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Aquele primeiro ano de exílio em uma região perdida no extremo da Sicília, tão espiritualmente longe da sua mística Úmbria, foi de profundo sofrimento. Era este o primeiro gole do cálice da sua amargura. Parecia-lhe impossível descer mais baixo. Que desolação de alma, de trabalho, de ambiente! Os habi- tantes do lugar, muito corteses, diziam-lhe: “Ora, fique conosco. Aqui é tão bonito!”. E ele pensava: “Ah, poder fugir!”.

Parece necessário que a alma deva primeiramente ser espoliada de tudo, a fim de tornar possível a manifestação de alguma lei superior da vida; parece que, antes de se revelar por atos, estas leis esperam a alma ter sido flagelada até ao extremo. Parece que essas leis exigem como garantia a comprovação do máximo que o indivíduo pode suportar segundo suas forças. O espírito deve chegar a um vértice de tensão e desespero, que é o momento crítico no qual o fenômeno da catarse espiritual se realiza. Ocorre então um ressurgi- mento, em que as forças negativas assaltantes ficam vencidas e, transforman- do-se de negativas em positivas, passam a construir, ao invés de demolir. Para que tais prodígios possam verificar-se, são necessárias condições especiais de espírito e de ambiente. E estas eram as condições que ele, mesmo sem o sa- ber, guiado por seu instinto, havia preparado. Não se improvisam tais culmi- nâncias, que somente podem emergir depois de longos períodos de prepara- ção subterrânea, cujo desenvolvimento ocorre sem que a consciência o saiba. Quando tudo está maduro, então o fenômeno se precipita rápida e irresisti- velmente, como uma explosão. As forças do destino, tão logo o fizeram tocar o fundo do abismo, transformaram-se, para elevá-lo e salvá-lo. Assim, ao in- vés de impulsos que lhe apareciam como demônios enfurecidos, desejando destruí-lo, ele se viu envolvido por impulsos que, à semelhança de anjos, ro- deavam-no amorosamente, confortando-o.

O que tinha havido? Como se tinha dado essa transformação? Fora obrigado a atuar na sua heroica experiência, mas era, por certo, uma interrogação colo- cada diante daquela providência, à espera de uma resposta decisiva. Neste mo- mento crítico houvera uma complicação no seu destino, que ele ligara ao nome de Cristo. Teria sido ele escolhido por Cristo? O seu destino estava naquele ponto crucial em que surgia a trágica pergunta: “Seria o Evangelho humana- mente aplicável, ou quem o aplicasse deveria terminar destruído?”. Esta per- gunta era uma força, porque se fundava em fatos e pedia aos céus uma resposta

concreta. E ele não podia calar-se. Nosso homem acreditava-se no direito de impor a si uma questão: “Ter-me-ia o Evangelho enganado?”. Levantava assim o seguinte dilema: “Se o Evangelho é verdade, Deus deverá me salvar; se Deus não me salvar, o Evangelho não é verdade!”. Com seu empenho tão sincero, pleno e definitivo em relação aos ensinamentos evangélicos, tinha dado às for- ças da vida tal impulso, que a sua posição atual exigia solução e resposta.

Gostava de se retirar para suas preces na solidão de uma colina rochosa, sobreposta à região, entre cardos e figueiras bravas. Ali, esperava uma nova revelação interior. Fora, nos trâmites da vida, esperava a passagem da Divina Providência, cuja manifestação já se fazia necessária agora. Sentia indistinta- mente que alguma coisa devia nascer, tanto de dentro como de fora, e que aquela hora era o ponto convergente no qual se manifestariam os resultados de toda a precedente preparação de sua vida.

A Divina Providência operou sua intervenção nos dois campos: o interno e o externo. Observemos primeiro o que sucedeu exteriormente. Na situação de pobreza à qual ele se reduzira espontaneamente, o trabalho tornara-se não apenas um dever, mas também um direito e uma necessidade, porque ele não dispunha de outros meios para viver. Sentia que a consciência lhe dava o direito de pedir e obter de Deus, em nome de Sua própria lei, aplicada por ele, um trabalho adaptado às suas capacidades. Assim, tão logo sentiu-se autorizado segundo sua consciência a contar com este auxílio, tudo aconte- ceu miraculosamente. Já considerava que seus semelhantes nem sempre se moviam por uma vontade autônoma, mas eram dirigidos por desígnios supe- riores. Desta vez, viu que uma vontade superior guiava de fato as vontades humanas. Deu-se uma convergência maravilhosa das mais diferentes circuns- tâncias, com ações dirigidas sempre ao mesmo alvo, sucessivamente, e reali- zadas pelas mais diversas pessoas, constituindo uma conjuminância de natu- reza tão sagaz, previdente e inteligente, que ele não podia absolutamente inferir, se quisesse continuar objetivo, qualquer possibilidade dos resultados obtidos terem sido fortuitos. O acaso não constrói, e os fatos revelavam a construção de todo um edifício, cuja fisionomia trazia uma lógica evidente. Tratava-se de fatos externos, cujas combinações só mais tarde seriam com- preendidas. Não era um caso de atitudes de espírito, mas sim de mudanças radicais, das quais derivava uma posição econômica e social, coisa que não se realiza por sugestão. Muitas aspirações, preparadas por longo tempo e com sagacidade, cuidadas com atenção e esforço, defendidas tenazmente

