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“Quem não trabalha não come” (S. Paulo).

Não é a riqueza em si que merece condenação, pois ela é uma força que po- de, quando bem empregada, ser um meio poderoso de realizar o bem. Merece condenação, porém, a psicologia de avidez que é a sua auréola natural; a at- mosfera sufocante que dela constantemente emana; o mal que, para conquistá- la, não se tem receio de praticar; as aberrações que provoca; a horrível espécie de almas que atrai e de que se circunda; a escravidão, a asfixia e a abjeção espiritual que frequentemente são o seu preço. Para libertar-se de tão triste companhia, era preciso livrar-se da sua causa.

Mas não era fácil. Num mundo moderno, onde tudo o que se refere à pro- priedade é exatamente regulado por meio de mil veículos jurídicos, através de uma complexa rede de interesses em equilíbrio, não é algo fácil de se realizar. Resolver tal problema não é tão simples como no tempo de Cristo ou de São Francisco. Havia, portanto, um complicado conflito de deveres, no qual esta- vam em jogo os direitos alheios, que não se podem lesar. Como resolver o caso entre tantos deveres, todos eles voltados para direções contrárias e autori- zando, perante a consciência, pedidos de satisfação? Como cumprir uns sem lesar outros? São Francisco, por exemplo, devia lesar o dever de obedecer ao pai, porque tinha de obedecer a um dever maior. E qual, em nosso caso, era o dever maior? Todos falam sempre de seus direitos, no entanto ele, entre os seus deveres, achava difícil a escolha. Não bastava esquecer os interesses e o egoísmo para resolver a questão.

Os seus bens eram hereditários. Tinham sido, portanto, obtidos gratuita- mente. Não eram fruto do seu trabalho. A sociedade do seu tempo admitia essa forma de aquisição, que a sua consciência, no entanto, considerava injusta. Não condenou os outros, mas apressou-se a corrigir-se a si mesmo. A aquisi- ção gratuita de bens por hereditariedade era, “para ele”, perante a sua lei moral e pessoal, coisa ilícita, imoral, inadmissível. Cuidava de si e respeitava a lei dos outros. Mas devia viver conscientemente a sua lei.

Esta não era somente a lei instintiva da sua consciência, mas também a lei do Evangelho. Ouvia a voz longínqua a repetir-lhe:

“Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus! Mas ai de vós, ó ricos, porque já tendes a vossa consolação!”.

E ainda:

“Dá aos que te pedem e, se alguém te tirar o que é teu, não demandes com ele”.

E por fim a máxima:

“É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”.

Ele sentia o Evangelho bastante forte no coração, para não tomar a sério estas palavras. A elasticidade de consciência e as acomodações o aborreciam muito, para que ele não sentisse o dever de tomar uma posição bem definida entre Cristo e o mundo. Preferiu Cristo, mas o mundo o condenou. Então começou a luta.

Não pretendia de fato, no seu coração, aplicar aos outros a sua lei. Não condenava e não julgava, apenas perdoava, pensando que, assim como medir- mos, seremos medidos. Não podia deixar de sentir a injustiça originária que está na base de toda acumulação de riqueza, cuja formação muito raramente pode se dar apenas com o trabalho, sem ao menos um início de fortuna. Esta injustiça originária se agravava com a gratuita transmissão hereditária.

Achava absolutamente anticristão, ainda que em parte, viver a vida à custa do que não fosse o fruto do próprio trabalho; viver do trabalho alheio, ou seja, daquele próximo que se deve amar e sobre cujos ombros, portanto, não é lícito a um cristão acomodar-se para se deixar levar. Achava absolutamente anticristã essa concepção egoísta da vida, base de explorações e causa de lutas, porque o pobre é por ela instigado, talvez até constrangido, a fazer jus- tiça com a esperteza, com o furto e a violência. As religiões preferiam aco- modar-se, passando por cima deste ponto fundamental da equidade evangéli- ca, mas ele quis estar inocente diante das condescendências anticristãs e das suas tristes consequências morais e sociais. São Paulo, falando de si mesmo, dizia que “trabalhava com as próprias mãos, para não ser pesado a ninguém” (Atos, XX, 33-34). Os sistemas do mundo, que representavam convenções e estavam consagrados pelos costumes, eram uma contradição admitida. Tudo aquilo era aceito, corrente e legal no mundo. A sua consciência, porém, não aceitava compromissos e definia claramente as suas posições. Não podia endossar tudo aquilo sem se tornar cúmplice; não podia aceitar os benefícios sem incorrer na responsabilidade.

