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cidade e aprendeu a detestá-la. Às artificialidades do homem continuou sem- pre preferindo a simples, boa e nutriente potência da natureza. A cultura supe- rior não o persuadiu. Não a estudou senão para combatê-la, cada vez mais decidido a se conservar ele mesmo. Observava-lhe os métodos e a aplicava mecanicamente sobre o seu espírito, como um verniz, satisfazendo as exigên- cias de seu tempo, enquanto os germens da sua personalidade amadureciam. Praticava uma espécie de mimetismo, aceitando os conceitos usuais em sua vida cotidiana, para melhor ocultar o seu eu, que desejava desenvolver-se sozinho, de forma independente e em profundidade. As possibilidades de qualquer compreensão iam sendo sucessivamente afastadas, e ele só pedia para não ser perturbado.

Foi levado pelos seus familiares à Faculdade de Direito. Empregou os pri- meiros dois anos na tarefa de compreender o mecanismo psicológico daquela nova forma de estudo, para adquirir agilidade de pensamento e de palavra, desenvolvendo o sentido de orientação naquele campo cultural. Nesse tempo, aproveitando-se da liberdade de iniciativa que os novos estudos lhe permiti- am, aprendeu várias línguas modernas e completou os seus estudos de piano. Com as línguas, aprendeu a psicologia dos povos; com a música, assimilou o espírito dos grandes músicos. Frequentou muito pouco a Universidade. Após haver compreendido o mecanismo dos exames, esforçou-se para superá-los nos dois anos que lhe restavam. Distinguiu-se apenas na defesa da tese, por- que somente então teve liberdade de escolher o tema. Nos exames, não havia tirado mais do que um magro dezoito, pois não podia aplicar neles o seu sis- tema rebelde, que se dirigia em cheio contra as teorias dos professores.

A absurdidade de tantos conceitos no campo jurídico, social e econômico foi a única convicção que lhe restou daqueles estudos. Não o convenceu a base hedonística das ciências econômicas. Sorriu da ingênua pretensão de se poder construir conceitualmente sobre os desagregadores princípios do egoísmo, e rebelou-se contra todo o sistema. Não o convenceu a concepção do jus8 roma- no. Para ele, entre a força e a justiça havia um abismo. Tratava-se de dois con- trários, inconciliavelmente adversos, feitos para se elidirem, e não para se fun-

direm. Não se podia chegar ao verdadeiro direito através da codificação das consequências da luta. Segundo pensava, não se podia chegar à justiça partindo desse indelével pecado original que é a força; nenhum aperfeiçoamento ou sa- piência aparente poderia corrigir este insanável erro e vício de substância, pois não é possível conseguir transportar isso que pertence a um mundo inferior, onde manda o mais forte, até às alturas de um mundo superior, onde somente o mais justo deve reinar. Rebelava-se contra aquela axiomática aceitação, pois esta era apenas o reconhecimento e a legalização do fato originário da força, que ele condenava completamente, como expressão de um plano biológico in- ferior, o qual jamais poderia considerar como seu. Voltava aqui o contraste entre as leis de dois diferentes planos de existência. Ele não podia tomar a sério senão a justiça integral do Evangelho, o código substancial, escrito apenas na alma, sem outros juízes além de Deus. No entanto compreendia o esforço hu- mano e, por isso, apreciava a concepção romana, que destinava-se a civilizar a força, impondo-lhe ordem, para equilibrar os seus impulsos contraditórios e em luta. Sentia que, mesmo ali, era possível a genialidade. Compreendeu, mais tarde, que a força e a justiça nada mais eram senão os extremos da mesma lei em evolução, e admirou no homem o esforço desta fatigante transformação. Por ser lei, o jus é ordem, e toda criação de ordem é um passo do homem para Deus. Mas aquele era o lento caminho humano, que chega à justiça através da disciplina, da organização e da codificação, era a longa estrada da constrição exterior, necessária para o homem, enquanto ele preferia as vias interiores, da convicção simples, mas substancial, preferia chegar direta e prontamente ao centro da consciência, onde se encontra o campo das motivações, a raiz dos atos humanos. Era uma questão de maturidade e de temperamento. Ao contrá- rio dos seus semelhantes, voltava-se antes para o divino do que para o humano, sentindo mais substância na cruz do perseguido e humilde Galileu, do que na águia do domínio romano. Vagando por Roma, onde se encontrava estudando, sentia que as catacumbas subterrâneas desafiavam o Coliseu e, em certo senti- do, o haviam vencido. Além disso, na escola, na imprensa e na conduta huma- na, ele via dominar então uma ideia de Estado tão convencional e retórica (es- tava-se em pleno parlamentarismo), que não podia, na sua sinceridade, admirá- la muito. Mais tarde os tempos mudaram, dando razão à sua repugnância. Mui- tas concepções jurídicas, políticas e sociais do seu tempo foram depois corrigi- das, no sentido que o seu instinto lhe indicava. Amadurecendo nestes aspectos menores, ele também reviu e corrigiu os seus valores, compreendendo melhor a