com vontade e habilidade, nem sempre se concretizam. No entanto, aqui, tudo se realizava de golpe, alcançando um resultado complexo, apenas incer- tamente preparado e desejado.

Quem preparara e desejara tudo aquilo de forma tão adaptada às necessi- dades do interessado, tão precisamente proporcionada à suas forças e capaci- dades? Quem, em lugar dele, fizera isso por ele? O resultado ali estava, e ti- nha de existir uma causa. Agradeceu a Deus e concluiu, então, que a Provi- dência não abandona os justos e que, ao menos até aquele momento, o Evan- gelho não o traíra.

A sua utopia fora confirmada pela realidade. A intervenção da Divina Pro- vidência fora comprovada objetivamente pelo método experimental. Esta in- tervenção não era uma afirmação teórica e genérica ou um puro ato de fé, mas sim um ato experimental que, pelo menos para ele, constituía um documento indestrutível, de valor comprobatório indiscutível. Pusera o Evangelho à pro- va, e Cristo, milagrosamente, havia-lhe respondido: Sim.

Libertado de seus bens hereditários segundo a justiça, em poucos meses en- controu-se numa posição social verdadeiramente justa, porquanto ela dependia exclusivamente de seu trabalho. Assim, ao contrário do que receava e do que se podia logicamente esperar do ponto de vista humano como consequência de sua conduta, ele não sofreria a falta do necessário. Agora, esse lucro era seu. Podia dali em diante viver também economicamente, como era justo.

A intervenção da Providência e a presença de seu auxílio, bem como a pro- va da verdade do Evangelho, não se demonstraram apenas em fatos exteriores, mas também em acontecimentos interiores, no seu espírito. Para ele, estes fo- ram mais comprovadores. A maior transformação realizou-se não no plano físico, mas sim no plano espiritual; não na sua posição humana, mas sim na sua alma. Tudo lhe apareceu iluminado por uma luz diversa, que a tudo dava um sentido mais profundo. Toda a sua personalidade passara por uma trans- formação em seus meios de percepção, e o universo lhe aparecia sob nova re- velação. A mudança de sua posição social era coisa de valor secundário para ele. O verdadeiro resultado era este, espiritual. Aqui estava o verdadeiro ren- dimento de todas as provas superadas; este era o fim maior, diante do qual tudo o mais era um apenas meio. E que outra significação evolutiva poderiam ter as provas, se não fossem dirigidas para o campo espiritual?

Ele semeara e já colhera. Começou para o nosso protagonista outra fase de seu caminho, que vai dos quarenta e cinco aos cinquenta e cinco anos. Este

período, que é não somente a continuação lógica e a maturação dos preceden- tes, mas também a preparação dos que se deverão seguir, tem um conteúdo típico e particular de ressurreição. É uma fase sobretudo de colheita, mas tam- bém de semeadura; é uma fase de conclusão do período precedente, mas tam- bém de princípio para o seguinte, no qual se desenvolverá aquele destino. Por dez anos, esta é a nota triunfal que dominará. Veremos depois aonde conduz este Domingo de Ramos.

As três estradas nas quais ele se atirara quando jovem tinham sido, por vin- te anos, estradas de trabalho e de martírio. Porém, agora, transformavam-se em três estradas de ascensão e de triunfo. Aqueles três motivos do seu destino invertiam-se agora. A cada precedente negação sucedia agora uma afirmação correspondente; a cada renúncia e constrangimento, uma expansão; a cada tristeza, uma alegria. Tudo que estivera sufocado no plano da matéria, ressur- gia agora no plano do espírito. Estas constatações exprimiam as leis daqueles fenômenos. Parece que a negação das coisas humanas é a condição da ressur- reição nas coisas divinas.

Chegando a um único fim, juntavam-se num primeiro resultado, em uma primeira solução para ele, as três estradas que nosso protagonista seguira por vinte anos: “Compreender, agir, sofrer”.

