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Aufklärung e publicidade crítica: o auge da Esfera Pública

Liberal

A noção de debate público, especificamente no sentido de publicitação, de «uso público da razão», representa uma das componentes do pensamento proposto pela Esfera Pública moderna, sobretudo como esta se foi constituindo no espaço liberal burguês. A vontade de emancipação em relação ao obscurantismo das explicações metafísicas e teológicas traduziu-se no advento de uma publicidade crítica proposta por um Público que «pensa em voz alta» no seio de sociedades esclarecidas, de sociedades «iluminadas». O ideal de emancipação mediante o recurso a formas de racionalidade privada e interacção dialógica fez com que a publicidade burguesa fosse entendida como uma esfera formal de acção onde pessoas privadas se reúnem em qualidade de Público. Pessoas privadas mas publicamente relevantes mediante o tráfico mercantil e o trabalho social.178 Com o Iluminismo, estamos

perante o predomínio do modo discursivo e racional no sentido de alcançar as verdades objectivas e de submeter o Estado ao princípio nuclear da publicidade política.

Com efeito, a esfera pública iluminista pressupõe a construção de uma ratio que obrigue os Estados a publicitar a sua actuação, sobretudo mediante a condenação da prática dos arcana imperii e da instituição da categoria da opinião pública como poder «invisível» do «visível».

As componentes da esfera pública moderna implicam, assim, não só a existência de um campo de debate de opiniões, eventualmente contraditórias mas discutidas mediante o confronto racional e discursivo, como também o reconhecimento de um campo formal de acção legitimado pela pretensão de procurar e de alcançar a verdade sem opacidades nem enganos. Por conseguinte, a subjectividade constituída na vivência da propriedade privada da família e do espaço mercantil, possibilitou o aparecimento de uma publicidade crítica que participa na formação de uma opinião pública cada vez mais esclarecida e, consequentemente, mais interventiva. Uma publicidade que se separa do poder público e sobre a qual pessoas privadas, reunidas em qualidade de Público, forçam o poder político a legitimar-se mediante o «tribunal da opinião pública». Se na época imediatamente anterior ao Iluminismo o aristocrata era uma pessoa pública porque representava autoridade, e neste sentido quanto mais cuidadosos fossem os seus movimentos, quanto mais sonora a sua voz e mais estudada e medida a sua essência, mais perfeito seria,179 com o Iluminismo só aquele

que se submete ao juízo público consegue «publicidade».

Deste modo, o reconhecimento das funções da opinião pública pressupõe o requisito da liberdade e do exercício da discussão entre homens que se reconhecem entre si como seres racionais e capazes de alcançar a verdade política e social. Mas o que pressupõe o

178 Cf. Jürgen Habermas, Historia y crítica de la opinión pública. La transformción estructural de la vida

pública, Barcelona, Editorial Gustavo Gilli, 2006, p. 65.

reconhecimento de uma opinião pública como mecanismo capaz de alcançar determinadas verdades sociais e políticas? Eis a resposta da filosofia iluminista:

Pressupõe a existência de uma esfera de factos cuja dissolução é alcançável através do livre debate público levado a cabo por indivíduos dotados de racionalidade discursiva que lhes permite alcançar, mediante o recurso a tais faculdades, aquela verdade que outrora estava reservada à revelação da autoridade.180

Com efeito, a esfera pública liberal, ao proporcionar os mecanismos para o livre exercício da opinião, desencadeou o desenvolvimento da modernidade democrática assente nos critérios de livre discussão, de exercício da racionalidade e de gouvernment by discussion. Como forma de fazer face às «trevas da ignorância», as Luzes trazidas pela Ilustração propõem o livre exercício das faculdades intelectuais que, doravante, passam a constituir a base da sociedade liberal. Uma opinião pública esclarecida apenas se torna possível mediante o importante papel assumido pela educação, factor que conduz à instrução pública como elemento preponderante para o estabelecimento de uma sociedade racionalista a que se contrapõe um passado de obscurantismo e de opacidade do político. Opondo-se à «política de gabinete», urdida a portas fechadas, a publicidade burguesa procurará regulamentar as regras gerais de uma esfera privada, embora publicamente relevante, mediante a instituição dos princípios de concorrência e e discussão pública. O status normativo da codificação do direito burguês, que procura mediar as necessidades económicas de uma classe com o poder estatal correspondente, garante o tráfico de mercadorias entre pessoas privadas e a sua emancipação face às imposições estatais.181 A compreensão política

da publicidade burguesa apenas se torna possível mediante o desdobramento da esfera privada, de uma esfera que deve ser situada num plano de maior elevação face à esfera íntima.182 O raciocínio político, levado a cabo por pessoas privadas, constituiu-se como o «embrião da publicidade politicamente activa» no sentido em que o exercício efectivo do diálogo e da interacção pugna pela constituição de uma nova forma de discutir a vida pública e a sua regulação.