função da Águia9, mas de uma Águia que não deveria ir além das suas funções específicas na obra humana e terrena. Seu instinto, sua função e sua missão estavam e permaneciam no campo da Cruz, o qual também não deveria ir além da sua função específica, referente ao campo divino do espírito. Águia e Cruz, Estado e Igreja, foram para ele os expoentes, as expressões concretas das duas leis: a humana e a sobre-humana, entre as quais via o mundo dividido. Conside- rando cada lei no seu respectivo plano, compreendeu-as e respeitou-as na justa posição que lhes cabia. Porém a sua congênita incompatibilidade com o ambi- ente humano não lhe permitia estar plenamente presente e ativo senão nos ter- renos tendentes a superar tal nível. Por instinto, era levado a procurar evadir-se daquele ambiente, ao invés de mergulhar nele para o trabalho. O seu terreno foi, portanto, não a vida política, mas a aplicação do Evangelho. Os princípios expostos aqui não são aqueles universais e absolutos, mas sim os relacionados com a personalidade do nosso personagem ao longo da narração de sua histó- ria. Assim lhe pareciam as coisas na sua posição evolutiva. Porém, de outras posições, a visão poderia sem dúvida ser muito diversa.

Perambulou através do direito romano, do direito canônico e do direito his- tórico, os quais interpretou a seu modo, aceitando apenas o que queria, pois estava disposto a torná-los, sobretudo, instrumento de uma fantástica reconstru- ção interior de certos ambientes históricos, vistos também em seus aspectos jurídico e político. As disciplinas econômicas e sociais o atraíram como alguma coisa biologicamente mais verdadeira, de caráter menos intencional e artificio- so do que as jurídicas. Interessou-lhe a formulação estatística das leis do fenô- meno social, estudo que o adestrou para a pesquisa das leis de todos os fenô- menos em todos os campos. Comoveu-se com a dispersão de tantos italianos pelo mundo, gerada por uma emigração ainda sem orientação e sem proteção. Amava a sua Itália, porém a queria diferente, mais unida, mais forte e mais consciente. O próprio fato de discutir e debater estas questões demonstrava, enfim, o quanto ele as tomava a sério, o quanto se distanciava do ceticismo e indiferentismo dominante, o quanto sofria por não encontrar nada de sério que lhe merecesse fé, objetivo em direção ao qual ansiosamente andava à procura. Jamais utilizou seus estudos universitários como meio para conquistas econô- micas, como preparação para negócios ou como arma refinada na luta pela vi- da. Algum outro poderia ter considerado a riqueza como supremo ideal e fazer

