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O nosso protagonista começou a pôr metodicamente em execução o pro- grama da sua própria espoliação, realizando-a de modo inteligente. A sua ati- tude não era de fuga, como a de quem, sem preocupar-se com as consequên- cias, ignorando as reações desta força que se abandona – a riqueza – entrega apressadamente tudo aos pobres e volta as costas ao mundo, para se ausentar no seu misticismo, solitário. A ele cabia, pelo contrário, o trabalho entre os deserdados, para suportar com eles o peso e compreender o sentido da sua vida. A esmola, que mostra no benfeitor um rico e no beneficiado um pobre, não aproxima os homens, não cobre o abismo que os divide, não resolve a injustiça das diferenciações econômicas. Custando-lhe relativamente pouco, essa esmola é um paliativo ao qual o rico recorre, porque oferece-lhe a vanta- gem de tranquilizar sua consciência, dando-lhe a ilusão de garantir o paraíso. O cálculo indica uma vantagem maior que o sacrifício, tornando conveniente o negócio. Mas o pobre, por ser talvez apenas um rico frustrado e, portanto, pior que o rico, pede justiça apenas quando esta significa a defesa do seu ego- ísmo e, sendo quase sempre indigno de esmolas, porque ele mesmo foi a cau- sa da sua pobreza, por preguiça ou esbanjamento, não precisa tanto do piedo- so supérfluo dos outros, mas sim da sua aproximação fraternal, da descida deles até à sua própria miséria, para viverem-na cotidianamente, provando toda a sua amargura, até à sua degradante baixeza. Somente diante dessa des- cida até ele, o pobre sente que a justiça foi feita e que não lhe resta mais o direito de pedir; somente assim o abismo é transposto, a distância é destruída, pois o ser que vivia outra vida e parecia de outra raça, torna-se um dos seus e vive a sua mesma vida, com as mesmas necessidades, psicologia e dores. Este é o veemente egoísmo do pobre, tão cheio de avidez, que não concede ao rico nem mesmo o supérfluo que o rico lhe dava. Mas o nosso protagonista, que sentia a justiça de Deus, sentia também que aquele egoísmo era em grande parte um direito à vida e ao progresso, e que era seu dever dividir as suas van- tagens, pois, na verdade, tentar monopolizá-las para si não passaria de um furto. Sentiu que a esmola não é completa se não se tomar nos próprios om- bros a cruz do pobre, para carregá-la com ele, ao seu lado. Sentiu que a ver- dadeira esmola é somente essa que irmana, que nos faz, sem distinções, todos iguais como filhos de Deus. Sentiu que somente assim – não importa se as

religiões se descuidam desta questão vital – era possível aplicar o Evangelho e ter o direito, sem mentir, de se dizer cristão.

Assim ele, como cristão, não quis fugir ao cumprimento de seu dever e re- cusou não apenas a comodidade passiva da solidão contemplativa, onda há excesso de tempo e de paz, mas também a ociosidade da pobreza resignada na inerte aquiescência, onde se permanece indiferente às fadigas e às dores do mundo. Como cristão, abriu os braços às fadigas e às dores alheias, para fazê- las suas, buscando o seu posto de luta na vida. Sentiu que nenhuma espécie de penitência pode justificar o sutil pecado do isolamento, que nos afasta da fra- ternidade na luta e na dor, ou o pecado capital do ócio, que nos afasta do gran- de dever individual e social do trabalho. Não é, porventura, já suficiente carga de penitência a dor do mundo, para que se deva artificialmente buscá-la de outra forma? Tendo definido a sua posição, preparou-se para agir. Quem ver- dadeiramente crê numa coisa começa a praticá-la, ao invés de pregá-la. Amava a fé criadora, as virtudes dinâmicas e operosas, e se lançou à obra. Enquanto as suas intenções não se tornaram claramente visíveis no exterior, manifestando- se em fatos concretos, as coisas andaram discretamente. Seus atos podiam ser interpretados de maneira diversa, e o mal-entendido o defendia. Assim o dei- xaram viver. Mas, quando, pouco a pouco, começaram a compreender o que ele de fato queria fazer, os seus dependentes, que receavam perder as suas po- sições e ser despojados das suas utopias, ocultamente se juntaram para tomar conta de tudo e, antes que qualquer outro o fizesse, iniciaram o cerco. Quando começaram a compreender suas verdadeiras intenções, deram início às apreci- ações, aos juízos e, com estes, à condenação. Começava assim, econômica e moralmente, o trabalho de sua demolição. Essas eram as leis normais e natu- rais às quais ele devia submeter-se. Agindo inexoráveis no seu plano, elas se- guem a própria justiça. Não importa se trata-se de um mártir ou de um santo. As suas reações pertencem a outros mundos, que a natureza terrena não leva em conta, ignorando-os. As compensações surgirão depois, noutro lugar, e não aqui na Terra, que é governada por outra lei: a lei do mais forte. Ele se encon- trava entre os vencidos aqui em baixo, onde não importa que se esteja destina- do a elevar-se mais tarde. Tinha de sofrer, portanto, a sorte impiedosa dos ven- cidos, suportando todas as torpezas do aniquilamento.

