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A descrição do desenvolvimento interior do personagem impôs-se, por sua própria força íntima, neste escrito, antecipando a dos fatos exteriores. Isso porque ela não apenas é naturalmente muito mais importante, mas também leva à compreensão destes, aos quais devemos dar, no entanto, um rápido olhar, sobrepairando no secundário tudo quanto, de material, não tinha senti- do espiritual. Os fatos exteriores da vida, frequentemente, não têm o signifi- cado substancial das experiências interiores. Eles obedecem, no geral, so- mente a uma causalidade mínima e próxima, de superfície, razão pela qual o ser que só vive exteriormente sofre-os sem compreender-lhes a causa e é levado à deriva, sem liberdade, sem conhecimento e sem domínio, ficando ligado ao determinismo do mundo físico. Mas isso não impede que até mes- mo os acontecimentos exteriores, às vezes, liguem-se à substância interior e sejam a expressão de impulsos das forças do destino, os quais necessitam manifestar-se também naquela experiência. Assim, interiormente animados e iluminados, eles revelam então uma vontade convergente para determinados pontos, assumindo outro significado.

No caso do nosso protagonista, a juventude representou um período de len- ta e tranquila preparação. As provas deveriam ser graves e, por isso, espera- vam que ele se formasse; exigiam, como necessária premissa, uma profunda maturação, pois seriam íntimas e complexas. Ninguém de fora suspeitava que tais germens se elaboravam naquela juventude, aparentemente tranquila e in- significante. Aquele destino complexo, não podendo revelar-se senão no ho- mem maduro, aguardava, no seu lógico desenvolvimento, que ele se apoderas- se do sentido mais profundo da vida, em busca do qual, enquanto isso, nosso personagem andava à procura.

Assim ele passou a sua juventude estudando na escola, como tantos ou- tros. Vida cinzenta, uniforme. A escola, sendo convivência, foi para ele um estudo de adaptação à vida humana. Observou tudo que os professores exigi- am dele, identificando as condições impostas por eles, para lhe concederem a compensação procurada: passar nos exames. Deu então à escola aquilo que ela pedia, como se dá a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mesmo ali, queria cultivar o espírito através do pensamento introspectivo. Uma vez dominado, portanto, o mecanismo da escola, obteve as várias apro-

vações, mas, nesse caso, aplicava o sistema do “do ut des”7, limitando os seus trabalhos escolares ao mínimo para obter aprovação. Não pediu à escola nada além do diploma, pois havia compreendido que a escola não podia dar nada mais além disso, ao menos para ele. O esforço da vida lhe parecia bem diverso daquele de fazer reviver as línguas mortas do latim e do grego! Pas- satempo de luxo, exatamente onde tudo é luta! O exercício da vida, na esco- la, ele o encontrou não nos ensinos, mas sim na convivência com os colegas. A escola, para ele, somente era exercício graças à convivência, diante da qual o ensino nada mais era que um simples pretexto, pois toda convivência é escola. Entre os jovens forma-se, distinta e à parte, uma classe social pró- pria, com toda uma realidade de vida, bem diversa daquela oficialmente pre- sumida e proclamada, sendo independente e até mesmo contrária à dos adul- tos. A classe dos jovens tem a sua gíria, as suas leis, a sua moral, o seu parti- cular conceito de dever e de honra. Nesse ambiente, verificam-se as primei- ras experiências e as primeiras tentativas, com as quais se tiram as primeiras conclusões, mais tarde retomadas e retocadas. Porém tudo tem uma tão vir- ginal sinceridade biológica, que é, de fato, como se o homem percorresse novamente, nos seus primeiros anos, o caminho evolutivo referente à ascen- são psicológica da espécie. O indivíduo faz, então, como que uma rápida repetição do seu passado biológico-psíquico, antes de se preparar para conti- nuá-lo através de novas experiências. Os jovens são ricos e exuberantes, tal como os primitivos. A humanidade, assim como já foi, talvez, composta por adultos semelhantes a eles, também será no futuro, talvez, constituída por jovens psicologicamente amadurecidos como os nossos velhos.

Diferindo da maioria dos seus companheiros, procurava o estudo sério e, sobretudo, livre; procurava um estudo superescolástico, que lhe revelasse o porquê das coisas. Mas, na verdade, se o homem não possui este porquê, senão em fragmentos contraditórios, a escola não lhe poderia dar a resposta. O seu temperamento dócil e respeitoso, mas tenaz e irremovível, não lhe permitia sacrificar a independência original da sua personalidade para se desdobrar sob o influxo dos formalismos escolásticos, sempre prontos a deformar o seu pen- samento virgem e a esmagar o livre desenvolvimento da sua mente. Foi bas- tante forte para resistir à escola, rebelando-se e impondo-se às suas constri- ções, a fim de não se submeter a ela nem se enredar nas suas classificações.