tudo por esse objetivo supremo. Acreditava que nesse sentido podia-se fazer alguma coisa, mas não qualquer coisa. Mesmo porque os seus objetivos eram diversos daqueles da maioria. Antes do problema econômico, era atormentado pelo problema do conhecimento. Outra era a sua fome, diferente daquela dos demais. Outros deviam ser os seus esforços e as suas conquistas, que se dirigi- am agora para rumos incomuns. Inconscientemente, já traçava o seu programa. Os seus inimigos haveriam de ser as suas últimas ligações com as leis biológi- cas do plano humano, que ele teria de superar. Mas precisava antes descobrir o entrosamento orgânico desse plano com o universo. E este era um problema imenso. Entretanto, naquele período universitário, embora não tivesse desco- berto a face da criação, havia pelo menos visto a face cultural do homem. Acreditando a princípio ter encontrado a verdade, ele não descobrira de fato senão uma das suas fases. Partiu então desiludido, para procurar em outra parte. Ele poderia talvez ter seguido com muito mais convicção as disciplinas ci- entíficas da Faculdade de Medicina. A ciência não pode fazer calar a grande e sábia voz da natureza. Este é o material com o qual ela lida, não lhe sendo pos- sível suprimir o grande pensamento que o agita, nem impedir que surja a cada passo, no seu caminho, a voz sapiente das leis da vida. Mas nosso homem de- via tornar-se advogado. Naquele tempo, era a autoridade paterna que escolhia. Dotado de temperamento sincero, tinha, porém, tal horror pelas cavilações, pelo ceticismo interior, pela aceitação das verdades relativas e elásticas, que buscou, como pôde, colocar-se a salvo.

Após diplomar-se, atirou-se à vida. Para ele começou então o verdadeiro estudo, através da luta e da experiência. Outro mestre o esperava para lhe en- sinar coisas muito mais profundas: a dor. Devia estudar e aprender sobre li- vros bem diversos: as tribulações. Mesmo assim, continuava a indagar no campo da ciência. Esta, porém, não lhe dava as últimas conclusões, que pro- curava. Admirava Darwin e Haeckel. Nos idos de 1900, eles estavam em vo- ga. Depois, foram em parte esquecidos e em parte corrigidos. A teoria de Darwin não teve da paleontologia a confirmação esperada, por causa do “mis- sing link” (o elo perdido) entre espécies contíguas e afins, tanto que hoje se encontra modificada. Justamente em 1900, De Vries redescobria a lei de Mendel, acrescentando-lhe sua própria teoria das mutações, da qual procede a hologênese do nosso De Rosa. Então, a partir do Congresso de Budapeste, os zoólogos declararam guerra ao transformismo. Mas tudo isso não importa. A ciência muda continuamente, não nos sendo possível saber o que ela nos po-

derá dizer amanhã. Embora, na ciência de hoje, a evolução não conserve o sentido derivativo que lhe era dado pelos monogenistas, aquela ideia central de uma ascensão evolutiva de todos os seres, rumo a formas de vida orgânica, psíquica e espiritual sempre mais elevadas, aquele conceito justo, lógico e poderoso, que tanto havia impressionado o nosso protagonista, permanecia não somente nos fatos e na sua experiência, mas também na própria ciência, que, progredindo através de sucessivas teorias, também o provava e não podia negá-lo. Daquele conceito sentia toda a inegável verdade que está na substân- cia das próprias religiões, sentindo-o com tanta sinceridade e imparcialidade, que não participava da atitude antirreligiosa e materialista que, por mera rea- ção do momento, o princípio evolucionista havia tomado. Concebeu-o, pelo contrário, como parte da própria ascensão espiritual; concebeu-o não como negação, mas sim como “afirmação da evolução das almas para Deus”; con- cebeu-o vivo e operante, como nas religiões.

Paralelamente, pervagava pela literatura estrangeira. Já havia, no liceu, lido Dante; agora lia em alemão, entusiasmado, O Fausto de Goethe. Certas cenas de Walpurgisnacht o impressionaram profundamente. Repassava pela sua men- te, como recordação, a visão de uma Alemanha medieval, nebulosa, densa de sombras, com cidades antigas como a de Nuremberg, amortecidas por céus cinzentos e luzes invernais, em meio a ruelas escuras e telhados de cumeeira afilada. Havia encontrado um pouco desse ambiente nas torres e naves internas de Notre Dame, em Paris, como se o Quasímodo de Victor Hugo ainda vagasse por ali, ao cair da noite. O norte germânico tinha, para ele, um fascínio pleno de misteriosa atração. Sobretudo as antigas e grandes catedrais góticas, que lhe apareciam numa luz de sonho. Não lhe tinha sido possível escrever à mão, em alemão, senão usando as antigas letras góticas. Seria atração, instinto? Por quê? Logo após ser diplomado, demorou-se alguns meses nos Estados Unidos da América, o qual percorreu até à Califórnia, visitando todas as suas belezas natu- rais, realmente grandiosas. Nada mais viu além disso. Achou as cidades monó- tonas. A linguagem, os costumes, a maneira de vestir, tudo era estandardizado de um oceano a outro. Um mundo rico de recursos, de espaço e de dólares. Mas, do ponto de vista intelectual, era um mundo pueril diante da Europa.

