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Ele havia nascido na mística Úmbria4, em fins do século XIX, quase à som- bra de São Francisco, figura que se agigantou no seu espírito. Penúltimo de numerosa série de filhos e não esperado, viu-se no mundo como por engano e provocou atenções especiais. Nascera numa tarde de agosto, na simplicidade de uma casa simples, num velho bairro de ruas estreitas, enquanto a turma dos irmãos, para dar paz à casa, tinha saído a passear. E, assim como nascera, vi- veu longe das vãs complicações da riqueza, livre da escravidão de tantas exi- gências. Feliz de quem nasce na simplicidade, onde não falta o necessário e não se é escravo do supérfluo; onde a vida, que em tudo deseja sempre crescer, tem espaço para subir, pois inicia na humildade. Que caminho resta a percorrer para quem já nasceu rico e poderoso, senão decair? A vida é um vir-a-ser e não se pode pará-la. É necessário seguir um caminho. Se não se puder fazê-lo em ascensão, termina-se por fazê-lo em descida. Essa é uma lei fatal da vida. Ha- veria para o privilegiado um remédio, que seria livrar-se logo da sua posição de privilégio, da injustiça que pesa sobre ele, reclamando justiça; livrar-se logo do débito contraído para com os semelhantes ao nascer em posição favorecida, débito do qual as justas leis da natureza exigem o pagamento. Mas livrar-se é muito difícil para o bem nascido, que cresce enfraquecido, tanto pelas facili- dades da vida, as quais não lhe ensinam desde cedo a luta, como pela proteção dos pais, que o amam. Essa desgraça de haver nascido já feito não merece, portanto, como se costuma fazer, a nossa estúpida inveja, mas tem, isto sim, o direito à nossa benévola piedade e ao nosso auxílio.

Feliz, pelo contrário, quem nasce com a riqueza do espírito, que mais fa- cilmente se encontra e se desenvolve na pobreza das coisas humanas. Os te- souros da Terra podem ser perdidos, mas não os do céu. Em meio à barafunda das incertezas humanas, há aquela maneira incrivelmente segura de investir- mos as nossas riquezas nos valores imperecíveis do espírito. Estas primeiras referências são feitas aqui justamente por exprimirem o tom fundamental que dominará esta história em todo o seu desenvolvimento. Desde o princípio, oposição absoluta entre espírito e matéria, luta dos princípios morais contra o utilitarismo do mundo. Desde o princípio é mostrada aqui, bem clara, a inver- são evangélica dos valores humanos. Neste relato, veremos desenvolverem-se

as ásperas sucessões dessa trágica batalha, nem sempre vitoriosa. Essa história de um homem está, portanto, em perfeita harmonia com a substância do cristi- anismo e com a revalorização das forças do espírito, hoje, sob certos aspectos, sustentada abertamente.

Assim como todos, ele também trazia em si as notas da sua raça, que, ma- nifestando a característica úmbrica, assinalava o tipo italiano geral. Diz-se que os antigos romanos possuíam o dom da vontade e do equilíbrio; os tosca- nos, o da expressão; os umbros, o da intuição. Assim o lugar do nascimento e o tipo da sua gente, taciturna, sóbria e trabalhadora, já esboçavam um pouco do seu destino.

Também a hora, o dia, o mês, o ano e as constelações – como afirma a astro- logia – influenciam no destino de um homem. E seria absurdo negá-lo “a priori”, por simplismo ou ignorância materialista. A radiestesia, ciência das vibrações que todas as coisas, inclusive o homem, transmitem e recebem, está apenas nas- cendo. E já está séria e cientificamente justificada a desconfiança de que existem no céu e na terra muitas coisas sutis, inegavelmente reais, embora imponderáveis. Certamente, em meio a tudo isso que existe, o homem transmite e, sobretudo, recebe uma quantidade infinita de vibrações, das quais se ressente, ainda que que a sua atual insensibilidade não lhe permita percebê-las com clareza.