Preferiu, a qualquer custo, ficar sempre ele mesmo, sem aceitar ninguém; me- lhor ser a planta selvagem do bosque do que não ser livre. Queria encontrar por si mesmo a solução dos problemas, sem mediadores. Detestava, assim, as interpretações já feitas, confeccionadas para o uso das mentes estreitas. Dessa maneira, ninguém na escola conseguiu enquadrá-lo e fechar-lhe o pensamento em alguma categoria preconcebida. Procurava por si mesmo, livre, por toda parte, empregando avidamente o único método então possível para ele: a tenta- tiva. Procurava e lia por toda parte, nos livros e na vida. Em cem livros, encon- trava apenas um que pudesse levar a sério e que lhe dissesse alguma coisa. Porém mesmo aquilo que o persuadia era para ele não uma aquisição passiva de conhecimentos, mas sim um reencontro dentro de si de noções já adquiri- das, uma reconstrução na sua consciência dos lineamentos de um conhecimen- to anterior. Era quase como se já soubesse, mas não recordasse, buscando aju- da nos livros para fazê-lo. Tomava os livros mais estranhos, de todos os gêne- ros, procurando ligações inusitadas e relações entre as coisas mais distantes, de naturezas opostas. A leitura não lhe servia como instrumento para aprender o pensamento alheio, mas sim como agente para fazer nascer uma íntima reação no seu pensamento, somente no qual ele verdadeiramente lia. Com um senso próprio e instintivo de uma verdade sua, indagava, provava e reconhecia. Es- cutava sempre, de dentro e de fora, as infinitas vozes do mundo e do seu pró- prio ser, para reencontrar e reconstruir seu saber, sacando-o daquele imenso mistério que ele trazia dentro de si mesmo.

Uma vez, no liceu, ouviu o professor de ciências naturais pronunciar (está- vamos nos princípios do século XX) a palavra “evolução”. Foi um átimo, um relâmpago, um susto. Depois, trevas. Os rapazes de sua idade sentiam emo- ções bem diferentes. Que ideia havia passado? Ainda não a compreendia bem. Mas aquela ideia teria de ser a espinha dorsal do seu sistema e do seu destino.

Entretanto, já desde criança, começara a explorar as possibilidades senso- riais e perceptivas do seu organismo físico, como um condutor que experi- mentava a máquina para a viagem e a observava como um simples instrumen- to de ação, sentindo-se bem distinto dela. Tomava-se de grande espanto ante os limites misteriosos do espaço e do tempo. Multiplicava-os, decompunha-os e ultrapassava-os, sem, porém, conseguir resolvê-los. Havia nele alguma di- versa concepção e sensação fundamental do ser, que se cansava ao adaptar-se ao ambiente terrestre e às suas limitações. O seu verdadeiro elemento concep- tual não era o limite, mas sim a eternidade do tempo e a infinitude do espaço.

Agitava-se ainda na sua alma um anseio de incontida liberdade, razão pela qual a existência num corpo físico lhe parecia uma prisão insuportável. Assim passou a vida procurando superar todos os limites da sua constituição huma- na, para evadir-se desta condição e reencontrar aquele mundo que ele sentia ser realmente seu, o qual, no entanto, escapava-lhe agora – não sabia onde – para além das suas possibilidades conceituais e sensoriais, além daqueles tor- turantes limites de espaço e tempo, inexoravelmente impostos à sua vida atu- al. Mas devia fazer ainda outro esforço, a fim de compreender o mecanismo psicológico no qual se ocultava o motor dos atos de seus semelhantes, bus- cando não apenas entender como e por que aquele motor funcionava naqueles atos, mas também adaptar-se a todas as normas sociais que disto derivava para todos e, portanto, também para ele. Encontrou-se, assim, diante de uma dupla tarefa: reencontrar-se a si mesmo e descobrir se os seus semelhantes eram o que aparentavam ser ou seriam de fato algo diverso.

