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Neste relato, nada mais precisamos senão percorrer o caminho ao lado do nosso protagonista. Trata-se, sem dúvida, de um pequeno acontecimento indi- vidual. Mas nele se reflete o grande drama do mundo, da luta entre o bem e o mal, da redenção do homem através da dor. E o acontecimento não é exposto como teoria, mas sim em forma vivida, palpitante e experimental, de vida real, em antítese à vida também real do mundo, seguida pela maioria humana. Estes dois tipos de vida estão em absoluto contraste. O desafio é grave, o em- bate é gigantesco, porque o mundo, sendo maioria, irá repeli-lo. Apesar disso, nosso homem não se encontra só, pois está com a dor, que por toda parte oprime o homem. Na senda da redenção, ele segue o Cristo. Por isso podemos dizer, em princípio, que aqui se encontra um pouco da história de todos. Na dor e na expiação, ele é um pouco o irmão de todos. Se este homem for con- siderado louco, a sua loucura inclui também as coisas mais elevadas e vene- ráveis que o homem possui.

O mais ativo agente que o levou a encontrar-se a si mesmo, o estímulo mais enérgico que o forçou a compreender seu próprio eu e a operar a sua transfor- mação e ascensão, foi a dor. Esta foi a primeira e mais intensa realidade que se lhe apresentou na vida, a força que mais profundamente agiu sobre o seu espí- rito, o choque que mais o feriu e o abalou, despertando-lhe as mais enérgicas reações e os mais íntimos recursos.

Ele havia acreditado, a princípio, que o conhecimento devia ser o resulta- do de uma pesquisa cultural, um produto da erudição, o qual, por isso, podia vir de fora e ser conquistado por ele através de um trabalho intelectual. De- pois percebeu o quanto era superficial este gênero de conhecimento em face ao outro, que lhe vinha pela experiência da própria dor. Este outro apareceu- lhe como algo muito mais profundo, substancial, verdadeiro. Era como uma revelação que, ao invés de ser recebida de fora, emergia do íntimo; um co- nhecimento que nascia não das aquisições culturais e dos processos reflexi- vos da razão, mas sim de um ato de intuição, brotando da sensibilização do seu ser como uma nova capacidade perceptiva, como um novo poder de vi- são, resultante da maturação que nele se operava através da luta na dor. Per- cebeu então que a obra da sua transformação, a conquista da sua ascensão espiritual, não podia resultar senão deste conhecimento profundo, íntimo e

intuitivo, que se fundia com a sua própria maturação e nascia da grande ex- periência da dor.

Qual foi a sua dor? Qual a forma que o destino escolheu e lhe ofereceu en- tre as infinitas amarguras da vida? Existem as grandes dores heroicas, que dão direito à gratidão da pátria; dores excepcionais, ardentes e gritantes, que, tendo um sentido de grandeza, provocam nos outros admiração e entusiasmo. Exis- tem as dores afagadas de comiseração, aquecidas pela compreensão do próxi- mo; dores que despertam um sentido de piedade, as quais, pelo fato de pode- rem receber ajuda e conforto, encontram alívio nos afetos, na piedade e na bondade dos outros. Essas são as dores de luxo, que têm direito a lágrimas, compaixão e consolação. Vêm depois as dores pobres, deserdadas, que não dão direito a nada disso; dores sem glórias, obscuras, mudas, geladas, que dão uma sensação de inferioridade e de miséria, ocultas com tristeza; dores que não enobrecem nem exaltam, mas aviltam e deprimem; dores menores, enfer- midades e fraquezas, tanto de corpo como de espírito; dores tolas, estúpidas, ridículas, sem grandeza, sem compreensão, sem comiseração. Para tais dores não há ajuda, não há conforto, não há piedade. Não tendo direito à compaixão ou à consolação, elas provocam o riso e o insulto, atraindo o desprezo. É dever e virtude condená-las e persegui-las. Há dores malditas e desesperadas, que não comovem ninguém, antes provocando ódio e horror.