A injusta distribuição da riqueza era o problema do seu tempo, e contra ela se batiam os homens, as classes sociais e os povos. O espírito do seu século

insurgia-se contra aquela injustiça, que tanta luta custava. O mundo debatia-se para preparar o advento da justiça social. O instinto da ávida acumulação ego- ísta era biologicamente justo, mas correspondia a fases evolutivas do passado, que hoje devem ser superadas por outra fase, com base numa mais justa coor- denação orgânica coletiva. Se esta preparação custava tantos esforços e sacri- fícios, como poderia ele, por interesses pessoais, lançar-se contra o futuro?

Sentia que a fundamental injustiça da exploração econômica devia ser corrigida pelo “Quod superest date pauperibus”10, pois o supérfluo é real- mente roubado aos pobres, que dele necessitam para viver. Além disto, um grande preceito lhe vinha de Cristo: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Devia cumprir também este dever. Não se tratava somente de livrar-se do peso, das ligações e da injustiça da riqueza. Tratava-se, para amar o próximo, que na sua maioria é pobre ou quase pobre, de abraçar a sua vida, participan- do das suas fadigas e suportando as sua tribulações. Tratava-se de trabalhar como a maioria, para ganhar o próprio e justo pão cotidiano. Tratava-se de caminhar seriamente com o povo, começando por si mesmo, e não pelos ou- tros; partindo dos deveres, e não dos direitos; praticando antes de pregar. Sentia, na consciência, que só o fruto do seu trabalho podia ser honestamente seu. Sentia que essa era a forma da verdadeira fraternidade evangélica e da verdadeira realização da justiça social.

Considerava o trabalho não só como um dever para com o próximo, mas também como um direito na escola da sua formação individual. Segundo a velha concepção, os valores maiores eram representados pela riqueza, ante a qual o homem é um meio. Segundo a sua concepção, que era a dos novos tem- pos, o maior valor é o homem, perante o qual a riqueza é um meio. Se antes antepunha-se a riqueza ao homem, amanhã dever-se-á antepor o homem à ri- queza. O trabalho, então, não é mais um meio de aquisição de bens econômi- cos, mas sim uma forma de exercício para a aquisição de novas capacidades, ao qual cada um tem direito de ser admitido, porque isso representa a sua for- mação e a sua evolução. Diante desta concepção do trabalho, ele quis a sua parte, como dever e como direito.

O fato de haver tomado espontaneamente a parte que lhe cabia no peso da vida, proporcionava-lhe, por fim, implicitamente, maior estabilidade de posi- ção social, que é sempre mais solidamente equilibrada quanto mais em baixo,

quanto mais se aproxima da normalidade e se afasta da exceção. Mas tudo isso não era fácil realizar. Quem o haveria de ajudar?

Com a ação começaram as dificuldades. Toda aquela rede de interesses que se forma em torno de uma riqueza reagia. Tudo quanto já se formou e se estabilizou em alguma posição, representa um equilíbrio que se defende e resiste. Em qualquer lugar e momento formam-se prontamente estas coali- zões, estes tácitos consensos, nos quais tão espontaneamente se harmonizam os homens, quando veem nisso uma utilidade, constituindo verdadeiros orga- nismos armados contra tudo. Para se libertar a si mesmo, devia libertar tam- bém muitos dos seus dependentes, desalojando-os de suas posições, às quais estavam bem agarrados, pois pensavam de maneira bem diversa. Sucedia-lhe, em menor proporção, como a certos chefes que são na verdade os servos da casta, pois esta apenas os sustém em sua posição enquanto isso lhe convém. Assim, logo aprendeu a conhecer a verdadeira face do homem.