Esta última foi a sua mais fatigante pesquisa juvenil, pois, sendo natural- mente sincero, havia ingenuamente acreditado na sinceridade dos homens, entendendo que a forma exterior correspondesse à realidade. A princípio acreditara que aquele venerável senhor, tão sério, reverenciado e carregado de títulos, fosse um cavalheiro e que aquela respeitável senhora, tão piedosa e gentil, fosse de bom gênio e de conduta exemplar. Acreditara que aquele san- to homem, tão religioso, fosse de fato crente, e não praticamente ateu. Acredi- tara que aos nomes correspondessem as coisas e que as várias atividades hu- manas fossem praticadas para o fim que as qualificava. Acreditara que o mé- dico curasse, o advogado defendesse, o administrador administrasse, o filóso- fo soubesse, a lei protegesse, a escola ensinasse, a religião educasse, a ciência concluísse, o crente acreditasse, o altruísta pensasse também nos outros. Po- rém, tão logo se arriscou a olhar atrás dos cenários, uma triste realidade lhe apareceu. Foi uma amarga desilusão. Daquele dia em diante, desconfiou do homem e o desprezou. Deveria andar muito ainda, por vias não humanas, pa- ra, não obstante tudo, chegar a amá-lo.

Compreendeu então que a sua sinceridade era tomada por ingenuidade; a sua bondade, por tolice; a sua paciência, por fraqueza. Aprendeu assim, na verdadeira escola da vida, uma linguagem que era muito diversa da sua, mas que ele deveria falar, pois tratava-se da linguagem do mundo no qual ele ti- nha de viver; aprendeu assim, duramente, esta verdadeira ciência, que não estava nos livros.

Vencida a surpresa desta primeira descoberta, através da qual constatou nos fatos uma realidade muito diversa daquela sentida por ele nos espíritos, sua ingênua credulidade caiu e ele atirou-se seriamente ao estudo da verdadeira natureza humana. Uma vez encontrada a chave do sistema, ele quis, através da observação, aprofundar o conhecimento, para compreender a fundo a técnica deste método humano de luta, feito de força e de astúcia, ao invés de justiça, bondade e sinceridade, como havia acreditado. Surgiu-lhe então algo como dois mundos diversos sobrepostos, dois planos de valores, um mais elevado, melhor, porém fictício, estendido como um nobre manto de aparências sobre outro, mais baixo, pior, porém real. No de cima, postas bem em evidência, quase com pompa, em franco exibicionismo, estavam as verdades reconheci- das do bem, do dever, da virtude e do sacrifício, altamente proclamadas e pro- fessadas. Um plano constituído de ideias esplendentes de grandeza, generosas e sonoras. No de baixo, pelo contrário, estava a necessidade férrea e desapie- dada, que, ao invés da generosidade, exigia a conveniência; ao invés do altru- ísmo, o egoísmo; ao invés da sinceridade, a mentira; ao invés da justiça, a for- ça. Embora regido por uma moral diversa, oposta àquela superior, tratava-se de um mundo tão orgânico e lógico no seu nível, que se sentia autorizado a julgar o mundo mais alto como coisa de loucos, a ponto de nem sequer sonhar em tomá-lo a sério. Neste plano inferior de rivalidades sem trégua havia luta surda e agressões traiçoeiras, uma realidade falsa e feroz, que dava, porém, o seu rendimento imediato e concreto. Se as aparências eram douradas, havia por baixo uma realidade indiscutivelmente infernal, para ele inaceitável e in- suportável. Se as formas eram as de uma civilização cortês e refinada, a subs- tância era a lei feroz do mais forte. Estes eram os fatos, os reais princípios nos quais o homem, com as suas ações, contrariando tudo quanto dizia, demons- trava acreditar. Por que esta estrutura dúplice e contraditória? Por que esta pertinácia em escandalizar-se publicamente justamente com aquilo em que mais firmemente se acredita particularmente? Por que estes fingimentos de uma vida fictícia, esta mistificação? Se o homem é um vil, então por que não tem a coragem de aparecer como é? O problema era certamente complexo.