Há a dor do culpado e a dor do inocente, a dor consciente e nobre do sábio e a dor estúpida do imbecil. Há a dor que muda e passa e a dor sem esperança e sem remédio, que em vão pede paz à morte. Existem as nossas próprias do- res, que sempre nos parecem tão grandes, e as dores alheias, que sempre nos parecem tão pequenas! Existem as dores físicas e as dores morais, as dores grosseiras da matéria e as dores sutis do espírito. Existem dores tão refinadas, que consomem toda a alma por dentro, em silêncio, sem se exteriorizarem, matando suavemente, sem desgastar o corpo.

Quantas dores diferentes! Mas todas se estampam no corpo e na alma. Cada rosto humano é por elas assinalado e as exprime. Entre tantas formas diversas, cada homem tem a sua e avança arrastando a própria cruz. Entre tantas formas diversas, todas elas são dores, cumprindo-se nelas sempre algo grandioso, que conduz à redenção. Somente Deus vê todas, pesa-as e julga-as com justiça, dando por elas, no destino de cada um, a devida compensação.

Qual foi a dor do nosso protagonista? O importante não é o nome ou a for- ma, mas sim a substância, que está na dor, na sua ação iluminadora, na sua

obra de redenção em nosso espírito. O leitor pode dar aos sofrimentos do nos- so homem a forma e o nome que desejar, para colocar nele as suas próprias dores e dizer: vejamos como ele resolveu para si o problema da dor, que é o meu problema e o problema de todos. Qualquer que tenha sido a forma do seu sofrimento, o importante é compreender e seguir a atitude e a posição escolhi- das por ele em face da dor, as quais estão nos antípodas daquelas preferidas pelo mundo. Este a olha com ódio e terror, procurando fugir-lhe ou destruí-la, sem perceber a sua indispensável função criadora como agente e estimulante da evolução. A maior sabedoria do nosso protagonista foi amar e, assim, do- mesticar fraternalmente a dor, transformando-a de inimigo em amigo, utilizan- do-a como meio de ressurreição, fazendo do mal um bem, de uma pena e ne- gação humanas a afirmação e a alegria do espírito. A sua sabedoria estava na sua atitude, constituída não de aversão e de revolta, que desespera, nem de passiva resignação, que imbeciliza, mas sim de ativa e dinâmica reação para o bem; estava em saber transformar as resistências hostis da vida em um jogo de exercícios, em uma escola de aquisições, e fazer de uma aparente condenação um instrumento de conquista, de redenção, de felicidade.

Interessa depois conhecer a lógica segundo a qual agem estes impulsos da dor, o modo como se apresentam, os pontos que golpeiam, o método pelo qual se sucedem, a meta a que se dirigem. O destino é sem dúvida um desenvolvi- mento de forças não casual, dirigido segundo um princípio e uma lei adaptados a cada caso. Se não fosse assim, a dor seria um crime e uma loucura do Cria- dor, hipótese que todos os fatos nos demonstram ser um absurdo. Diante disso, interessa conhecer o sistema segundo o qual o fenômeno se desenvolve. Tanto no plano físico como no espiritual, todos os organismos, portanto o nosso corpo e a nossa alma, têm um ponto de menor resistência (locus minoris resistentiae). Ora, parece que a natureza escolhe justamente este ponto de maior fraqueza, de maior vulnerabilidade, para convergir sobre ele os seus mais veementes golpes. É este o ponto que, de preferência, ela fere nas doenças físicas e nas imperfei- ções morais. A natureza não gosta de pontos fracos, por isso lança-se contra eles, seja para provar-lhes a resistência e, se esta é pouca, abrir-lhes prontamen- te uma brecha, para resolver o caso, matando o indivíduo, seja para estimular as suas reações e, com isso, impulsioná-lo a se reforçar, a reativar as suas defesas, ensinando-lhe a salvação, obrigando-o a vencer, a aprender a ser forte, para saber vencer sempre. A resposta depende do indivíduo e significará vida ou morte, libertação ou dor. Assim, cada pena é uma doença, e cada doença, uma

