• Nenhum resultado encontrado

Escândalo e intransparência do Público: Da corrupção e dos poderes ocultos

A existência de poderes ocultos no interior da esfera política não é, propriamente, uma ideia nova. Tampouco é uma ideia nova a desmistificação de círculos fechados no que se refere aos actos de governação. Durante a Idade Média, por exemplo, a esfera pública assumiu uma componente litúrgica característica das sociedades feudais. A visibilidade do público dependia da exaltação senhorial própria da relação entre suseranos e vassalos. De outro modo, sabemos que a esfera pública característica do Renascimento e do Barroco se pautou por uma publicidade representativa assente numa cultura aristocrática centrada na Corte. A arquitectura barroca é demonstrativa do princípio de exaltação do poder. A publicidade política produz-se nos jardins do palácio e a vida pública do povo limita-se ao mero acto de contemplação do olhar. A publicidade representativa constituiu-se como presentificação de status, de aura e de grandiosidade. É um código específico de comportamento nobre exposto publicamente.30 As virtudes (areté) do senhor, do cortesão ou do príncipe, são expostas em público, mas, ao contrário da publicidade helénica, a publicidade representativa não se constitui nem como discurso (lexis), nem como acção (praxis) de comunicação política. A publicidade do poder político (publicness) confunde-se com a exaltação de magnificência, com a representação cerimonial do poder do monarca e atribuição de estatuto. A configuração da publicidade do poder não tinha que ver com a visibilidade dos actos do governo ou com a admissão do Terceiro Estado aos actos de deliberação. O poder apresenta-se perante os homens e não entre os homens que constituem o tecido societal (inter homines esse). Era de entendimento geral que os pequenos conselhos deliberavam melhor do que as grandes assembleias31, e, portanto, à publicidade

representativa corresponde uma técnica política conforme aos ideais de arcanum e de mysterium.

Apesar do desenvolvimento do moderno Estado Constitucional, baseado nas ideias de «autoridade visível» herdadas do século XVIII, a democracia e o constitucionalismo não aboliram, absolutamente, os redutos de segredo e os poderes ocultos. A visibilidade erigiu-se como conditio sine qua non quer da política, quer do Direito, mas tal não significa que ao lado do Estado visível, regido pelos princípios de publicidade e transparência, não se tenha constituído um Estado esotérico, pautado por redes obscuras de interesses parciais que se ocultam mediante novas formas de «poder invisível» próprias dos bastidores da acção política. Justamente neste ponto, o desvelamento destas formas ocultas do poder revela, muitas vezes, o desrespeito por procedimentos normativos que se configuram como esteio das democracias liberais. Deste modo, a existência de poderes invisíveis no regime do povo, pelo

30 Cf. Jürgen Habermas, Historia y crítica de la opinión pública; La transformación estructural de la

vida pública, Barcelona, Gustavo Gili, 2006, pp. 46-47.

povo e para o povo, a par da iluminação da vida pública possibilitada pelo desenvolvimento do medium, ajudam a explicar, em parte, a profusão de escândalos políticos na esfera pública hodierna. Quando o mundo oculto da política se desvela perante os nossos olhos, causando sentimentos de reprovação generalizada, é previsível que os procedimentos que regulam o exercício do poder tenham sido transgredidos. Na verdade, o desvelamento público de formas ocultas de poder pode pôr a descoberto, como veremos detalhadamente, redes obscuras de influência compostas por actores políticos que se servem, directa ou indirectamente, do exercício do poder político para a satisfação de interesses particulares. Do ponto de vista que aqui nos interessa, a saber: a eclosão do escândalo político por excelência, cumpre observar a constituição do escândalo mediante a transgressão de certos procedimentos normativos evidenciada através da acção do medium. A transgressão de normas e de leis que regulam o exercício do poder constituiu-se, como John B. Thompson assertivamente sublinha, como a «forma mais pura de escândalo político».32 Trata-se da

corrupção de convenções essenciais que regulam a política como profissão. Numa altura em que as relações entre os cidadãos e as classes políticas se vêem afectadas por uma profunda crise de confiança, o desvelamento de formas ilegítimas e ocultas de poder contribui para afectar o ethos da política enquanto «causa».