Não pediu ajuda a ninguém, porque sabia que este era o seu caminho e queria segui-lo até o fim, para não renegar o Evangelho. Além disso, sabia muito bem que quem é hábil para negociar gosta de fazê-lo apenas em benefí-

cio próprio. Assim, superou a tentação de recorrer a parentes e amigos, e o cerco continuou. Enquanto os interessados no caso o atacavam e espoliavam, o mundo o julgava. Os primeiros o assaltaram com trapaças e traições, o se- gundo o cercou de uma atmosfera surda de desprezo. Desprezo, porque não sabia vencer no plano humano dos valores comuns; desprezo, porque perdia o poder que já possuía e tinha de cair entre os pobres, os deserdados, os mendi- gos. Devia, portanto, sofrer a mesma sorte destes; devia, como eles o são, ser considerado um falido na vida, uma coisa sem dono, um pedaço de carne feita de miséria, que se pode pisar impunemente, feita exatamente para ser pisada. Sentia a injustiça do julgamento, mas se confortava na tranquilidade e na sa- tisfação da sua consciência. Restava-lhe, porém, a humilhação, pela qual era queimado. Queimava-o não a humilhação em si, pois ele colocava seu inte- resse em coisas bem diversas e sabia que o juízo do próximo não podia elevá- lo nem abatê-lo, mas sim o isolamento, que é doloroso para todos, sobretudo para os espíritos mais retos e sensíveis, que sentem de maneira mais viva a necessidade da fraternidade humana. Foi julgado sem piedade como inepto, pois só assim se podia explicar e admitir o empobrecimento. Reprovaram a sua inaptidão e suspeitaram da sua boa-fé. Quanto mais ignorante era o seu próximo, tanto mais este se apressava a julgá-lo da maneira mais inexorável. Perdeu todo o respeito da parte dos outros. Compreendeu amargamente que a estima e a atenção dependiam da sua posição social. Tornou-se o imbecil, o alvo preferido dos críticos fáceis e triunfantes, sempre heroicos diante de um vencido, mas invariavelmente animaizinhos tímidos e obsequiosos diante de um forte. Aprendeu a conhecer toda a vileza humana. A experiência da ver- dadeira imitação de Cristo começava a se tornar trágica. Que seria feito dele? Teria naufragado, junto com a sua posição social, também a sua alma? Que horas de desespero aguardavam por ele, o louco?

O julgamento da opinião pública, no seu ambiente, fixava-se, consolida- va-se e divulgava-se. Ao seu redor, em lugar da antiga auréola de estima e de atenção, expandia-se agora um odor de apodrecimento. Há seres vis na soci- edade, que, como certos vermes imundos, vivem de todos os produtos em desagregação e os farejam de longe, para correrem prontamente, ao primeiro sinal, em busca da presa. Eles cumprem a função biológica de apressar o fim e de transformar aquela podridão em outra forma de vida, ainda que de tipo inferior. Ousara desafiar as leis do mundo, por isso era justo que este se vin- gasse. Ninguém mais poderia detê-lo agora. A princípio, o sacrifício é belo,

livre, generoso, heroico, no entanto, ao final, ligamo-nos inexoravelmente a ele, que se torna então miserável, forçado, atroz, impiedoso. A sua nova po- sição trouxe consigo os piores Judas do mundo dos negócios, os esperta- lhões, ávidos por liquidá-lo, sugando-lhe tudo o que fosse aproveitável. Amargamente, estudou aqueles rostos ávidos e a sua psicologia. Com que prudência farejavam a vítima à distância e como se moviam depois ao seu redor, cautelosos, assegurando-se de que ela já não podia morder! Com que garbo felino a cercavam de todas as astúcias. Como, à semelhança da aranha atacando uma mosca, amarravam a vítima, para que não mais pudesse mo- ver-se e, então, amparados na justiça, envolviam-na em sua baba e a suga- vam! Com que olhar ávido de vampiro espreitavam, para, nos seus últimos arrancos, desferirem o ataque final e se banquetearem sobre a vítima enlea- da! Apareceu-lhe assim horrorosa aquela riqueza, que atraía semelhantes espíritos. Maldisse então o esterco do demônio, ídolo do mundo!