Não importa saber que nome o protagonista recebeu ao nascer. Dê-lhe o lei- tor um nome qualquer, que mais lhe agrade. O verdadeiro nome do homem não é dado pelos registros sociais, mas sim pelo seu tipo, pelo seu destino e pelas suas obras. O nosso personagem aqui se encontra como um soldado anô- nimo da vida, no qual poderá encarnar-se quem quiser. É um tipo ao qual só se poderá dar um nome ao fim do seu caminho terreno.

Assim, tal como uma força progressiva num mar de forças em ação, ele se encontrou a viver nesta imenso campo de exploração, que é a Terra. Em torno dele vibraram efeitos de próximas e remotíssimas causas, das quais não tinha conhecimento. Para esse recém-nato, o mundo apareceu como trevas, em meio às quais a centelha espiritual, concentrada no eu, devia por si própria aprender a ver. A infância apresentava-se para ele como uma jornada incerta e temerá- ria, onde cada passo e cada hora eram uma conquista. Indagar, explorar e ex- perimentar, era o seu desejo e a sua tarefa. Primeiramente, ele aprendeu as grandes palavras da vida: “mamãe”, que expressa a gênese do eu, do centro da consciência; “quero”, cujo significado é a expansão e a concentração do eu; “por que?”, na qual, resumindo a grande pergunta, que jamais poderá ter uma

última resposta, está contida a infindável busca por Deus. Aprendeu então a caminhar, porque, materialmente e moralmente, caminharia toda a vida. Mas já sabia chorar desde o momento em que veio à luz, quando a dor o tomou em suas garras e não mais o largou.

Tão logo uma criança nasce, começa a se desenrolar para ela um fio, ao longo do qual inicia-se a marcha que será batida, até à morte, pelo ritmo inexo- rável do tempo. Mas nem o fio se desenrola nem a marcha avança ao acaso. A consciência da criança é uma semente que se desenvolve e se expande, consti- tuindo um germe no qual estão contidas todas as características fundamentais da futura personalidade. As notas centrais já estão dadas, e não mudarão mais. Isso acontece com todos os germes vegetais e animais. Vem depois a educa- ção, à qual é submetida a criança, que se adapta ou reage segundo os diferentes casos. Intervêm a seguir as forças externas, não só através das exigências dos outros seres e das imposições da convivência social, mas também dos freios morais do dever e da virtude, que se sobrepõem ao instinto. Então o tipo origi- nário, tal como fora construído por sua história biológica, enfrenta todas as pressões, adaptando-se mais ou menos; transforma-se um pouco, mas também aprende um pouco a mentir e a esconder o seu verdadeiro eu; dobra ante a sua vontade algumas forças externas, mas termina sendo dobrado por outras. Dis- pondo de seu eu originário, constituído por qualidades boas e más, com os respectivos recursos e deficiências, ele deve saber chegar até ao fim, abrindo caminho num mar de forças que o circundam e que, de todos os lados, fazem pressão para invadi-lo. Assim como ele, cada uma destas forças lhe diz: “eu” e “quero”, não encontrando paz, enquanto não se realiza a si mesma. Desse mo- do começa a vida, que é luta e, da maneira como está biologicamente implan- tada em nosso planeta, não pode ser senão luta sem tréguas, para o forte e para o fraco, para o evoluído e para o involuído. Trata-se de uma verdadeira escola, e ai de quem se exime dela. Ai dos jovens a quem os progenitores, por exces- sivo e muito prolongado afeto, que exagera as funções protetoras da criança além dos limites naturais, entregam os meios fáceis para eles se eximirem à luta. Certas educações cômodas e fáceis são depois pagas duramente. É neces- sário que cada um se exercite em seu plano, no seu respectivo nível, segundo o tipo fundamental estabelecido em seu nascimento. Não é possível eximir-se disso. A luta não é violência nem subjugação senão embaixo. Mas nem todos sabem subir. Nem mesmo leis e religiões puderam agir tão profundamente, para civilizar o fundo bestial da natureza humana. Porém, para quem quer e

sabe, há formas superiores de luta viril e generosa, que não são uma condena- ção à animalidade, mas sim uma afirmação da mais alta potência no espírito. É este o campo no qual é preciso aprender a lutar. A luta é uma lei necessária da natureza, e não está no poder humano evitá-la. No entanto somos responsáveis pela forma de luta que utilizamos, a qual nos cabe escolher, segundo aquilo que somos e, sobretudo, segundo aquilo que queremos e sabemos nos tornar. “Diz-me como lutas e por que lutas, e eu te direi quem és”.