A sua particular experiência o levava à conclusão de que administrar pode ser sinônimo de roubar. Bastava deixar-se administrar, para conseguir de pron- to a libertação. Mas ele não era um inepto, que se deixa destruir por preguiça ou incapacidade, e não podia absolutamente fazê-lo em benefício do furto. Não poderia ser proprietário, sem se tornar cúmplice responsável. Assim per- cebeu que a libertação de um patrimônio, para atingir a pobreza franciscana, era problema moral e material muito complexo em nosso mundo moderno. A mesma humanidade que lhe pedia fraternidade o impedia de realizá-la com a sua feroz avidez, demonstrando-lhe como o mundo é pouco disposto a com- preender tais sacrifícios, os quais, no entanto, ele tem a coragem de pregar e de pedir. Percebeu o quanto é difícil para o indivíduo, num mundo estruturado em sentido oposto, saber resolver o problema da exploração econômica sem pro- vocar qualquer prejuízo. Isso também porque cada um quer compreender os motivos dos atos do próximo, desconfiando sempre. Ora, os seus motivos nin- guém conseguia compreender e, se os compreendesse, não os admitiria. Toda a sociedade era impulsionada por uma vontade no sentido contrário: pilhar, acumular, enriquecer. Este era o rumo seguido por todos os caminhos, nos quais todos andavam. Todas as instituições, leis e costumes pressupunham aquelas motivações. Bem longe de admitir a possibilidade da existência de um honesto que afasta de si a riqueza por um senso de justiça, o mundo se arma de desconfiança contra o homem que, cheio de escrúpulos, tem muita pressa em se desfazer da riqueza. Assim tudo se volta contra quem vai contra a corrente.

Os seus deveres não eram aqueles egoístas e utilitários, que permitem fazer bela figura e, ao mesmo tempo, dão bom rendimento. Eram deveres reais, de consciência; deveres estranhos ao mais longínquo rendimento; deveres in- compreensíveis e, portanto, inadmissíveis. Estes deveres escandalizavam os outros, que desejam resultados concretos para poder avaliar. Os espertos do mundo julgaram-no mais esperto do que eles, acreditando que ele, para fins de lucro, disfarçava-se em altruísta. E os homens de bom senso, ainda mais espertos, chegaram a descobrir, por meios muito complexos, os seus reais recônditos objetivos.

A luta foi longa e1 travada corpo a corpo, mas o fez conhecer o homem. Descobriu que era muito difícil saber dar sem fazer mal. Via que, quase sem- pre, o pobre nada mais era senão um rico frustrado, repleto de toda cobiça, insaciável, com a alma agarrada ao dinheiro, muito diferente do pobre de espírito. E cada ato magnânimo servia de estímulo àqueles sentimentos de avidez. Percebeu que o homem, frequentemente, ao ato passivo de receber, preferia ser ativo no ato de pilhar; preferia a conquista à esmola. Embora seja biologicamente normal, isso tende a fazer do homem, em última instância, um malfeitor. Porém o signo do homem é positivo, sendo confiado a ele pela natureza o trabalho da seleção, e não o da conservação, que compete à mu- lher. Descobriu no homem o seu aspecto de mais ou menos cego executor das leis biológicas, espantando-se com a imensa e insuperável distância que o separava do Evangelho. Na luta corpo a corpo para a realização do seu pla- no, ele era o supremo utopista, escarnecido e incompreendido. Essa foi a resposta bem clara que o mundo lhe deu francamente, segundo a sua lógica natural. As leis biológicas, aplicadas ao homem pelo instinto, embora este não as compreenda, rebelaram-se contra nosso personagem e precipitaram-se de encontro a ele, como que enfrentando um violador. No mundo, ele estava errado. Por certo, a sua forma de luta era muito diferente daquela imposta pelas leis da natureza à Terra; buscava uma seleção muito elevada e muito complexa, visando resultados remotos de mais, para que as suas ações pudes- sem ser admitidas num mundo em que se desenvolvia outra luta, dirigida no sentido de outra seleção. De resto, aquele mundo estava bem solidamente equilibrado naquela situação e, segundo sua férrea lógica, no âmbito do seu plano, tinha razão. A grande maioria vivia aquela lei, enquanto ele estava sozinho ou quase sozinho. Achava-se, portanto, deslocado. O nosso utopista tinha consigo o Evangelho e se havia lançado justamente na via da sua apli-

