• Nenhum resultado encontrado

Ele foi tomado assim por uma dúvida atroz, que o impeliu a engolfar-se nesta nova realidade da Terra, antes negligenciada. Qual seria a lei que o condenava com tanta segurança e convicção? Não seria possível, talvez, que fosse ele quem tivesse errado no seu dissídio com o mundo? Conheceria de fato este mundo, que ele sempre reprovara? Por que as coisas aconteciam de tal modo? Podia ser que o mundo tivesse boas razões e que possuísse uma lógica diferente, a qual ele não compreendia ainda, pois a desconhecia. Que lógica seria essa e por que seria assim? Haveria ali em ação alguma força ignorada, que escapara à conquista dos seus conhecimentos? Além das afir- mações já experimentadas pela inteligência e pela bondade, poderiam existir afirmações diversas, ainda não exploradas por ele? Quem teria razão: ele ou o mundo? Quem era superior? Se o mundo era sedento de prazeres materiais, não era ele, por sua vez, sedento de prazeres espirituais? Se o mundo procu- rava fugir à dor com o gozo de seus sentidos, não procurava ele igualmente fugir à dor no gozo do espírito?

Começou então, a partir desse novo ponto de vista, a revisão de seus valo- res espirituais. O mundo cercara-o, assediara-o e penetrara-o, encontrando-se agora dentro dele, que dava, ele mesmo, continuidade à obra do assalto, cum- prindo sua própria autodestruição. Os fatos levavam-no a crer que toda a pre- cedente direção de sua vida fora desbaratada e que lhe era necessário agora uma direção inteiramente nova, cujo percurso, uma vez começado, ele teria de seguir até ao fundo. Sua razão prática chamava seu espírito, como um culpado, para prestar contas pelos seus sonhos e ideais. Queria ver o que aconteceria com estes, ao serem estraçalhados pelo inferno terrestre. As partes se inverti- am. Agora era o mundo, no qual ele fora obrigado a cair, que, juntamente com ele, desafiava o Evangelho. Qual seria a resposta deste? O que aconteceria àqueles delicados sentimentos de bondade, perdão e amor, ao serem transpor- tados para o reino da força, onde o maior mérito está em saber rebelar-se e vencer? Se a lei do Evangelho, no céu, subverte as leis da Terra, estas, na Ter- ra, subvertem aquela. Ficava assim arruinado o motivo fundamental de sua vida. Já não se tratava de olhar do alto do céu as misérias da Terra, mas sim de ver, a partir destas, quão longínquo e intangível era o céu.

Era a hora de pôr em contato com a crua realidade aqueles ares de super- homem do espírito, que vai à cátedra para julgar e condenar o homem co-

mum. Era a hora de encolher-se às suas devidas medidas, responsabilizando- se pelas próprias desgraças e misérias. Era a hora de se tornar vil e desgraça- do, como humilde nulidade nos caminhos. Era a hora de despir-se do orgulho de superamentos passados, deixando, reduzida a isenções de privilegiados, a aristocracia do pensamento e do sentimento, para enfrentar uma realidade que era necessário olhar face a face. Então, oferecendo-lhe uma rude lição, em cuja brutalidade ele, que se tornara um deles, devia encontrar uma salutar lição de humildade, o mundo lhe falava agora: “Fica sob o jugo conosco, se somos de fato, como dizes, todos irmãos segundo o Evangelho”. Era isto que o mundo lhe dizia. A experiência era importante. Num retrocesso involutivo, devia perder as vantagens da libertação e arrostar todos os gravames da ma- téria. O que, então, é mais importante: aperfeiçoar-se para fugir do mundo, voltando-lhe as costas, ou esquecer-se de si próprio, para imergir no mundo, suportando com os seus semelhantes as suas penas? Não era este o caminho que ele, livrando-se da riqueza e aceitando o trabalho comum como um de- ver, tinha escolhido? Provavelmente, o progresso se aprofunda e se completa nos retrocessos, não sendo possível a ascensão completa sem a descida.

A descida era terrível. Não havia ele experimentado a lição da bondade e do ideal? E não fora, pelo menos naquela condição, traído por estes princípios? Por que insistir na utopia do Evangelho, se tais eram os resultados? Talvez Cristo lhe tivesse sido uma grande ilusão, não compartilhada pelo mundo, que insistia em reprová-lo, demonstrando-lhe a falsidade com seu oposto teor de vida. Aqui em baixo, não faziam sentido o insensato amor por Cristo, a tola fé em Deus e o espírito de sacrifício na intenção de atingir, quem sabe quando, um céu longínquo e, por enquanto, inatingível. O mundo dava-lhe uma lição de senso prático e utilitário.