prova. Em cada caso, a dor tem um significado e um escopo útil, atingindo-nos para o nosso bem. Ela é uma tentativa salutar de correção de algum erro, para restabelecer o equilíbrio, a ordem divina das coisas, somente na qual a felicida- de existe. A natureza, ao infligir-nos as provas, parece desapiedada. Mas com elas completa-se a grande escola da vida, na qual se aprende, cada um por si mesmo, a corrigir os impulsos mal dirigidos do próprio destino. De fato, somos nós mesmos que, nascendo com uma dada constituição física e moral, trazemos já em nós, definidos e localizados, os pontos de menor resistência, a nossa força e a nossa fraqueza, já implicitamente assinalando a nossa vitória ou a nossa condenação. O ambiente prova indistintamente todas as pessoas, a diferença está em nossa resposta. As causas da dor estão em nós. A natureza é imparcial, é justa. Se fosse piedosa, não seria justa, pois trairia a maior finalidade da vida: a evolução, que nos faz progredir e aperfeiçoarmo-nos.

Por que nascemos de maneiras tão diversas, com tão diferentes bagagens de forças e de fraquezas, de direitos e deveres? Cabe a cada um justificar a sua prova e a sua dor, tão graves e diversas. Esse é um problema que deverá ser resolvido também por quem crê na criação dos espíritos a partir do nada, todos iguais ao nascimento. Para que a dor seja justa, é necessário sermos responsáveis pelas causas que a atraem, por as havermos provocado. Urge, como precedente, uma causa livre e nossa, para que haja justiça, quando nos fere um efeito doloroso e inexoravelmente nosso. As teorias vagas, que nada esclarecem neste terreno, são muito boas para as dores alheias, mas não ser- vem para compreendermos, resolvermos, guiarmos e suportarmos as nossas. Sem aquele precedente livre e nosso, não nos resta mais do que a horrível ideia de um Criador injusto ou inconsciente, empurrando-nos ao conceito ateu do caos. Se, para ficarmos bem, devemos renunciar de uma vez a com- preender, não nos resta mais do que completar o nosso suicídio espiritual.

Embora pareça desapiedada, a natureza é justa e benigna. No fundo, a dor, que aparenta ser negação, é uma afirmação; suas investidas contra a vida são de fato a favor da vida. Quem observar o próprio destino verá que as suas for- ças não golpeiam ao acaso, mas tendem a seguir particulares direções e a con- servá-las; preferem alguns pontos específicos, diferentes para os vários indiví- duos, mas quase sempre bem definidos e constantes para cada um em particu- lar. Assim como cada destino, também a dor, para cada pessoa, tem um caráter dominante, um sentido que persiste do nascimento até à morte, assumindo uma forma determinada correspondente a cada destino. Quem pode afirmar, a “prio-

ri”, que todas essas forças, cuja atuação é tão profunda em nossa vida, não te- nham uma natureza inteligente? Às vezes, elas se apresentam tão precisamente dosadas e dirigidas, que fazem pensar num mestre traçando as disciplinas de um curso e as classes de uma escola. Frequentemente, para quem olha em pro- fundidade, aparece esta ordem maior, que controla a aparente desordem do par- ticular. A natureza, ou seja, a inteligência das leis da criação, o pensamento- verdade de Deus, não nos prodigaliza gratuitamente as qualidades e as aptidões, mas nos impõe a sua conquista através do esforço, obrigando-nos a aprender com a experiência, quando não as determina por meio de reações, obrigando a aflorar aquilo que já estava latente em nosso espírito. Age, portanto, movendo- se em direção oposta, diremos quase por inversão, partindo da negação, para chegar à afirmação. Satanás serve a Deus.