cação integral. Chocavam-no não apenas a enorme dificuldade de realizá-lo na prática, mas também o gritante antagonismo em que o mundo se encontra em relação ao Evangelho e o Evangelho em relação ao mundo. Perguntava-se então por que a lei biológica, destinada por Deus a reger a vida humana e gravada nos instintos do homem, tinha de estar nos antípodas da lei evangé- lica, igualmente destinada por Deus a reger aquela mesma vida humana.

Mais do que formular teorias, este livro quer antes relatar experiências. Nar- remos então. Ele continuou inabalável, enquanto registrava em si mesmo essas observações. O nosso relato é breve, mas, para ele, a luta foi longa. Nós faze- mos simplesmente uma narração, enquanto ele construía um homem. Assim ele continuou. Havia jurado fé no Evangelho e, com o Evangelho, queria ir até ao fim, até mesmo, se necessário, aos extremos da desesperação e da morte. Havia decidido dar agora como conteúdo à sua vida a suprema experiência do Evan- gelho, integralmente vivida. O que aconteceria? Observava e registrava. Nele se travava o grande duelo: quem teria razão, o Evangelho ou o mundo? En- quanto a sua vida prosseguia, observava os entrechoques da batalha. O mundo derrotaria nele o Evangelho, ou o Evangelho venceria o mundo? No segundo caso, a sua vida não era mais uma utopia; ele não era um louco, como se dizia; o triunfo do seu espírito estaria completo; a via excepcional que seguiria não era errada. O seu caminho, porém, era tão contrário às leis do mundo pelo qual avançava, que seria necessário um contínuo milagre – a presença jamais suspei- tada de uma Divina Providência – que o salvasse a cada passo de tudo e de to- dos. E olhava em torno para ver se o milagre verificava-se e se poderia verifi- car-se. Tremia no mais íntimo de si mesmo, porque compreendera que a sua atitude, no fundo, era um desafio de obediência a Cristo. Mas sabia também que se entregava todo, jogando a cartada da vida, e quem assim procede talvez tenha algum direito a mais que os outros. Como ficaria, porém, se, ao contrário, o mundo derrotasse o Evangelho, demonstrando-lhe através dos fatos, nesta experiência decisiva, a sua absurdidade prática? O que seria, se a Divina Provi- dência, com a qual ele contava, o abandonasse? O que faria, se esta força im- ponderável lhe escapasse na sombra? Que meio teria para mantê-la presente e ativa? Que direito teria de considerar-se um predileto, particularmente ajudado por Deus? A sua fé era grande: empenhava sua vida em confiança, sob a pala- vra de Cristo. Seria, assim, tão terrivelmente forte a voz de Cristo nele? O que lhe restaria, se este Evangelho, sobre o qual empenhava todo o seu ser e inves- tia todas as ações e todo o capital da sua vida, o traísse? Restaria para ele sim-

plesmente o direito de dizer em plena consciência, de alma nua perante Deus e em nome da divina justiça, que, seguindo o Evangelho, tinha errado e que não é prudente acreditar sem ver. Na sua alma, teria sucedido um terrível abalo, que teria sido a sua destruição. Mas que lhe importaria a sua alma, quando naquele abalo teriam caído também o seu Cristo e o seu Evangelho? O dilema era impi- edoso e tremendo. O leitor não se espante, porém, porque, quando uma consci- ência age retamente, nunca é abandonada por Deus

XI. POBREZA E TRABALHO