Por que andar em busca de resultados tão afastados, quando havia outros mais próximos, sobre a Terra? Sem dúvida, pelo menos por agora, a experiên- cia da bondade fracassara para ele. Isto o levava a mergulhar na experiência da vontade e da força, na esperança de que estas não o traíssem, como o fizera o ideal. Era provável que estas fossem igualmente falazes, mas ele não as expe- rimentara, sendo esta talvez a única razão pela qual ele não fora traído por elas ainda. Já realizara a experiência da inteligência e do coração. Não lhe faltava senão a experiência puramente humana e viril da vontade e da força. Entrava assim em uma nova fase de vida. Superada a prova da dor como instrumento de redenção (concepção altruísta feminil da vida), atirava-se agora à prova da

luta como instrumento de conquista (concepção egoísta masculina da vida). A velha experiência trocava de natureza e se completava na outra, que era inver- sa e complementar. A aceitação passiva se transformava em ação viril. Por um momento, desprezou o aspecto negativo e passivo do ideal, feito de sacrifício, piedade, bondade e aceitação, para realizar seu aspecto positivo, feito de von- tade, força, luta e conquista. Era uma descida do céu à Terra, talvez útil para assegurar a sua posição.

Tinha, agora, de fazer suas não as leis do céu, mas sim as da Terra e aguar- dar os resultados. Tinha de realizar uma nova experiência, sabendo bem que esta não se pode fazer por intermédio de outros, mas somente com meios, pe- rigos e também resultados próprios. Precisava mudar. Não se tratava mais de ordem, de harmonia do divino, de amor ao próximo, de bondade e de justiça. Tinha de sair deste paradisíaco concerto e entrar num mundo caótico de luta e dissonâncias, de agressão e prepotências, onde o necessário não é coordenar- se, mas sim reagir e vencer, impondo-se a tudo e a todos. Seria isto verdadei- ramente diabólico e infernal, ou haveria certa nobreza na ferocidade, certa justiça na força, certa respeitabilidade na baixeza?

Às vezes, parecia-lhe quase maravilhoso o novo ponto de vista. Havia, sem dúvida, admirável coragem no insignificante homem, para ousar, sozi- nho, desafiar o caos e impor-se a ele, sem o conforto das harmonias divinas e do auxílio superior. Havia terrível coragem no franco reconhecimento de ser fera e de querer adaptar-se à lei das feras, com todos os riscos e perigos. Na- quela inferioridade de grau evolutivo, em sua primitiva insensibilidade e ru- deza elementar, havia a potência do bloco de mármore ainda não esculpido; havia sempre, embora em germe e menos evidente, a mesma centelha de vida de Deus. Do ponto de vista da rude virilidade, a piedade e a bondade pareci- am-lhe debilidade e incapacidade. Visto pelo homem da Terra, atleta da for- ça, aquele outro homem do ideal parecia abandonado e inconsciente, embora fosse um atleta do pensamento.

Via, no entanto, que aquele tipo de homem comum, tão condenado por ele, era perfeitamente equilibrado no seu ambiente terrestre, ao qual nosso perso- nagem não se adaptava. Via que a natureza premiava com o sucesso a prepo- tência e a astúcia, garantindo a vida aos que sabem usar a força para vencer. Via que, na prática, o triunfo pertence apenas àqueles que destroem o inimigo, razão pela qual é inevitável um fim brutal para os que não sabem se defender e oferecem a outra face. Via agora o que o mundo é, e não o que será ou deveria

ser. A lei que os fatos lhe mostravam não mandava ser bom e altruísta, mas sim forte e egoísta. Via uma natureza desapiedada, que não socorre os fracos; pelo contrário, os condena e persegue, para liquidá-los. O tipo que o mundo exaltava, o modelo que se apresentava como ideal a se imitar, era completa- mente diferente do modelo evangélico que adotara para imitar: Cristo.

Quando vivia sua experiência no sentido do Evangelho, não fora compre- endido; ao contrário, fora condenado. O mundo o tratara como um imbecil, porque estava convencido de que ele o era de fato. Via no mundo uma comple- ta indiferença por tudo aquilo que não significasse vantagens imediatas para o próprio egoísmo; uma completa indiferença para com o sacrifício e o altruís- mo, que só interessavam quando podiam trazer vantagens pessoais. Que im- portância tinha para os outros se ele podia ser mesmo um gênio, um santo ou um mártir? Seus semelhantes não podiam se interessar senão pelo rendimento prático, razão pela qual o valor dele era avaliado em função da medida em que pudesse ser utilizado para vantagens dos outros. O super-homem é um fraco no campo humano, sendo, por compensação de equilíbrio, condenado à misé- ria do anormal. O caminho do ideal é via de sacrifício e de martírio. O gênio é um inepto para a prática da vida. Compreende onde os outros nada compreen- dem, mas, em compensação, não compreende nada onde os outros tudo com- preendem. É insignificante onde os outros são exuberantes. Tudo isto nada importa ao homem comum, que apenas se interessa em descobrir qual o ponto fraco do tipo de exceção, para feri-lo ali e, então, desfrutá-lo ou destruí-lo.