Assim aconteceu com o nosso homem. Se as forças que se preparavam para submetê-lo à prova se desencadeassem todas de uma vez, atirando-se sobre ele com todo o seu ímpeto, num só golpe, elas o teriam sem dúvida esmagado. Cercaram-no, porém, pouco a pouco, dando-lhe a possibilidade de uma adap- tação progressiva e de uma compreensão relativa. Começou assim a formar-se ao seu redor como que um cerco de adversidades, e este cerco foi, passo a pas- so, estrangulando os gânglios vitais da sua vida humana, bloqueando os pontos estratégicos das vias de expansão da animalidade, da realização do eu inferior. A cada um dos seus ímpetos, a cada um dos seus desejos de espírito exuberan- te, como que uma coalizão de forças dizia quase premeditadamente: não. E a negação se dirigia a determinados pontos, constantemente, com tenacidade. Voltado, como todos, para as fáceis projeções exteriores, sentia-se precipitado nas trevas, cegado pelo espancamento das claridades da vida. Só mais tarde haveria de compreender o sentido das forças negativas. A condenação à ce- gueira terrena era a condição para a conquista da luz do céu. O destino agia nele, excitando as reações do espírito, e começava por mutilá-lo em tudo o que se referia ao plano humano. Inexoravelmente adversa, pareceu-lhe infernal aquela mesma vida que, para os outros, é naturalmente ditosa. Relatividade de posição e de destino. Incompreensão congênita.

Quanto esforço no fundo dessas trevas humanas, para achar o seu eu mais profundo! Quem encontra as portas escancaradas para o exterior e por elas se atira, ignora os tormentos, mas também não lhes colhe os frutos. Tal indivíduo pode passar a vida satisfeito com todas as suas pequeninas coisas, pode conti- nuar a crer em ilusões e a seguir quimeras, pode continuar a jurar convicto

sobre muitas coisas estupidíssimas, para somente na velhice, diante da morte, duvidar delas e perceber a verdade. Então, entre a dúvida e o remorso, ele se pergunta admirado: por que viver? O nosso homem fez cedo essa pergunta, colocando-se logo diante da morte e da eternidade. A dor o atingira e não lhe permitia juvenis esquecimentos. Ela o obrigou a se tornar consciente dos gran- des abismos da vida, desde o princípio. Foi triste, mas o encouraçou. A nature- za despertou nele, por essa maneira, todas as defesas. Ele mobilizou as suas energias, reagiu e se reforçou. Assim, de uma pequena vida humana negativa, ele haveria de fazer uma grande vida de espírito triunfante.

Não compreendia, mas Deus o vigiava. Aquilo que sentia como sufocação era antes o caminho da expansão; aquilo que sentia como morte era introdu- ção à vida; aquela opressão lenta que o arredava das coisas humanas o condu- zia para as coisas divinas. Eis a substância, o significado da sua prova. Se ela se apresentava na forma negativa, quase de punição, amarga e inexorável co- mo uma vingança, se ela tinha uma lógica compensadora e uma função expia- dora, tinha também uma ação positiva, recriadora e benigna: era a doença da ressurreição. Cair na angústia e debater-se nas trevas, para conseguir compre- ender por si mesmo e encontrar-se a si próprio, isto era o que lhe impunha o método de ação do seu destino. Acabou abatido, caindo destruído no chão. As investidas sucederam-se com intensidade progressiva. Viu-se só, escarnecido, desesperado. Arrastou-se com as unhas e os dentes, deixando nos espinhos da estrada pedaços da própria carne. Mas compreendeu. À prova gigantesca rea- giu com resposta gigantesca. O seu espírito podia responder, e respondeu. Então todo o centro da sua vida se moveu, deslocando-se em frente, para se transferir inteiro a um plano mais alto.

Via dolorosa, caminho da cruz, que teria de encontrar mais tarde o seu Ge- tsêmani. Os primeiros passos foram duros, não compensados pelas conquistas espirituais, não iluminados pela luz que delas provêm. Só havia então a dor humana, sem o conforto divino. Deus o guiava, sem dúvida, mas ele não o sabia. Uma contrariedade dispersa por todas as circunstâncias da sua vida o perseguia, acintosa e maligna. No entanto ele era tão bom, dócil, sincero, de- sinteressado. Talvez, justamente por isso, havia caído na vala do mundo, onde surgiam para feri-lo os sentimentos mais opostos. Os contrários se atraem. Viu-se cercado pela avidez de dinheiro, ele que nunca foi atraído pela riqueza. Nada mais pedia à vida senão paz, pois dela necessitava no seu anseio de re- solver o problema do conhecimento universal e particular. Mas ei-lo jovem,