1o) Compreender – O problema da consciência, proposto por ele em sua juventude, ao entrar na vida, estava finalmente resolvido. Continuara, depois de seus estudos universitários, a procurar nos livros, interrogando as filosofi- as, as religiões e a ciência. Mas essa fonte secara. Poucos livros tinham sen- tido profundo, por isso os abandonara. Substituíra-os pela maceração interi- or, silenciosamente dirigida à intuição imediata da verdade. Sentia que ape- nas esta o satisfaria. Por intuição, obtivera uma visão do funcionamento or- gânico do universo, atingindo deste a profunda sensação que só a persuasão oferece. Tinha posto de lado as vias da razão, impotentes diante do absoluto, e se avizinhara de Deus pelas vias da fé. Tinha feito do sistema da intuição um verdadeiro método de pesquisa.

Em seu espírito fizera-se luz completa. Resolvera, ao menos para si, o pro- blema do conhecimento. Como acontecera isto? Conseguira-o seguindo não as vias comuns de aquisição de cultura, mas sim um caminho bem diferente. Não enchera sua mente de erudição, mas conquistara um novo sentido de compreensão, como um novo olho para ver. O conhecimento era para ele uma nova forma de consciência, resultante não do estudo, mas sim da maturação

na dor. Esta maceração produzira nele uma transformação de personalidade, levando-o a um novo estado, no qual o conhecimento é como um novo senti- do, uma qualidade espontânea do espírito. Estas coisas não são habituais no mundo de outros, mas são fenômenos que, embora excepcionalmente, ocor- rem. Enquanto a cultura nada mais seria senão uma aquisição exterior, um verniz cerebral, todo o seu ser adquirira neste caso, por maturação evolutiva, uma transformação de consciência. Em outros termos, ele se encontrara no mais fundo de si mesmo, onde existe a mais completa consciência de si e do universo. Trata-se de um processo completamente diferente da aquisição de cultura com a qual o homem comum procura compreender as coisas. É algo que se consegue apenas através da experiência da vida, na escola das prova- ções, na luta e na dor; não é algo que vem de fora, trazido para o nosso eu, mas sim uma revelação de sua profundidade. Só se pode consegui-lo através da purificação, pois é como um processo de sensibilização, um mergulho da consciência nos estratos mais profundos da personalidade. O mundo de sen- sações e concepções latentes que estão contidos ali ressurge junto à consciên- cia, pois a evolução é apenas a expansão da consciência, sobretudo nos planos internos do eu, que são os planos superiores. Deus, que é a meta da consciên- cia, está de fato em nosso interior. A luta e a dor resultaram na capacidade de sutilizar a casca física da alma, tornando-a mais transparente, para permitir- lhe revelar sua íntima potência. Era este precisamente o fenômeno que agora se verificava. Esta descoberta de seu eu mais vasto, orientado para o funcio- namento orgânico do todo, dava-lhe um indestrutível senso de equilíbrio, de domínio sobre os eventos, de independência, de paz. Divulgou em publica- ções os resultados deste seu reencontro. Foi compreendido, entendido às avessas, incompreendido, condenado e assim por diante, segundo os diversos pontos de vista humanos. Mas isto não importava. O que realmente importava para ele era ter conseguido a plena maturidade. A divulgação dos resultados interessava apenas à cultura e ao melhoramento dos outros. Ele estava agora consciente de sua verdade, e isto lhe bastava.

Dentro desta mais vasta verdade, compreendera o significado do seu desti- no de expiação e de missão, entendera a infrangível verdade do Evangelho e o seu direito de confiar nele.

Perdera a riqueza de forma tão horrível, com tão nauseantes contatos, que nenhuma saudade lhe ficara na alma, restando pelo contrário uma grande re- pugnância por ela e um profundo sentido de piedade por quantos a possuem.

Portanto a experiência dera plenos resultados. A lição fora definitivamente aprendida. Em compensação, encontrara uma riqueza inalienável e indestrutí- vel, alcançando não somente a libertação das inúmeras necessidades que a civilização impõe, mas também uma imensa satisfação espiritual, uma sensa- ção de agilidade, de leveza e de quase superioridade moral ante o mundo juiz e sempre pronto a desprezar. Tornara a encontrar, muito viva em seu espírito, a sensação de Cristo, e esta era a sua maior alegria. Já compreendera também que, fossem quais fossem os acontecimentos, ele era agora uma bússola per- manentemente orientada. Sabia a que estava destinado e para onde queria e devia seguir. Via, nitidamente traçada, a estrada que tinha de percorrer.