Via que a lei altruísta do Evangelho não era, nesse mundo, sentida como verdade senão pelos fracos, os quais, procurando proteção, esperam tudo do altruísmo; não era sentida senão como mentira pelos fortes, para os quais o altruísmo dá prejuízos. Em suma, a Terra não era um lugar de paz e de segu- rança paradisíaca como o Evangelho pregava, mas sim de grande miséria, on- de urge a defesa e impera sem tréguas a lei desapiedada da luta de todos contra todos; um ambiente no qual procura-se, exalta-se e adora-se a força. Bondade e justiça são refinamentos dos grandes senhores; são luxos criados para os an- jos, que estão no céu, e não para os demônios, que vivem na Terra. Aqueles que dispõem de força usam-na para si mesmo. Apenas os fracos em busca de auxílio se refugiam no Evangelho. Assim o Evangelho, feito para a ascensão humana em direção ao espírito, redunda em refúgio para ineptos. O exército que o segue não passa de multidão à procura de acomodamentos parasitários e de evasão da inexorável e desapiedada justiça das leis biológicas. Se essa jus-

tiça é salutar para arrancar do refúgio todos os retardatários da evolução, todos os refratários ao trabalho que o progresso impõe, todos os preguiçosos e inep- tos que resistem à lei de seleção do mais forte, ele se perguntava que resulta- dos antibiológicos, que seleção às avessas a lei evangélica acabaria produzin- do, tão alterada assim em sua aplicação, ao ser transplantada para o ambiente terrestre. Não seria esta adaptação uma terrível vingança da Terra contra o céu, uma demonstração do absurdo da prática do ideal, uma traição contínua ao martírio de Cristo? Se, sobre a Terra, o Evangelho não podia existir senão as- sim alterado, de que servia havê-lo proclamado? Se estes eram os resultados práticos, não seria uma aberração insistir nesse caminho? Não se podia negar, portanto, que sobre a Terra também havia uma lógica, embora terrível. Mas as duas lógicas – a do céu e a da Terra – não podiam se encontrar senão fatalmen- te invertendo-se, traindo-se e destruindo-se mutuamente.

Ele, que vivera a experiência da vitória da lógica do céu sobre a da terra, deveria viver também a experiência inversa. Esta era, ao menos agora, uma realidade no mundo. Duas posições exclusivistas, inconciliavelmente contrá- rias. Cada uma das duas afirmativas, no seu absolutismo, não apenas impli- cava a completa negação da outra, mas também investia profundamente so- bre o homem, que, para viver uma, tinha que necessariamente renegar a ou- tra. E ele era tão irredutivelmente honesto e leal, que não podia mais adaptar- se à aviltação de um acomodamento.

Aqui estava, então, a terceira posição, que, tendo sido cuidadosamente ela- borada nos séculos, encontrava-se aninhada agora no centro da fé e bem ar- mada de defesas; uma posição na qual triunfava-se jogando com palavras, à força de prudentes silêncios sobre os princípios mais profundos, sofismando a consciência e refugiando-se nas formas, até conciliar, ao menos em aparência, a terra com o céu.

Tinha-se a doce ilusão de se poder conquistar o céu sem incomodar o cor- po. Isto se formou por um tácito consenso, tão profundamente instintivo, que todos, mesmo sem o saberem, estavam de acordo; uma convenção tão estável, que se fixara como costume. O instinto da vida animal, impulsionado pelas leis biológicas, adaptava-se à subversão celeste através de uma aceitação par- cial, sustentando-a por um lado e reagindo contra ela por outro. Resultava daí a formação de um tipo híbrido, nem animal nem anjo, em íntima contradição consigo mesmo. Compreendia então como a medíocre natureza do homem comum podia adaptar-se a essa vida de anfíbio. Talvez fosse esta a sua natural

fase de transição na evolução. Revoltou-se contra isto. Queria continuar sendo ele mesmo e, até na própria na queda, preferiu cair inteiramente, mantendo-se coerente. Detestava os sonolentos, os prudentes, os acomodatícios, as meias medidas. Queria um equilíbrio estável na Terra, e não um incerto esvoaçar sobre o pântano; queria afrontar com coragem o inferno terrestre, em vez de se colocar como indigno às portas do paraíso. Na terrível aventura, queria ser coerente e honesto. Seguia o seu instinto e a sua natureza. A fundamental reti- dão do seu caráter, que estabelecia não apenas a sua inadaptabilidade às com- binações e à mentira, mas também a sua revolta contra a vileza de pensar so- mente no próprio interesse, constituía o fio que jamais se rompeu e que, mes- mo nesta hora de trevas, ainda o mantinha ligado ao céu. Este era o único fio que lhe permitiria, embora ele não previsse, tornar a subir.