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Do segredo e da «representação de interesses»: como a «partidocracia» fomenta os segredos do poder

«Les princes commandent aux peuples, et l’intérêt commande aux princes».

Henri de Rohan «Do mesmo modo que o mundo físico é governado pelas leis do movimento, assim o universo moral é governado pelas leis do interesse».

Helvétius Um autor contemporâneo como Norberto Bobbio situa a técnica do poder secreto na esfera da acção política, tanto no que corresponde ao poder dominante, como no que se refere ao contrapoder. Segundo Bobbio, o segredo é inerente à acção política, tal como o recurso à técnica da máscara: «Subtrair-se da vista do público no momento em que realizam deliberações de interesse político e colocar a máscara quando se está obrigado a apresentar- se em público».87 Esta é a ideia da política como espectáculo ou, se quisermos usar um termo teatral e político ao mesmo tempo, é a ideia da política como «representação». Neste

84 Cf. Montesquieu, O Espírito das Leis, Capítulo XXIII, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 215. 85 Maquiavel, O Príncipe, Lisboa, Guimarães Editores, 2007, p. 112.

86 Ibidem.

sentido, aquilo a que Thomas Hobbes chama de «actor» foi transferido da linguagem teatral para a linguagem política, referindo-se a todos aqueles que representam palavras e simulam acções nas «tendas de campanha».

Com efeito, não pode haver representação política fora do âmbito da publicidade, isto é, não se designa por representação política aquilo que sucede entre portas fechadas, aquilo que acontece às escondidas do público. Norberto Bobbio, no seguimento dos estudos de Carl Schmitt sobre o tema da «representação», captou bem a ligação entre a representação teatral e a representação parlamentar quando escreveu o seguinte:

Nenhuma linguagem esotérica e misteriosa se ajusta à assembleia de representantes que são eleitos periodicamente pelo povo, e por isso responsáveis diante dos eleitores, sejam eles poucos ou muitos. Tampouco se adapta à democracia dos antigos, na qual o povo se reunia na praça para escutar os oradores e deliberar. O Parlamento é o lugar onde o poder é representado em dupla acepção: é a sede onde se reúnem os representantes e é o local onde, ao mesmo tempo, acontece uma verdadeira e apropriada representação que, como tal, tem necessidade do público e deve acontecer em público.88

Como sabemos, uma das vantagens vinculadas ao Absolutismo monárquico residiu, precisamente, na força concentrada do segredo. Os reis absolutos foram a mais poderosa figura dos seus Estados e exerceram o poder de forma pessoal, não admitindo delegações, absoluta, o seu poder não tinha controlo, e única, ou seja, que não se partilha com ninguém. «É somente na minha pessoa que reside o poder soberano, é somente de mim que os meus tribunais recebem a sua existência e a sua autoridade; a plenitude desta autoridade, que eles não exercem senão em meu nome, permanece sempre em mim, e o seu uso nunca pode ser contra mim voltado […] L’état, c’est moi»89, afirmara o jovem Luís XIV ao Parlamento de

Paris.

Efectivamente, os príncipes operaram como ministros de Deus, como seus representantes na Terra. Os defensores do absolutismo régio teorizaram que o poder soberano é um legado divino, sendo estes a «imagem de Deus na Terra». O soberano absoluto é omnipresente, ele está em todo o lado sem, contudo, se deixar ver. Exerce o seu poder de forma autocrática, mas a sua omnipresença é invisível. O poderoso absoluto não tem a obrigação de revelar aos súbditos o segredo das suas decisões. Assim, os arcana Dei e os arcana imperii encontram-se estreitamente vinculados um ao outro, como nos demonstra o bispo de Meaux e um dos principais teorizadores do absolutismo, Jacques Benigne Bossuet: «o príncipe vê de mais longe e mais alto: deve acreditar que vê melhor; e é necessário obedecer sem murmurar, pois que o murmúrio é uma disposição para a sedição».90

88 Idem, p. 308.

89 Respostas do rei ao Parlamento de Paris no sentido de reforçar a ideia de que os poderes do rei eram

iguais aos poderes do Estado. Advertências do Parlamento de Paris no século XVII.

90 Jean-Jacques Chevallier, Yves Guchet, As Grandes Obras Políticas, De Maquiavel à Actualidade, Mira-

De facto, uma das razões pelas quais Thomas Hobbes considera que a monarquia é superior à democracia prende-se, precisamente, com a maior segurança existente nos regimes autocráticos. Em democracia, tudo é discutido até à exaustão, «todos palpitam, todos interferem em tudo e nada acontece, pois tudo era já sabido de antemão»91. No

capítulo X do De Cive (1642), Hobbes afirma mesmo que as deliberações das grandes assembleias têm o inconveniente de que as decisões do governo, que quase sempre importa guardar como secretas, são conhecidas pelos inimigos antes que tenham sido executadas.92 É importante não mostrar ao inimigo os nossos movimentos, os nossos gestos e aspirações pois só assim o podemos surpreender, aumentando as possibilidades de dele nos defendermos, de o derrotarmos. Por outro lado, o segredo é justificado pela incapacidade do povo em perceber o interesse colectivo, o bonum commune.