Quando a política como profissão se encontra ao serviço dos chamados beati possidentis, assegurando a viciação do sistema e a dominação das paixões e dos interesses, a democracia como regnum da transparência deixa de cumprir a sua promessa.33 Nestes casos,

o acto político transgride o Direito e a ética da profissão, sendo que a justiça como fundamento da governação, dá lugar à corrupção como consequência da governação. A corrupção do público começa quando o poder deixa de estar ao serviço do interesse geral para beneficiar os interesses particulares que se instalam na administração do Estado. Como muito sagazmente observa Alejandro Nieto, numa excelente obra dedicada ao Desgoverno do Público (2008), «a corrupção acompanha o poder como a sombra acompanha o corpo».34 O

Estado Constitucional deu lugar a um Estado clandestino, invisível, composto por lobbies que desvirtuam a vida pública. Com esta proclamação, não pretendemos asseverar que todos os homens públicos se deixam corromper, embora seja evidente a propensão do político para quebrar princípios éticos.

Baltasar Garzón viu bem o intrincado deste problema ao observar que a corrupção política se traduz numa espécie de «privatização do Estado» onde aqueles que deveriam ser os «gestores» do Estado se convertem em «donos» dos serviços públicos.35 De modo assaz

polémico, Baltasar Garzón reconhece que o desenvolvimento da história social e política é,

32 Cf. John B. Thompson, Political Scandal; power and visibility in the media age, op.cit, p. 196. 33 Para um autor como Norberto Bobbio entre as promessas não cumpridas pela democracia a mais

irremediável, grave e destruidora é, precisamente, a da transparência do poder. Cf. Norberto Bobbio,

Teoria Geral da Política, a Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, Rio de Janeiro, Elsevier Editora,

2000, p. 409.

34 Alejandro Nieto, El Desgobierno de lo público, Barcelona, Editorial Ariel, 2008, p. 154.

35 Baltasar Garzón, «El Arca de Noé», Prólogo, in Carlo Alberto Brioschi, Breve Historia de la Corrupción;

também, o desenvolvimento da própria corrupção. Não por acaso, Carlo Alberto Brioschi procurou narrar uma Breve História da Corrupção (2004), e fê-lo, justamente, partindo da Antiguidade até à era hodierna. Com efeito, na Atenas dos séculos V, VI e VII a.C, a corrupção e a demagogia foram instrumentos complementários nas cidades-Estado e, a propósito, Demóstenes descreve o profissional da corrupção na cidade democrática: «vai caminhando pela Agora como se fosse uma víbora ou um escorpião, com o ferrão em riste, saltando de um lado para o outro e procurando aquele a quem irá notificar uma desgraça, extorquindo-lhe dinheiro por temor a um processo».36 Efectivamente, o problema da corrupção já se colocava

no berço da democracia. Que o diga Sócrates, acusado por Meleto de «tornar mais forte a razão mais débil» e de, através da sua habilidade no falar, corromper os mais jovens. De facto, a A Apologia de Sócrates não deixa de ser uma crítica à corrupção da vida na Polis, pois Sócrates, durante o seu julgamento, criticou veementemente as «injustiças», a «aquisição de riquezas», as «conspirações» e os «partidos que surgem na cidade», enfim, «todos aqueles que cuidam mais de riquezas do que da verdade». Perante os cidadãos atenienses, eis a crítica socrática à administração do público:

(...) a verdade é esta, Atenienses, se eu me tivesse dedicado há muito tempo à política, há muito tempo teria morrido e não teria podido ser útil nem a vós nem a mim próprio. Não me leveis a mal estas palavras: qualquer homem que, generosamente, se oponha a vós ou a outra assembleia popular, para impedir que se cometam na cidade muitas injustiças e ilegalidades não tem hipótese de se salvar. Quem está realmente empenhado em lutar pela justiça e quer conservar a vida algum tempo, tem necessariamente de se manter simples e particular, não pode ocupar-se de negócios públicos.37

De outro modo, o carácter da corrupção pode, igualmente, ser retirado das Escrituras Sagradas, nomedamente do Novo Testamento. Quando os samaritanos se preparavam para receber o Espírito Santo através das mãos de Pedro e João, Simão, ao ver que o Espírito Santo era dado pela imposição das mãos dos Apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro: «Dai-me também a mim esse poder, para que, aquele a quem eu impuser as mãos, receba o Espírito Santo». De imediato, Pedro replicou: «vá contigo o teu dinheiro para a perdição, pois julgaste comprar o Dom de Deus com dinheiro».38 Esta é, de resto, a versão esclesiástica da corrupção, tão

difundida na Igreja Romana. Seja como for, quer na crítica platónica, quer no Novo Testamento, o acto de corrumpere indica a desintegração societal, a deterioração dos valores e da moral.

Etimologicamente, corruptionis refere o que está podre ou decomposto, refere a decomposição da matéria orgânica. A partir do século XV a palavra adquiriu o sentido que hoje se lhe reconhece sendo que, em português, há vestígios do uso da palavra «corruçom»,

Outline

Documentos relacionados