• Nenhum resultado encontrado

Da noção de «segredo»: considerações iniciais

«Não deixes que um segredo se aproxime mais de ti do que um evadido que jurou degolar-te»

Jules Mazarin «Três homens podem guardar um segredo se dois deles estiverem mortos».

Benjamin Franklin O segredo apresenta-se no «público» e no «privado» como uma noção de grande relevância, estabelecendo relações variáveis entre o que pode ser visto, portanto perceptível, e o que deverá permanecer obscuro, imperceptível, «invisível». Considerado como a «essência da arte de governar», facilmente se percebe que o segredo remete para algo que se encontra afastado do conhecimento público, aparte, algo que não deve ser publicamente revelado. A noção de segredo reporta-se, então, a uma categoria de conhecimentos reservados apenas a alguns, ou somente a uma pessoa se isso disser respeito à sua privacidade, intimidade, pensamentos ou desejos que ela queira esconder. Todavia, para além de conter em si um saber reservado, um saber onde paira o espectro da divulgação, o segredo apresenta outro atributo essencial: a relação específica que estabelece com o seu depositário.

Por várias razões, o que importa isolar, disfarçar, são os seus conteúdos. Todavia, fazer uma lista dessas razões adquire pouco interesse, tanto que geralmente opomos o segredo à sua descoberta, como se ele fosse uma máquina binária onde não existem mais do que dois pólos, segredo e divulgação, segredo e profanação (…). Quem o protege tem de estar em condições de perceber e detectar aqueles que estão em posição de aceder a esse conteúdo secreto.53

Quaisquer que sejam as variações da sua aparência, importa salientar que estas mantêm sempre a capacidade de influir na estabilidade social em caso de divulgação. É isto que vulgarmente se chama de «valor de uso» ou «valor de mudança» do segredo. Independentemente das suas finalidades ou funções, ele tem uma forma específica de se difundir, «de deslizar» para a esfera pública. Num livro admirável como o Breviário dos Políticos (1684), o cardeal Jules Mazarin inicia a sua obra de uma forma contundente: «Deves aprender a vigiar as tuas acções, nunca afrouxando essa vigilância. (…) É essencial que tenhas conhecimento de todas as tuas falhas e que vigies essa tua faceta».54 Trata-se de um texto

53«Ce sont des contenus qu’on juge bon d’isoler ainsi, ou de déguiser, pour des raisons elles-mêmes

variées. Mais, justement, faire une liste de ces raisons a peu d’intérêt, tant qu’on oppose le secret et sa découverte, comme dans une machine binaire où il n’y aurait que deux termes, secret et divulgation, secret et profanation. (…) Et celui qui protege le secret n’est pas forcément au courant, mais lui aussi renvoi à une perception, puisqu’il doit percevoir et détecter ceux qui veulent découvrir le secret». Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Capitalisme et Schizophrénie, Mille Plateux, Paris, Éditions du Minuit, p. 351.

verdadeiramente representativo do protótipo do político na era barroca onde as técnicas de simulação e dissimulação são elevadas à condição de princípio geral de sobrevivência na Corte. Mazarin descreve algumas práticas:

É bom que estejas informado a respeito de toda a gente, que não confies os teus segredos a ninguém, mas ponhas toda a tua perseverança na descoberta dos dos outros. Para isso, espia toda a gente, e fá-lo de todas as maneiras possíveis.55

Com efeito, o conteúdo do segredo sofre a acção de dois movimentos inseparáveis, mas em permanente conflito ou tensão. Num primeiro momento, a sua fórmula querer-se-á imperceptível e para isso devem ser accionadas as medidas necessárias para que o seu conteúdo não se manifeste, não se exteriorize. Todavia, ocultar um segredo pode ser uma herança demasiado pesada para alguns, existindo, igualmente, quem seja capaz de adivinhar ou prever a mínima intenção. A ocultação de um segredo cria uma espécie de enigma que suscita a curiosidade dos excluídos do círculo:

Resumidamente, o segredo, definido como um conteúdo que escondeu a sua forma dentro de uma “caixa”, é inseparável de dois movimentos que acidentalmente podem interromper o seu curso, ou até traí-lo. Qualquer coisa pode sair da “caixa”, qualquer coisa poder-se-á distinguir através dela.56

É impressionante a semelhança entre esta forma de interpretar o segredo, descrita por Gilles Deleuze e Félix Guattari, e aquela que se pode encontrar em Kierkegaard. Para o filósofo dinamarquês, a «sedução» é um trunfo importante para todos aqueles que procuram esconder um conteúdo secreto. Com efeito, Kierkegaard sublinha que «nada comporta ao mesmo tempo tanta sedução e maldição como o segredo».57 Se, por um lado, o charme do segredo advém do gozo que ele possibilita àquele que acede a um conteúdo que poucos conhecem58, é conveniente não esquecer, por outro lado, que quem esconde um segredo

serve-se de técnicas de dissimulação para preservar o seu carácter de intransparência. Possuir um forte poder de sedução é útil para enganar outro o que, por si só, pode permitir esconder determinados segredos, sobretudo os que dizem respeito à esfera íntima. Podemos, deste modo, asseverar que o segredo em si acarreta uma forte componente de sedução, de charme,