Esta esfera publicamente «interventiva» já não é, como na publicidade helénica, antitética da esfera privada da vida da casa – oikos –, mas pressupõe uma subjectividade e um processo de «auto-ilustração» de pessoas privadas. Jürgen Habermas apelidou a esfera privada de «esfera de mercado», ao passo que a esfera íntima é identificada como sendo a «esfera da família»183. Ora, se por um lado a burguesia se afirma como o principal agente de

trocas comerciais e económicas, por outro lado constitui uma nova forma de encarar e discutir os assuntos públicos. Com o Iluminismo, o espaço público já não obedece, como no Renascimento e no Barroco, a uma publicidade centrada na representação real onde o

180 Kimball Young et al., La opinion pública y la propaganda, Barcelona, Editorial Paidós, 1986, p. 101. 181 Cf. Jürgen Habermas, op.cit., pp. 110-111.

182 Cf. Jürgen Habermas, op.cit., p. 67. 183 Idem, p. 91.

soberano recebia nos salões nobres os mecenas e os artistas184, formando uma publicidade improdutiva quer política quer economicamente.

Por outro lado, as cidades tornaram-se cada vez mais foco de atenção e concentração de instituições caracterizadas por idênticas funções sociais. «Trata-se de centros de crítica literária e política onde se começa a estabelecer uma paridade entre pessoas cultas procedentes da sociedade aristocrática e da intelectualidade burguesa».185 Ao mesmo tempo,

a leitura e a escrita começam a adquirir um papel central. De facto, os jornais e revistas de crítica artística tornam-se num produto típico do século XVIII, sendo que a filosofia crítica apenas se torna possível mediante uma estreita conexão com a crítica literária e artística.

Por conseguinte, o publique, que na França se refere ao público de leitores, apenas percebe o processo vivo da ilustração mediante a apropriação crítica de filosofia, arte e literatura.186 Os periodical essays assumem-se como peças literárias importantes nas

discussões levadas a cabo nos clubes e cafés de uma esfera que começa a pensar publicamente. Os artigos dos jornais ganham cada vez mais proeminência enquanto objecto de debate e discussão pública e permitem que o escritor mais culto entre em contacto com os interesses do público leitor, público esse que pugna pelo alcance da ilustração e da transparência através da livre discussão. As próprias «casas de café» convertem-se em «incubadoras de agitação política» de uma publicidade politicamente activa que discute os conteúdos das revistas, dos panfletos, dos libelos e dos jornais. O processo através do qual o Público – composto por pessoas privadas –, se apropria da publicidade, convertendo-a numa esfera de crítica face ao poder político, torna-se possível mediante a organização específica da publicidade literária que cria as suas plataformas de discussão. Beneficiando da dinâmica imposta pela esfera privada – que começa a ganhar a forma de uma realidade objectiva –, a publicidade burguesa procurará regular a sociedade civil e fazer frente à tradicional autoridade aristocrática. Realça-se, com efeito, o carácter polémico e privado da nova Esfera Pública:

A representação dos interesses de uma esfera privatizada de economia mercantil é interpretada com a ajuda de ideias desenvolvidas no seio da intimidade da família restrita: a humanität tem aí o seu local genuíno e não, como corresponderia no modelo grego, na publicidade em si.187

No decorrer do século XVIII, a consciência política da sociedade burguesa procurará articular os conceitos de raison humaine e de législation no sentido de legitimar a opinião pública como fonte das próprias leis. Reunidos na qualidade de público, as pessoas privadas encontram-se «debaixo da lei tácita dos instruídos», lei cuja universalidade garante a subjectividade dos indivíduos que se submetem à public discussion. A esfera pública

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