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Entre a Transparência e a Opacidade: uma teoria do desvelamento

Transparência e opacidade, luz e sombra – o escândalo vive de uma tensão interna! Os esforços de publicitação são actos de desvelamento destinados a destruir os malefícios de uma coisa velada. O escândalo torna visível o que estava velado, desmascara o que estava oculto, traz à luz do dia o que se esconde por detrás do véu, e denuncia, inclusivamente, a presença do véu. De entre os filósofos da Aufklärung, foi sem dúvida Jean-Jacques Rousseau aquele que mais obcecado se mostrou com a ideia de transparência na esfera pública. A indignação de Rousseau contra a sociedade do seu tempo é o espelho dessa obsessão. Ao tentar compreender um mundo opaco, Rousseau denuncia a perda da transparência original numa sociedade onde a mentira, a opacidade e a hipocrisia conduziram à alienação do

18 Jean-Marc Ferry, «Las transformaciones de la publicidad política», in Jean-Marc Ferry, Dominique

homem. Efectivamente, o filósofo genebrino situa-se entre os «génios lampadóforos», como metaforicamente lhes chamou Jean Starobinsky, que contestaram os valores e as estruturas da sociedade monárquica.19 Propagando as Luzes, os filósofos iluministas criticaram as

instituições viciosas, as injustiças do poder absoluto, o absurdo dos abusos e a arbitrariedade das instituições. O «véu que descera sobre a natureza» indigna Rousseau. O mundo turvo embacia a consciência dos homens e Rousseau proclama o retorno à transparência entretanto perdida. «Porque sonha com a transparência total e com a comunicação imediata, precisa cortar todos os laços que o poderiam prender a um mundo turvo, onde passam sombras inquietantes, faces mascaradas, olhares opacos».20

Rousseau põe em causa, de maneira significativa, a ordem social e a perversão de uma civilização que vela a transparência da natureza originária. O seu esforço crítico denuncia a degradação da sociedade pela negação do lado natural e pela criação histórica de uma sociedade onde reinam a desordem, a distorção e o artifício, elementos que aumentam a distância entre a natureza límpida e o homem. É a sociedade negadora da natureza que Rousseau contesta nos seus Discursos. As «falsas luzes» da civilização encobrem a transparência natural, e a cultura vigente, ao invés de iluminar o mundo, esconde-se por detrás da mentira, da dissimulação, de um mundo de opacidade cuja principal característica é a negatividade, a negação da natureza. Ao condenar o mecanismo histórico que resultou na perda da transparência original, Rousseau «toma a palavra para dizer não à antinatureza».21

As instituições viciosas da sociedade, destruidoras dos laços sociais autênticos, perturbam Jean-Jacques Rousseau. A opacidade de um mundo inautêntico, onde triunfam o obscurantismo e a aparência, revolta o filósofo genebrino.

Com efeito, se o princípio da transparência se incorporou na Teoria Política hodierna muito se deve às cintilações iluministas de Rousseau. A reivindicação da transparência passou a fazer parte dos artigos políticos da Ilustração e a esfera pública, pelo menos do ponto de vista normativo, afirmou-se como esfera antitética dos espaços sombrios do poder. O oculto é, neste sentido, o adversário que a filosofia das Luzes decidiu destruir. A Enciylopédie de Dennis Diderot e de Jean Le Rond D’Alembert insere-se, justamente, na mesma exigência de publicidade. É preciso divulgar todos os segredos sem excepção, sem que o pudor e as máscaras resistam: «tudo deve ser mostrado, expresso e iluminado».22 O princípio da

transparência assume-se, deste modo, como condição essencial da democracia. A democracia mostra-nos o caminho da transparência, um caminho aberto a todos os cidadãos, acessível e menos limitado do que um governo de poucos, «onde mil obstáculos impedem que se dê a conhecer»23. Ao expor-se em plena luz, a Encyclopédie destaca o «julgamento crítico» das

19 Cf. Jean Starobinsky, A Transparência e o Obstáculo, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 34. 20 Idem, p. 53.

21 Idem, p. 36.

22 Jean Starobinsky, «L’arbre du savoir et ses mé tamorphoses», in Encyclopé die de Diderot et

D’Alembert. Essais et Notes, Vol. 18, Milã o, Paris, Franco Maria Ricci, 1979, p. 304.

23 Dennis Diderot, Jean Le Rond D’Alembert, La Enciclopedia, selección de artículos políticos, Madrid,

obras apresentadas ao espírito de um público letrado ao qual Diderot e D’Alembert se dirigem.