O Oriente asiático, da Palestina ao Egito e às Índias, ele o procurou nos li- vros, reconstruindo-o por todos os meios de documentação fotográfica. Uma vez que se tratavam de ambientes históricos, ligados a civilizações mortas, ele pôde reencontrá-los com suficiente aproximação, satisfazendo-se mesmo sem

visitar os locais. Muitas vezes, a crua realidade do presente, tão diversa do passado histórico, torna-se mais um obstáculo do que uma ajuda para essas reconstruções, às quais se chega melhor pelos caminhos interiores do espírito. Atraía-o sobretudo o antigo Egito, onde sobressaia o grande templo de Kar- nak, com suas imensas colunas, permeado pela sabedoria oculta dos seus sa- cerdotes e envolto no mistério dos seus ritos e dos seus mágicos poderes. Atraía-o, na mesma direção de pensamento, a antiga Índia, mais distante no tempo, mais velada na lembrança, mais misteriosa e profunda na sua consci- ência. O seu sonho retornava ao longo das preguiçosas e lamacentas águas do Ganges, indo da sua foz às ardentes escadarias de Benares; retomava o Brah- maputra até aos confins do misterioso Tibete, no coração do Himalaia. O que haveria na cidade sagrada de Lhasa? No entanto o lugar onde a sua alma vi- brava com violência era na recordação da Palestina ao tempo de Cristo. Esta era para ele uma visão de extrema doçura e profundidade espiritual. A terra bendita da Galileia lhe aparecia como uma música, como um vasto fundo or- questral de conceitos, como um arpejo de harmonias cósmicas, sobre o qual triunfava o Cristo. Sorria-lhe em doces ondulações o lago Tiberíades, profun- do e tranquilo como o sorriso de um anjo. Parecia-lhe sentir as figuras do Evangelho moverem-se nesse ambiente, em meio a muitos outros movimen- tos musicais, entrelaçados entre si, tendo como grande motivo de fundo a su- prema harmonia do Cristo, numa gigantesca sinfonia espiritual, dulcíssima e solene. Por essa terra bendita parecia-lhe ver andar a figura do grande Mestre, acompanhado de seus discípulos; ouvia sua voz e seu pensamento ainda a ecoar-lhe no coração; sentia seu olhar acalmar e resolver no seu íntimo todas as dores, todas as ânsias, todos os problemas da vida. Interrogava os Evange- lhos, lendo e relendo o grande livro da boa-nova, jamais se cansando de per- corrê-los, para compreender e sentir cada vez melhor o caminho de Cristo, no seu percurso da manjedoura à cruz.

Ele continuava assim a exploração do mundo exterior, através da qual, lentamente, definia-se no íntimo a visão dos lineamentos do seu mundo inte- rior, onde se encontrava o nó central do seu destino. No entanto, quão longo caminho a percorrer, quão exaustiva série de experiências! Muitos germens já haviam despertado naquele destino, no qual várias forças estavam em mo- vimento e agiam, avançando e amadurecendo. As pequenas ocorrências su- perficiais, filhas do determinismo da vida física, não tinham, para ele, ne- nhum sentido profundo no desenvolvimento lógico e orgânico do destino.

Elas são as pedras da grande estrada, as quais, não obstante, ensinam a cami- nhar; são os tropeços, as paradas, as pequenas resistências, que, embora es- torvem, fazem pensar e compreender; são os atalhos laterais, que, induzindo- nos ao erro na tentativa de digressões, ensinam a corrigir. Trata-se da matu- ração secundária, menor, à semelhança de um refinamento que, ajustando os pormenores, vai, na medida do possível, preenchendo os interstícios do gran- de trabalho central. Quando faltam o tempo e as forças, somos levados à de- riva por esta forma de maturação, que permanece incompleta, mas sem acar- retar prejuízo. O relato destas pequenas vicissitudes não tem importância, por isso as deixamos de lado, para, em vez delas, seguirmos as vias mestras do desenvolvimento daquela vida.