Vamos à conclusão. Os vampiros, por fim, arrancaram suas máscaras. E a luta travou-se então sem quartel e sem escrúpulos, tornando-se a verdadeira luta corpo-a-corpo, a feroz luta pela vida, sem tréguas e sem piedade. Em pouco tempo, ele se encontrou por terra, pobre, abandonado e desprezado. Cumpria-se o primeiro grande ato de seu destino. Estamos no momento mais desolado, no mais profundo ponto da descida. Eis que ele tem de aban- donar seu ninho e pôr-se a vagar pelo mundo, sem ter mais a sua casa. Ar- rancaram-no de seus caros e velhos hábitos; toda a sua delicadíssima sinto- nização vibratória, que ele ajustara ao seu ambiente, foi destruída; todos seus doces afetos foram dilacerados. Todas as suas coisas, recordações de outros tempos, que eram do passado de sua vida, foram atiradas e espalha- das para todos os lados, como pedaços de sua alma jogados ao vento! Que destruição! Era seu próprio cérebro que estava disperso. Que desolação não ter mais um lugarzinho próprio para descansar a cabeça; um lugar onde pôr em ordem as suas coisas, para poder ordenar sobre elas seus próprios pen- samentos. Esta desordem penetrava também em sua alma, sobretudo a sua mente. Encontrou-se, de súbito, longe de sua casa e dos seus, perdido numa desolada região da Sicília, num pobre quarto de pensão, com uma cama e uma mesa pobres, que não eram suas. E os ajuizados desprezavam-no, repe- tindo-lhe sábios e prudentes conselhos de sua própria experiência, o que faziam com maior autoridade ainda, porquanto os fatos lhes davam razão. Ele fora um rebelde, um teimoso, e, na sua intransigência em seguir seu ab-

surdo escopo, atraíra a inimizade de conhecidos e parentes que não gosta- vam de pobres por perto, pois consideravam-nos um contínuo perigo, gente para ser sustentada. No entanto, quão mais atraente e simpático se torna aquele que triunfa! Que respeitável, que estimável pessoa! A simpatia é tan- ta, que todos fecham um olho voluntariamente aos casos de desonestidade e outras coisas. Que fascínio a riqueza! Mas o que poderia nascer de tal proje- to de pobreza, senão sempre novas derrotas?

As experiências evangélicas deste gênero são feitas apenas em teoria e, quando colocadas na prática, são realizadas muito superficialmente. Geralmen- te, esta parte mais real e substancial dos ensinamentos de Cristo – que foram ditos para serem não apenas pregados, mas também aplicados – vem sendo prudentemente deixada no esquecimento, havendo por parte de todos o cuidado de evitar chamar sobre ela muito claramente a atenção. Prefere-se fazer ressal- tar os aspectos que dão autoridade e poder, exatamente os que, ao invés de en- fraquecer, reforçam o homem no plano humano. Das conquistas e exaltações do plano do espírito fala-se em forma retórica, sem considerar que elas possam ser realidade de vida. O homem normal considera espantosas as dificuldades das primeiras provas e inacessível o triunfo espiritual de que elas são a promessa, afinal as duas coisas: condição e resultado, estão igualmente acima da sua ca- pacidade. Assim, sem o esforço, unicamente por instinto humano, ele se prende a um tácito acordo, que, sendo consenso da maioria, transforma-se em uso ge- ral: cuidar das belas coisas que se dizem, mas não se fazem. Isto dá impressão de mentira e de contradição, mas o homem é o que é. Como se pode pretender que ele tenha a heroica coragem de se prender aos fatos, e não às palavras nes- tas tão terríveis experiências evangélicas? É de fato natural que, se algum tem- peramento de exceção quiser convencê-lo, o homem comum não o compreen- da, não o admita e ainda o condene. Sabia tudo isto, por isso não esperava nada e nada pedia aos seus semelhantes. Mas tudo pedia e tudo esperava de Deus, desta força de outra ordem e de outro plano. Sabia que não lhe restava outro caminho a seguir e que, por isso, devia comportar-se, caso desejasse progredir na estrada da ascensão espiritual. Assim devia ser, porquanto é lei justa e fatal que, sem uma limitação no plano humano, não se pode alcançar a correspon- dente expansão no plano divino; que o crescimento do espírito pede a mortifi- cação da matéria; que não se pode realizar uma conquista sem renúncia.