Neste sentido, e porque adquiriu uma componente simbólica, a esfera pública possibilitou a difusão generalizada das cintilações iluministas. A esfera pública conheceu o medium que permitiu as discussões prolongadas, a publicitação das atitudes, a observação e a propagação das verdades e dos segredos acerca da res publica. Para Jean Antoine Caricat, mais conhecido por marquês de Condorcet, a Ilustração tornou possível o estabelecimento de uma nova espécie de tribuna onde é possível difundir «uma luz independente e pura». Considerado como o «último dos iluminados», Condorcet é uma espécie de síntese da filosofia da Aufklärung. Próximo de Diderot, Voltaire e D’Alembert, Condorcet participou na Encyclopédie com artigos sobre Matemática, embora se tenha destacado pelas suas preocupações acerca dos problemas políticos da sociedade do seu tempo. Tal como Rousseau, Condorcet critica as máscaras que impedem o avanço das Luzes da Ilustração, centrando, especificamente, a sua análise no importante papel da Imprensa. Sem a «contribuição desta arte», as discussões prolongadas e as verdades que iluminam a vida pública acabariam por ser «desconhecidas e esquecidas». A iluminação generalizada é um efeito natural do desenvolvimento do medium:

Formou-se uma opinião pública, poderosa pelo número daqueles que a partilham, e enérgica porque os motivos que a determinam actuam sobre todos os espíritos. Assim, erigiu-se, em nome da razão e da justiça, um tribunal independente de todo o poder humano, em relação ao qual é difícil esconder seja o que for e impossível subtrair-se.24

É a «opinião pública», enquanto categoria política da Ilustração, que os iluministas em geral elogiam. A reivindicação da transparência percorre o espírito da Aufklärung. O retrato do homem «pintado do natural», que proclama Jean-Jacques Rousseau, percorre o desejo de transparência da categoria política da Ilustração. O evidente, o trans – parens – entis, aquilo que se compreende sem ambiguidade, incorpora-se na teoria da política democrática e o medium possibilita a observação da esfera pública, a publicitação do que deve ser conhecido, os julgamentos públicos e as discussões prolongadas:

Mais do que um auto-governo, que é uma forma obsoleta e irreal de definir a democracia, esta deveria definir-se como a transparência do público. (...) Por outro lado, a publicidade das decisões e actuações políticas, intrínseca ao funcionamento democrático, encontra nos meios de comunicação a sua condição de possibilidade. Uma política é democrática quando se mostra sem opacidades nem enganos. Para tal, a política conta

24 «Il s’est formé une opinion publique, puissante par le nombre de ceux qui la partagent; énergique,

parce que les motifs qui la déterminent agissent à la fois sur tous les esprits, même à des distances três éloignées. Ainsi, l’on a vu s’élever, en faveur de la raison et de la justice, un tribunal indépendant de toute puissance humaine, auquel il est difficile de rien cacher et impossible de se soustraire». Cf. Condorcet, Esquisse D’un Tableau Historique des Progrès de L’Esprit Humain, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1970, p. 117.

com os meios de comunicação e, praticamente, apenas com eles. Um dos propósitos dos meios de comunicação é contribuir para a transparência do público.25

Deste modo, a imprensa afirmou-se como o «olho da vida política», tal como a ela se referiu Alexis de Tocqueville. Ao fazer «circular a vida política em todo o seu vasto território», a imprensa constituiu-se como «o seu olhar sempre vigilante que põe incessantemente a nu as engrenagens secretas da política», forçando os homens públicos, pelo menos idealmente, «a comparecerem, um a um, diante do tribunal da opinião pública».26 É a propagação da luz «independente e pura» de que nos fala Condorcet. Os

mecanismos mais íntimos e impenetráveis do poder, próprios do Renascimento e do Barroco, devem ser desvelados perante a constituição de um novo soberano, o povo. A publicidade converte-se, então, num princípio basilar da acção política hodierna, tal como os princípios de visibilidade, vontade geral, racionalidade e autonomia, sociedade civil, debate público e juízo político. Tais princípios legitimam as instituições democráticas face ao mysterium do Estado Moderno. A luz pública opõe-se aos artifícios do poder velados pelos arcana imperii e pelos arcana dominationis. A publicidade é a pedra angular da Ilustração e se a discussão ocorre à vista do governo, as disposições do governo devem ocorrer à vista do público. É o carácter público do poder que se erige enquanto esteio das democracias liberais. Ao «poder invisível», como lhe chamou Norberto Bobbio, opõe-se a transparência liberal-democrática do público, do Estado. É, pois, neste sentido, que podemos afirmar que a esfera pública hodierna tende para a visibilidade, para a Publizität. Como, com acerto, assinala Carl Schmitt:

A política de gabinete, urdida por poucos à porta fechada, aparece agora como algo eo

ipso malvado e, portanto, o carácter público da vida política (öffentliche), em

consequência, ergue-se como algo bom e justo. A publicidade converte-se num valor absoluto, ainda que, em princípio, se trate apenas de um meio prático contra a política secreta, burocrática, profissional e técnica do absolutismo.27