Sondou assim, a fundo, as expressões deste dúplice rosto humano, um visí- vel e o outro oculto; perscrutou o verdadeiro significado daquela palavra, dita não para exprimir, mas sim para disfarçar e ocultar o pensamento; investigou a substância daqueles atos, praticados com objetivos aparentes, diversos dos reais. Isto não significava que tudo fosse absolutamente assim. Havia também

os representantes do plano mais alto, daquela outra moral diferente, porém estes eram tão poucos, que os representantes do plano mais baixo, em número imensamente maior, praticamente determinavam a regra. Constatava sempre este jogo de contínuas inversões, esta incoerência, esta contradição em tudo, entre a realidade e a aparência. Isso tornava o jogo da vida muito mais difícil. Perguntava-se qual seria a conveniência lógica de tão inúteis complicações. Por que razão todos teriam de suportar tão inútil peso? Por que essa fadiga de caminhar, voluntariamente, num terreno tão semeado de traições, que tornava tudo falso? Perguntava-se ainda, depois disso, que coerência haveria na predi- cação da bondade evangélica, se, na verdade, em baixo nada mais existia se- não rivalidade impiedosa. Será o ambiente humano – dizia a si mesmo – as- sim tão tristemente constituído, que o ideal não pode se mostrar senão sob a forma de uma impotência a ser explorada? Será esta trágica luta pela libertação e pela redenção uma condenação sem esperanças? Se o espírito humano havia sabido atingir a concepção de certos princípios, por que não os aplicava e, se não os aplicava, por que tornava assim tão difícil fazê-lo?

Sem dúvida, o sistema humano era realmente aquele, e ele lhe aquilatava a inegável estrutura. Cada jogo tem as suas regras. Ele havia-se ligado àquele ao nascer, devendo, portanto, compreendê-lo e sofrê-lo. Assim era a vida, e assim ele devia aceitá-la. Mas admirava-se com o fato de que o seu instinto não ade- risse a esse mecanismo tão espontaneamente como o dos outros e perguntava- se o porquê dessa diversidade. Seria de fato maldade ou, antes, fatalidade? Talvez não se devesse culpar o homem. Quem havia estabelecido essas leis? Talvez o homem não fizesse mais do que seguir sua própria lei, que o obrigava a exigir da vida o rendimento concreto; talvez ele apenas sofresse uma neces- sidade inferior, feita de duras provas, sem possíveis margens para generosos ideais. Talvez o homem fosse mais miserável do que mau, merecendo mais piedade do que condenação.

Coexistiam, portanto, sobre a Terra duas fases contíguas, mas muito diver- sas, da mesma lei de evolução, dois níveis de vida, duas possibilidades em conflito, disputando entre si o campo da atividade humana. Segundo o respec- tivo grau de sensibilidade, o homem encontrava-se distribuído de um plano a outro, variando entre o primeiro, que é um resíduo da passada animalidade, e o segundo, que é uma antecipação da perfeição a atingir. Todo o gritante e in- conciliável contraste derivava do fato de encontrar-se ele espontaneamente, por sua natureza, equilibrado num plano diferente daquele no qual o tipo hu-

mano normal se equilibrava. Tratava-se de uma questão de grau ao longo da evolução biológica. Se ele se sentia mal, a culpa cabia a si mesmo, que era diferente dos demais, os quais, sendo maioria, fazem a lei e, ao menos na Ter- ra, têm razão. Aquelas formas de vida do homem normal, que lhe pareciam infernais e insuportáveis, deviam, no entanto, estar proporcionadas à ignorân- cia, involução e insensibilidade do homem comum, pois este encontrava-se ali completamente à vontade. Tudo lhe dizia que ele era diferente, talvez superior. Conforto teórico e condenação real, significando vida de luta e de dor. O des- prezado, o exilado, aquele que estava errado neste mundo, era ele, exceção contra a qual reagiam as imediatas sanções da lei biológica, que tende ao equi- líbrio. Na sua sinceridade, era um desarmado e, por isso, uma bela presa ao mesmo tempo. A lei férrea da luta começou a envolvê-lo e a experimentá-lo, para demoli-lo; tomou-o de assalto, não apenas para demonstrar-lhe, através dos fatos, que o errado era ele, mas também para fazê-lo pagar caro a sua pre- tensa superioridade e, com ela, a sua tentativa de independência e de evasão. A vida queria fazê-lo saber que a superioridade consiste em coisa bem diversa e, por isso, constrangia-o à prova. O antagonismo era congênito, e já se prenun- ciavam os primeiros e ásperos choques. O embate a fundo se fazia inevitável. Assim o grande duelo começou sutil, na surdina, indiretamente, sem aparecer, para tornar-se cada vez mais grave. A luta pegara de imediato o nosso homem pela garganta. O desafio já estava implicitamente lançado e devia aumentar sempre, em encontros que se tornariam de vida e de morte. Mas ele era apenas um menino, período no qual as coisas ainda não são feitas a sério.

VII. ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS E EXPLORAÇÕES INTERIORES