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Escândalo Político e Máquinas Narrativas: como a arte jornalística reconfigura o acontecimento

Ao debruçar-se sobre o nascimento de uma sociedade pós-moderna onde os mass media desempenhariam um papel determinante, Gianni Vattimo inscreve a actual sociedade de comunicação, tão complexa quanto caótica, num sistema de fabulação do mundo. Em a Sociedade Transparente (1989), Vattimo reflecte sobre uma certa «erosão do mundo», o mesmo mundo onde a rádio, a televisão e os jornais contribuem para a explosão e multiplicação de visões alternativas. Esta «refiguração narrativa» presente nos mass media operacionaliza a informação pós-moderna, isto é, desconstrói para ilustrar, sequenciar, organizar, reconfigurar e, com efeito, captar a atenção dos seus destinatários.

(...) que sentido teria a liberdade de informação, ou mesmo apenas a existência de vários canais de rádio e de televisão, num mundo em que a norma fosse a reprodução exacta da realidade, a perfeita objectividade, a total identificação do mapa com o território?408

Enquanto sistemas de mediação, as organizações informativas interpretam os acontecimentos do mundo para lhes atribuir sentido, apropriam-se deles para representar a actualidade, para a tornar visível, dizível e inteligível. É, precisamente, deste registo da actualidade que a informação surge, muitas vezes, como «novela», como uma «estória» organizada temporalmente, com as suas personagens, recursos estilísticos e retóricos, proporcionando ao leitor uma experiência, de algum modo, mimética. O registo da actualidade torna-se, assim, mais agradável devido a uma escrita comunicacional cuja habilidade estilística aumenta a compreensão da estrutura narrativa. «Doravante, são os media que nos fazem descobrir, mediante um mise en récit, as histórias do mundo que nos ajudam a atribuir sentido à nossa existência».409 E fazem-no através de uma montagem, por

408 Gianni Vattimo, A Sociedade Transparente, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, p. 12.

409 «Avançons l’hypothèse qu’aujourd’hui le role joué jusqu’il y a peu par la littérature este complété,

vezes acelerada, da realidade, recorrendo a múltiplas imagens, interpretações e reconstruções. Este é, como refere Vattimo, o mundo fantasmático dos mass media. Deste modo, o «conto jornalístico», apesar de naturalmente se diferenciar do conto literário, recorre às técnicas da narração para suscitar o interesse do leitor e são, precisamente, essas técnicas, esses códigos, esses quadros conceptuais e essas operações linguísticas que dão forma à realidade seleccionada. Ao proporcionar uma determinada visão dos acontecimentos, a linguagem jornalística recompõe a realidade e produz, como refere Adriano Duarte Rodrigues, um «efeito de realidade».410

Ora, neste contexto, onde os meios de comunicação se assumem como «máquinas narrativas», o escândalo político apresenta uma dinâmica comunicativa que adquire significações e representações na medida em que a acção se reconfigura, se reconstrói no palco mediático. Neste processo de recomposição do escândalo, as componentes linguísticas ganham uma significação que possibilita a reconstrução do enredo jornalístico, a sua fragmentação, refiguração em episódios, cenas e personagens. O escândalo adquire um enquadramento narrativo que se baseia na organização textual das informações, uma organização que, como temos vindo a analisar, é manifestamente dramática devido à mediatização da política e ao seu carácter agonístico. O excesso de informação, de símbolos, de imagens, o excesso de individualização e de personalização do plano político, enfim, o excesso de artefactos mediáticos, favorece a dramatização do texto jornalístico e a sua refiguração enquanto intriga. Talvez seja por isso que as características estéticas do escândalo político facilmente provocam a adesão popular.

Com efeito, a organização dos seus elementos constitutivos permite definir a configuração do escândalo político como uma intriga mediática, como uma trama narrativa que, devido à acção interpretativa do jornalista, possibilita o acompanhamento da estória pelo leitor. O fenómeno é representado através da linguagem jornalística cujas formas de expressão linguística permitem organizar, mostrar, explicar, narrar os acontecimentos. A refiguração do escândalo político nos mass media tem uma finalidade comunicativa que, de certa forma, orienta e determina os próprios modos de percepção do escândalo enquanto narrativa jornalística. A descrição dos acontecimentos, a definição da temporalidade desses acontecimentos,411 a sua sequenciação em episódios ou actos, e a explicação desses

episódios, isto é, a atribuição de sentido à realidade que, entretanto, se reconstrói, são etapas que fazem parte de um trabalho de recomposição dos elementos que dão vida à narrativa do escândalo político. Por outro lado, e como os escândalos são, normalmente, experiências mediáticas complexas cuja estrutura temporal obedece a uma lógica de

récit, les histoires du monde grâce auxquelles nous donnons sens à notre existence». Cf. Marc Lits, Du

récit au récit médiatique, Bruxelles, Éditions De Boeck Université, p. 35.

410 Cf. Adriano Duarte Rodrigues, O campo dos Media, Discursividade, Narratividade, Máquinas, Lisboa,

Comunicação & Linguagens, Vega, 1988, p. 97.