Não obstante, tal não significa que tenha deixado de haver espaço para a intransparência na esfera pública e, com efeito, para a reivindicação de um certo pensamento da suspeita. Apesar da herança do espírito da Aufklärung, não existe uma total coincidência entre o real e a sua representação, entre os princípios elementares das democracias liberais e a observação da sociedade contemporânea. Na verdade, podemos afirmar que os registos de publicidade e de intrasparência se fundem muitas vezes. De resto,

25 «Más que como autogobierno, que es una forma obsoleta e irreal de definir la democracia, esta

debería definirse como la transparencia de lo público. (...) En cambio, la publicidad de las decisiones y actuaciones políticas, intrínseca al funcionamiento democrático, encuentra en los medios de comunicación la condición de su posibilidad. Una política es democrática si se muestra sin opacidades ni engaños. Para ello, la política cuenta con los medios de comunicación y casí solo con ellos». Cf. Victoria Camps, El Malestar de la Vida Pública, Barcelona, Grijalbo, 1996, pp. 179-180.

26 Cf. Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, Cascais, Principia, 2001, p. 231.

27 Carl Schmitt, Los fundamentos histórico-espirituales del parlamentarismo en su situación actual,

é, também, esta dialéctica que nos interessa observar. Por um lado, a democracia mantém o seu sentido tradicional de base enquanto esfera do público, do visível; por outro, a esfera do silêncio, do segredo, da simulação e dissimulação, da astúcia, dos redutos sombrios e opacos, é, de certo modo, intrínseca à acção política. Estamos, portanto, entre forças internas em permanente conflito.

De quanto acima se escreveu emerge, justamente, a desejável tendência das democracias para a luz da publicidade enquanto correctivo absoluto que tornaria impossível a existência dos mais recônditos espaços do poder. Porém, a desejável claridade contrasta com o obscurecimento natural do político. Apesar da iluminação da realidade societal, herdada da idade das Luzes, o invisível encontra-se para além da cegueira característica da excessiva visibilidade que nos rodeia. Intransparência na era da transparência. O carácter aparente do político, ou, se quisermos, aquilo que surge à sua superfície, não deixa ver a outra face da realidade. Profusão de imagens e artefactos mediáticos, manufactura do relato político, maquilhagem da realidade, trivialidade e entropia ideológica, excesso de ruído. Numa palavra, o oculto esconde-se por detrás de uma falsa transparência e, quando a instransparência do político se revela, fá-lo, muitas vezes, sob a fórmula de escândalo. O desvelamento inicial coloca-nos na presença do oculto, na presença do objecto que se esconde por detrás do véu. A verdadeira realidade torna-se manifesta e destrói a própria visibilidade aparente. É o desvelamento inicial, a destruição da aparência, que nos leva até ao escândalo e, neste ponto, deve acrescentar-se que a liberdade de imprensa se afirmou como protecção eficaz face ao obscurecimento do político. Assumiu-se como «controlling power», como instrumento criador de liberdade que combate os vícios e os obstáculos do poder. «Check to arbitrary power», como se pode ler no escrito On liberty of the Press and Public Discussion, de Jeremy Bentham (1821).28 A luz da publicidade ilumina os segredos do

público, e, em alguns casos, a verdadeira transparência, ao proclamar-se «em voz alta», põe a descoberto a face mascarada do político. A luz da publicidade e a acção do medium levam o desvelamento até à desmistificação do que estava oculto, até à descrição e exposição da verdadeira realidade. O desvio, velado pelas máscaras do poder, revela-se perante o «tribunal da opinião» e fá-lo através da destruição do segredo. O véu espesso que ofusca o desvio desce e a transgressão secreta, o segredo sem véu, converte-se em escândalo.

A constituição do escândalo enquanto realidade sólida depende, portanto, da existência de um desvelamento que se evidencia perante «todos os olhos». É, neste momento, que o escândalo ganha vida e, desde então, ele converter-se-á num espectáculo exterior, num espectáculo mediático agitador de consciências. Na era hodierna, o escândalo é um espectáculo mediático desvelado por uma comunicação, também ela, espectacular. E o «segredo generalizado», como lhe chamou Guy Debord, é o «complemento decisivo» da Sociedade do Espectáculo.29

28 Apud Carl Schmitt, Los fundamentos histórico-espirituales del parlamentarismo en su situación

actual, op.cit., p. 82.

29 Guy Debord, Comentários sobre la Sociedad del Espectáculo, Barcelona, Editorial Anagrama, 1990,

Escândalo e intransparência do Público: Da corrupção e dos

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