com dois patrimônios sobre os ombros, cobiçadíssima posição para qualquer um, mas geradora de grandes responsabilidades. Não tinha sede de riquezas, não tinha ambições. Enquanto procurava resolver o significado do seu destino, a luta baixa e banal da vida material o cercava, exigindo toda a sua atenção, pedindo toda a sua atividade, esmagando-o de responsabilidades, tomando-lhe o tempo, a tranquilidade e a liberdade de espírito, absorvendo-lhe aquelas fa- culdades, em cujo exercício estava, para ele, a vida. Mas naquele espírito havia uma força que, quanto mais era comprimida, mais energicamente era impulsi- onada a reagir. Ávido de bondade, sujeitou-se assim a contatos humanos que o nausearam até o horror. E, como primeira experiência, teve de estudar o ho- mem na face torva do Judas. Ao invés da doçura de uma descuidosa alegria, teve de beber o mais amargo fel do espírito humano.

Estava no seu destino esta força, que parecia maligna, de desfazer as cons- truções, de envenenar as satisfações, de enredar e complicar tudo em inumerá- veis aborrecimentos, de amontoar erros sobre erros, para que ele visse no exte- rior um invencível labirinto de males. As melhores intenções, as mais prudentes previsões, as atitudes mais cautelosas, suas e dos seus, terminavam sempre na- quele emaranhado. Alguma coisa queria, contra todas as previsões humanas, manter essa rede de adversidades pequenas e grandes, para circundá-lo e sufo- cá-lo. E ele, que compreendia o jogo, devia sofrer a humilhação de passar por inepto, enquanto sentia que não o era. A riqueza, para não se perder, deve ser defendida, mas não poder defendê-la significava para ele uma grave responsa- bilidade moral junto aos seus. Era um acúmulo de fastio, de preocupações e de desprazer, num conflito insolúvel de deveres. Os costumes correntes eram re- almente ditados pelo egoísmo, meio com o qual e pelo qual tudo se resolvia. Mas ele estava em outro caminho e não podia servir-se de tal recurso. O seu destino apresentava-se como caso típico de provas ao revés. Nosso persona- gem, que era rico de qualidades espirituais, ansiava exercitá-las e desenvolvê- las, porque nelas estava a sua vida, mas via-se na posse dos mais preciosos bens materiais, que, embora fossem os mais cobiçados pela média humana, eram, para ele, os menos desejáveis e se transformavam assim numa condenação. Devia exteriormente parecer afortunado e sofrer a inveja dos outros. Dizia de si mesmo: sou como uma planta que, se quiser viver, deve viver ao contrário, com as folhas enterradas e as raízes para cima. Da riqueza não sentiu senão o peso, a responsabilidade, a escravidão, os perigos. Ávido de outras conquistas, bem logo a maldisse. Buscava os ricos dotes do espírito, a inteligência, a bondade, a

retidão, a sinceridade, mas foi levado pela riqueza ao contato com a mais fétida imundície do espírito, experimentando a sensação de morrer sufocado numa esterqueira. Nasceu nele uma náusea, depois uma invencível repugnância por aquele gênero de seus semelhantes, um ódio pela riqueza, que os atraía. Neste ponto, aquilo que era considerado fortuna pelos outros não o era por ele, trans- formando-se para ele em outra fortuna, mas no sentido espiritual. A opressão da prova excitava a sua reação, na qual ele se revelava a si mesmo. Amava os espíritos nobres, desinteressados, no entanto a riqueza, pelo contrário, atraía para ele as almas mais baixas e ávidas. Então, para fugir à sufocação do fedor espiritual que delas emanava, despontou nele o pensamento de se libertar da causa que as atraía: a riqueza. Assim, iniciou gradativamente a realização práti- ca do programa evangélico, a espinha dorsal da sua ascensão espiritual, em razão do qual tinha nascido e para o qual queria viver.

Por essa via, começou a encontrar-se a si mesmo. O seu verdadeiro ser se revelava. Começou assim a não mais submeter-se à vontade, às concepções e às unidades de medida que a maioria fazia para si mesma e lhe queria aplicar,