411 Segundo Paul Ricoeur, existe uma relação recíproca entre narratividade e temporalidade. O autor

considera que a temporalidade é uma estrutura da existência – uma forma de vida – que acede à linguagem mediante a narratividade, enquanto a narratividade seria um jogo de linguagem, uma estrutura linguística que tem como último referente a temporalidade. Cf. Paul Ricoeur, Historia y

continuidade, deve olhar-se para a narrativa do escândalo político como uma sequência aberta de textos. De facto, ao converter-se em media event, o escândalo político adquire uma significação mediática mais ou menos consensual na medida em que este passa a estar presente na generalidade dos mass media. Esta intertextualidade do escândalo mediático pressupõe uma relação de contiguidade entre textos de diferentes edições e, inclusivamente, de co-presença entre textos de distintos órgãos de informação. Por conseguinte, a recomposição do escândalo político enquanto intriga implica a integração de vários textos, a sequenciação dos diferentes episódios e a sua integração numa narrativa mais complexa, mas, ao mesmo tempo, mais homogénea, integral ou unificada. É, justamente, neste ponto, que o fenómeno do escândalo político se reconstrói enquanto novela, se reconfigura enquanto acontecimento jornalístico e objecto analítico.412

Ao organizar o fluxo dos acontecimentos para que estes possam ser interpretados pelo receptor/espectador, os sistemas de mediação apropriam-se, de certa forma, desses mesmos acontecimentos para lhes atribuir uma lógica sequencial construída, no caso específico do escândalo mediático, diegeticamente. Porém, e no sentido de garantir a credibilidade dos factos que narra, o jornalista deve assumir a máxima autenticidade na articulação dos efeitos de realidade. Assim, a construção de um discurso narrativo cujo carácter é, sobretudo, intersubjectivo, deve edificar-se mediante a autenticidade expressiva do locutor, ainda que o discurso seja «permeável à ficção».413 O espectador vê, deste modo, a sua capacidade

imagética significativamente aumentada, facto que lhe ajuda a seguir a temporalidade dos acontecimentos, a sua sucessão em episódios que incluem um enredo específico onde as personagens interagem como se de uma intriga mediática se tratasse. Enquanto elemento que rompe o equilíbrio estrutural do sistema político, o escândalo assume uma significação dramática que provoca alterações na rotina jornalística, desequilibra o sistema político e, simultaneamente, transtorna o espectador. A refiguração da narrativa jornalística, a identificação dos conflitos principais e secundários e a caracterização das personagens são aspectos que possibilitam a refiguração do escândalo enquanto «conto jornalístico» que provoca uma certa ruptura quer no campo dos media, quer no campo político.

Com efeito, o desenvolvimento do escândalo político enquanto narrativa é um fenómeno complexo, mas, ao mesmo tempo, imprevisível. À medida que se desenvolve nos media, a estória adquire outros contornos e outras significações, sobretudo porque os jornalistas procurarão obter novos dados que aumentem o impacto e a complexidade da trama urdida e, sobretudo, que atribuam uma certa novidade a uma intriga que rapidamente se propaga na esfera pública. Esta imprevisibilidade impossibilita, de certa forma, a interpretação do escândalo de forma linear, mormente porque a filtração das informações,

412 Ao debruçar-se sobre meios de comunicação e comunicação narrativa, Luís Gonzaga Motta sublinha

que é possível integrar notícias isoladas em um «conjunto significativo solidário». O autor considera que para reconstituir uma narrativa jornalística é necessário «identificar a serialidade temática e o encadeamento narrativo cronológico», isto é, compreender a diegese a partir da reconstrução do enredo. Cf. Luiz Gonzaga Motta, «Análise pragmática da narrativa jornalística», in C. Lago, M. Benetti,

Metodologia da pesquisa em jornalismo, Petropólis, Vozes, 2007, pp. 143-167.

muitas vezes a «conta-gotas», torna a narrativa mais complexa e permite traçar uma nova configuração dos acontecimentos. O escândalo Face Oculta, que nos servirá de exemplo ilustrativo, surgiu inicialmente como um processo judicial «despido» das conotações político- partidárias que a politização do caso lhe haveria de conferir. As alegações jurídicas recaiam na possível existência de uma associação criminosa que procurava obter, mediante uma teia de tráfico de influências, benefícios privados junto de empresas públicas. As primeiras buscas realizaram-se em Novembro de 2009 e, um ano depois, o Ministério Público deduziu a acusação. Em Março de 2011, o juiz de instrução decidiu quais os arguidos que deveriam ir a julgamento, 34 pessoas e duas empresas, incluindo algumas figuras mediáticas como um ex- ministro socialista.

Apesar dos acontecimentos assim descritos parecerem relativamente simples e lineares, a verdade é que o escândalo se converteu num processo político com «uma certa veia romancista», como reconheceu um dos seus principais arguidos.414

De escândalo com características vincadamente financeiras, o Face Oculta converteu-se num escândalo político que envolveu directamente jornalistas, órgãos de informação, partidos políticos, o primeiro-ministro, o Presidente da República e, inclusivamente, várias figuras públicas como o ex-futebolista Luís Figo. Deste modo, a configuração analítica de um escândalo mediático com estas características implica a refiguração da estória que naturalmente resulta de uma esforço intersubjectivo de reconstrução e interpretação de alguns momentos do enredo, dos seus episódios principais e secundários e das suas personagens, ainda que tal análise nos convide ao exercício de algumas especulações. Se, num quadro mais teórico, procurámos caracterizar o escândalo como uma espécie de «arte política», talvez seja interessante, neste ponto, procurar interpretar a «arte jornalística» que, baseada em elementos de refiguração narrativa e de «realidade selectiva», como lhe chamou Gaye Tuchman415, converte o escândalo num acontecimento mediático. Regressando

à leitura proposta por Gianni Vattimo, «realiza-se, talvez, no mundo dos mass media, uma profecia de Nietzsche: no fim, o mundo verdadeiro transforma-se em fábula».416

414 Declaração de Armando Vara no dia do início do julgamento, 8 de Novembro de 2011.

415 Cf. Gaye Tuchman, «Contando estórias», in Nelson Traquina (org), Jornalismo: Questões, Teorias e

“Estórias”, Lisboa, Vega, 1999, p. 262.

O escândalo Face Oculta no contexto político português: Sobre

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