55 Idem, p. 17.

56 «Bref, le secret, defini comme contenu qui a caché sa forme au profit d’un simple contenant, est

inseparable de deux mouvements qui peuvent accidentellement en interrompre le cours ou le trahir, mais en font partie essentiellement: quelque chose doit suinter de la boîte, quelque chose será perçu à travers la boîte ou dans la boîte entrouverte». Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari, op.cit, p.352.

57 «Il n’y a rien sur quoi plane autant de séduction et de malédiction que le secret» Cf. Gilbert Maurey,

Secret, Secrets, De l’intime au collectif, Bruxelles, De Boeck & Larcier s.a, 1999, p. 114.

58 Do ponto de vista psicológico possuir um segredo transporta o seu depositário para uma posição de

excepção, de diferenciação em relação aos restantes seres. Pertencer a uma sociedade secreta, ou inclusive a um mero grupo social, por exemplo, pode fazer com que os seus membros se sintam superiores face a todos aqueles que se encontram excluídos do círculo. Para uma explicação mais detalhada veja-se o ponto intitulado: «O Valor Social do Segredo: a sociologia do segredo de Georg Simmel».

mas não é menos verdade que aquele que quer esconder um segredo fá-lo-á, com maior eficácia, caso se sirva dessa própria sedução para ludibriar o outro.

Não obstante, do ponto de vista psicológico guardar um segredo pode provocar um conflito interno no seu depositário. Quem pretender preservar um conteúdo secreto pode viver um verdadeiro drama entre a sua ocultação e a força que o segredo exerce internamente no sentido de ser revelado. A «maldição» de que fala Kierkegaard resulta nesta pesada carga cognitiva que o segredo transporta para o espírito de quem acede ao seu conteúdo, ou de quem o pretende preservar. Pode acontecer que aquele que recebe o segredo se sinta «horrorizado» por aceder a um conhecimento que o expõe ao perigo. Neste caso, a discrição não o seduz e desvendar o segredo pode ser um meio para tirar esta pesada carga de si próprio e projectá-la no outro59.

Com efeito, todo o segredo tem por base um pôr a descoberto, um desvelamento, uma divulgação. Não se pode confiar cegamente nele visto não ser um elemento estático ou inerte. Ele tem uma evolução específica dentro do espírito, podendo vir a apossar-se dele. Presente nos três tipos de poder consagrados por Montesquieu que, embora separados, se cruzam neste ponto, é o poder executivo que possui mais recursos para o gerir e proteger. Em Massa e Poder (1960), Elias Canetti dedicou um capítulo ao segredo e iniciou a sua reflexão de uma forma sintomática. «O segredo está no núcleo mais íntimo do poder». Canetti descreve algumas técnicas:

O poderoso que se serve do próprio segredo conhece-o com precisão e sabe apreciar a sua importância nas mais diversas circunstâncias. Ele entende o que deve fazer quando deseja obter uma coisa e sabe qual dos seus colaboradores deve utilizar em cada caso. Tem inúmeros segredos porque a sua cobiça é enorme e combina-os num sistema no qual estes se preservam reciprocamente: a esta pessoa ele confia um segredo; e aquela, outro. Procura o modo pelo qual os depositários de algum mistério não possam fazer conspirações entre si. Qualquer um que saiba algo é vigiado por outro, o qual, por sua vez, na verdade ignora o segredo de que é portador o indivíduo entregue a seus cuidados. Logo, só o poderoso tem a chave de todo o conjunto de segredos. Ele sentir-se-á em perigo quando deve partilhar isso, completamente, com alguém mais.60

Historicamente, o poder autocrático sempre se baseou nesta capacidade de espiar os súbditos, elevada à condição de princípio geral de governo. Como tão bem sublinha Canetti, a espionagem torna-se regra suprema quer nas relações entre governantes e governados, quer nas relações destes entre si. Na viragem dos séculos XVII e XVIII é visível como entre o discurso, o poder e a vida quotidiana, se estabelecem novas relações. Assiste-se ao encontro das palavras com o poder, um encontro onde a vigilância das instituições, ou o «clarão das disciplinas», procura eliminar toda a desordem social. Em A vida dos homens infames (1977), Michel Foucault fala-nos de «armadilhas, armas, gestos, atitudes, astúcias, intrigas, de que as

Outline

Documentos relacionados