Temos falado do destino. Mas haverá realmente um destino? E, se houver, em que sentido? A vida é um encadeamento de causas e de efeitos que se pode perquirir, remontando muito aquém ao momento em que o indivíduo nasce. Assim os filhos são uma consequência dos pais. Mas, no nascimento, aquele fio comum, que se transmite de geração em geração, torna-se particular e pró- prio de cada um, passando a ser chamado: “eu”. Destacando-se então do eu anterior, do qual depende grandemente, o eu se conserva distinto dos eus su- cessivos, nos quais, aliás, continua e quase sobrevive. Ora, naquele “eu” estri- tamente nosso, sucede que a parte consequente do passado – germe fundamen- tal do qual deriva o tipo de personalidade – já está então fora do nosso livre- arbítrio. Pelo menos para nós, que possuímos esta parte já cristalizada, defini- da na forma de germe, ela constitui uma coisa já então solidificada num de- terminado tipo. É dessa forma que, sem qualquer inquirição, a recebemos ao nascer. Não iremos mais fundo, neste trabalho. Algumas mentes se perturbam ao ouvirem falar de reencarnação, e não se tem o direito de perturbá-las. Cer- tas salutares ignorâncias serão respeitadas. Salutares porque a humanidade ainda está muito selvagem para ser posta a par de certos conhecimentos. E quem os possui faz bem de não divulgá-los, porque eles não podem e não de- vem ser concebidos senão por quem os mereceu, conquistando-os através da maturação. Sem isso, eles não podem ser compreendidos nem admitidos. Aqui se fala, portanto, simplesmente do passado da hereditariedade fisiológica e psíquica, que não podem ser negadas, porque a ciência as toca com as mãos.

Há, sem sombra de dúvida, em nossa personalidade uma zona de determi- nismo. Ela se encontra no fundo do nosso destino. Trata-se do instintivo e in- discutível subconsciente, que às vezes se impõe à nossa vontade, antes que a própria consciência desperte. Mas, sobre este fundo hereditário, filho do pas- sado em todos os sentidos possíveis, eleva-se uma zona de livre-arbítrio, um campo de novas e livres construções, porque o “eu” se forma e se reforma con- tinuamente, sem jamais se deter, construindo-se especialmente através de ex-

plorações e experiências que atravessamos neste ambiente terreno. E é justa- mente para a sua construção, ao menos no que respeita ao tempo da vida hu- mana, que nós a atravessamos.

Por destino não devemos, portanto, entender um cego fatalismo, um fato inexoravelmente imposto, mas sim um impulso anterior, que pode ser corrigi- do, cabendo a nós fazê-lo. Ao passado cristalizado podemos opor a força da nossa vontade presente, que pode retificar a trajetória daquela massa, cuja tra- jetória é não somente estabelecida pela inércia, mas também guiada pelo im- pulso da nossa atual, inteligente e livre vontade. Se isso implica uma zona de relativa e transitória irresponsabilidade inconsciente – a qual somente é assim no presente, porque o subconsciente é filho do passado – não viola, entretanto, a zona muito vasta de responsabilidade consciente do presente, sempre livre nas suas correções e criações5. Se devemos admitir, sob pena de nada compre- ender ou de acusarmos de injustiça o Criador, um passado nosso, livre e dese- jado, mesmo que ele hoje se apresente fixado em forma de determinismo, está claro que, na realidade, a responsabilidade abarca todo o nosso destino. O des- tino humano, que constitui um momento do eterno e necessário vir-a-ser, é, portanto, o desenrolar de uma luta entre determinismo e livre-arbítrio, entre o passado, que quer resistir, e o presente, que deve corrigi-lo. Assim a balança da justiça pende entre uma responsabilidade no presente, ligada a uma fatali- dade, e uma liberdade que, para vencer, estabelecendo um novo futuro, deve agora quebrar a resistência do determinismo contido no próprio destino.

5 Para uma exata compreensão do subconsciente, ver Ascese Mística, do mesmo autor, Parte I,