2o) Agir – Resolvido o problema universal, no qual definiu e enquadrou o

seu problema particular, podia realizar-se a si mesmo, dando sua própria con- tribuição, livre e consciente, ao funcionamento do organismo universal. Sabia que não passava de um grão de areia no deserto, uma gota no oceano, mas era consciente e operante. Sendo elemento mínimo, era-lhe possível dar tudo e, dando-se completamente, podia entrar na comunidade universal dos seres que agem e vivem para executar o pensamento de Deus. Nesta direção, podia ago- ra, conscientemente, coordenar os seus esforços aos de todas as criaturas ir- mãs, para subir até Deus. Tornava-se membro e parte funcional do grande or- ganismo, como uma engrenagem indispensável, por menor que fosse, ao me- canismo imenso. Sua vida adquiria significação muito mais profunda, tornan- do-se música harmonizada com as mais longínquas esferas do universo. Nesta vastíssima atmosfera, unia-se a uma imensa realização do seu mais profundo eu. Sua vida movia-se em uníssono com a vontade de Deus e seu destino se desenvolvia de acordo com a Sua lei.

A realização de si mesmo atuava não apenas naquele sentido, mas também numa forma mais concreta, manifestando-se na prática das ações humanas. Sua maturação o levara não apenas ao conhecimento, mas também à consci- ência de si mesmo e do universo; não apenas à simples percepção das coisas, mas também a um novo modo de existir, que desejava ser ativo e operante, para se realizar também externamente, nos outros, nos seus semelhantes. Se ele havia conseguido sentir-se membro da comunidade de todos os seres do universo, como tal sentia-se também, de modo particular, da comunidade terrestre, mais próxima, onde devia especialmente agir e realizar-se. Com- preendia então que o grande passo de sua transformação não dizia respeito apenas a si mesmo, por mais importante que isso fosse, mas completava-se e

se valorizava com outra finalidade. Enfim, a transformação implicava e ex- plicava a sua missão terrena, que, manifestando-se agora pelas forças em ação no seu destino, constituía a valorização prática de sua vida. Não podia guardar só para si os resultados conseguidos. Divulgando-os, podia dar ime- diata contribuição ao conhecimento e ao bem da coletividade humana. Suas canseiras não ficariam encerradas nele; não dariam rendimento evolutivo para ele apenas. Podia finalmente explodir e expandir-se também na alma de seus semelhantes. Devia, para o bem de todos, dar público testemunho de suas experiências íntimas, sendo este um período de sua vida que o levaria também a uma atuação mais íntima.

A transformação interior que o atingira aprofundava-se e, naqueles dez anos, continuava a se desenvolver, fortificando-se como sensação e progre- dindo como poder e elevação. A realização do grande sonho de compreender tudo continuava, completando-se na realização daquela sensação das coisas divinas e da união com Cristo. A maceração interior que o amadurecera até à síntese do conhecimento, conduzia-o agora pelos caminhos da ascensão mís- tica. No período de dez anos que o esperava, percorreria esses caminhos, extremamente apressado, pois desejava atingir a maior profundidade, para alcançar a mais completa assimilação. Esta forma de agir encontrava seu desenvolvimento e assim se completava.

Todos caminhos eram de afirmação e de expansão máxima. Expansão de pensamentos, de atividade e de sentimento. Cada fibra de seu ser fora joeirada, mas dava agora seu rendimento, elevado à superior potência do espírito.

3o) Sofrer – A dor, como meio, havia agora alcançado seu fim. Fora posta de lado, porque era preciso assimilar os resultados conseguidos. Sem esta assimi- lação, as provas não teriam sentido. Vencera corajosamente, e o destino lhe concedia uma trégua, porquanto a lei de Deus não quer a dor pela dor, como inexorável punição, por malévola vingança. A finalidade da dor não é fazer sofrer, mas sim fazer compreender; o propósito da maceração é fazer progredir. Através da dor, ele conseguira certa purificação, alcançara uma luminosidade, realizara um refinamento, o que lhe permitiu emergir, viver e construir, nas mesmas proporções, no plano espiritual. Agora, a negação se convertia numa afirmação de equivalente proporção. Aquele destino ressurgia, demonstrando que não se sofre em vão, sobretudo quando se sabe sofrer. O passado dava seus frutos. A lei de esmagamento se convertia em lei de expansão. O Evangelho de Cristo era verdadeiro. Ele não apenas se tornara douto, mas também fora farta-

mente compensado no espírito, e as coisas da Terra lhe haviam sido dadas em abundância. O voto de pobreza fora substituído por uma nova posição social. O conhecimento dos grandes problemas fora alcançado e seria divulgado em triunfo. As provas haviam sido compreendidas por ele, tendo dado o respectivo resultado, e sua personalidade encontrava-se transformada. Superadas as disso- nâncias, o seu destino, harmonizando-se com o universo, estava em paz. A mis- são de bem revalorizava agora a sua vida. A fase mística coroaria a maturação espiritual, completando para ele a transformação biológica. À fase de expiação sucedia agora a realização em todos os campos. As três estradas convergiam para uma completa revalorização, no plano do espírito, de tudo quanto em seu ser fora destruído no plano da matéria.