáculos a superar. Ele se defrontava com uma vontade tenazmente ad- versa, que lhe contrariava essa realização suprema. Era necessário enfrentar, sofrer e vencer tudo isso, era necessário saber não somente atravessar esse in- ferno sem se perder, mas também sair ileso e triunfante. O seu edifício de pen- samento e de paixão devia resistir a esse tremendo choque sem se abalar. Assim, uma vez diplomado, entrou na vida. Teve o pressentimento da hora pavorosa e tempestuosa que o esperava. Quando o destino “quer”, ninguém pode obter aju- da e mudar as provas. Encontrava-se então na sua zona de determinismo. Não havia salvação. Estava só, contra aquelas forças desencadeadas. Sempre estamos a sós em face de nosso próprio destino.

Concluindo a sua juventude, apresentavam-se a ele três vias, pelas quais devia percorrer um tríplice caminho: “compreender, atuar e sofrer”. Uma trí- plice escola o esperava: a escola do pensamento, a escala do coração e a escola da dor. Todo o seu ser devia agitar-se a fundo, com todos os seus recursos: inteligência, sentimento e vontade. Todas as suas fibras deviam ser postas em ação, para trabalhar e dar o seu rendimento. A sua vida era digna dele.

Diante da sua juventude, as três estradas se abriam simultaneamente. Na ló- gica do seu destino, eram um único roteiro, com um só significado. Isto por- que “compreender” significava encontrar por intuição, em si mesmo, a grande verdade, o seu próprio ser universal e, no seio dele, sua própria verdade parti- cular, seu ser humano. Tratava-se aqui de “encontrar”, porque certas sínteses supremas não podem ser atingidas com a razão nem improvisadas, não podem

ser encontradas nem possuídas, a não ser por quem as alcançou através da ma- turação. Depois, “atuar” significava a catarse mística de sua ascensão do plano humano até ao plano divino. Por fim, “sofrer” significava atravessar a sua pu- rificação na expiação.

Aquela tríplice estrada que se lhe abria nada mais era senão uma tríplice forma de realizar-se a si mesmo de três diferentes maneiras:

1o) Encontrando-se no conhecimento do universo e de si mesmo;

2o) Purificando-se na dor, para conquistar a própria redenção através da ex- piação;

3o) Operando a própria transformação, para realizar a ascensão espiritual que o havia de levar até à visão do Cristo e à sua união com Ele.

As três estradas estavam ligadas por um nexo profundo e convergiam para o mesmo ponto. A trajetória única do seu destino estava claramente traçada e completa. O significado da sua vida e o caminho a percorrer estavam eviden- tes, das premissas às conclusões.

IX. A DOR NA LÓGICA DO DESTINO