É um facto que as duas situações apresentam um cariz defensivo, mas enquanto na primeira o segredo é motivado pelo facto do inimigo ou adversário poder saber demasiado, antevendo as nossas atitudes, no segundo o segredo justifica-se pela incapacidade que o povo tem em entender as deliberações do Estado, em compreender e aceitar a razão de Estado. Como afirma Norberto Bobbio, «em certo sentido os dois argumentos se opõem: no primeiro caso, o não fazer saber decorre de que o outro é capaz de saber demais; no segundo, o não fazer saber relaciona-se de que o outro entende pouco e poderia interpretar mal as diversas razões de uma deliberação e opor-se a ela com pouco critério.»93 Em 2008, a então líder do

PSD, Manuela Ferreira Leite, referiu-se à suspensão temporária da democracia como forma de «meter tudo na ordem»94 recuperando, de certa forma, os «inconvenientes» da democracia

teorizados por um autor como Hobbes.

Ora, se no caso dos regimes autocráticos o silêncio sempre se encontrou associado à conspiração, ao complô, nas democracias representativas ele pode ser encarado como um elemento preponderante para o enfraquecimento do sistema democrático.

Idealmente, a democracia constituiu-se como o «governo do poder visível», de um governo cujos actos devem acontecer em público e submeterem-se ao controlo da opinião pública. É por isso que a democracia se contrapõe aos regimes autocráticos, isto é, a formas de governo cujas actuações quase sempre importam guardar como secretas, subtraindo-se da vista do público. Em Democracia os responsáveis políticos não podem prescindir de prestar contas ao eleitorado, de explicar publicamente as motivações das suas atitudes políticas. Quando tal acontece deixa de haver, pura e simplesmente, representação política.

91 Elias Canetti, Massa e Poder, op.cit., p. 295.

92 «Em quarto lugar, os debates nas grandes assembleias têm outro inconveniente: embora com

frequência seja da maior importância que eles sejam mantidos em segredo, na maior parte das vezes, porém, são revelados aos inimigos antes que possam resultar em qualquer efeito, e o estrangeiro conhece a sua força e vontade tão cedo quanto o seu próprio povo». Cf. Thomas Hobbes, Do Cidadão, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 168.

93 Norberto Bobbio, O Filósofo e a Política, op.cit., p. 302.

94 «Não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e

depois então venha a democracia». Declarações de Manuela Ferreira Leite no final de um almoço promovido pela Câmara de Comércio Luso-Americana em 18/11/2008.

Efectivamente, a discrição é vista como uma velha máxima de acção política, pelo menos a avaliar pela forma como o cardeal Mazarin termina o seu Breviário:

Reflecte antes de agir. E também antes de falar. Porque, se há poucas possibilidades de alterarem no bom sentido tudo o que disseste ou fizeste, convence-te de que será deformado no mau sentido.95

De certa forma, o poder é visto como um jogo de aparências e quando se controla aquilo que se diz ocultam-se, também, as intenções e os objectivos. Em As 48 Leis do Poder (1998), Robert Greene assevera que «se tentamos impressionar os outros com palavras, quando mais se diz, mas ordinário se parece e menos se controla a situação. (…) A gente poderosa impressiona e intimida dizendo pouco».96 Robert Greene conta a história do russo

Kondraty Ryleyev, um poeta revolucionário que liderou a chamada «revolta decembrista». Quando em 1825 Nicolau I ascendeu ao trono russo, instalou-se no país uma revolta encabeçada pelos liberais que exigiam a modernização do país. Nicolau I mandou perseguir os insurrectos e acabou por condenar, à forca, um dos líderes do «movimento decembrista», Kondraty Ryleyev. No dia da execução, o condenado estava na forca com a corda ao pescoço, mas eis que a corda se rompeu. Ryleyev caiu vivo ao chão e em tom sarcástico soltou o seguinte comentário: «Como podem ver, na Rússia não sabem fazer nada bem. Nem sequer sabem fazer cordas». Naquela época, quando a corda se rompia em momentos como este, considerava-se que era um sinal divino e quase sempre o condenado era perdoado. Imediatamente um mensageiro se deslocou ao palácio para contar as novidades do enforcamento falhado. Ao saber do sucedido, Nicolau I estava disposto a perdoar Ryleyev e perguntou ao mensageiro se este tinha dito alguma coisa depois deste «milagre». «Disse alguma coisa Ryleyev depois deste milagre?» – perguntou o governante; «Senhor – respondeu o mensageiro – disse que na Rússia nem sequer sabem fazer cordas.» Nicolau I não hesitou em responder: «Nesse caso vamos demonstrar que isso não é verdade».97 O czar rompeu a ordem

de perdão e, no dia seguinte, a Rússia demonstrou que, afinal, sabia fazer cordas.

Ao contar a história da condenação de Kondraty Ryleye, Greene conclui que «há que ser especialmente cuidadoso com o sarcasmo, pois a satisfação momentânea que se ganha com as palavras incisivas será muito menor que o preço que se tem de pagar depois».98 Desse belo

livro que é As 48 Leis do Poder, vale a pena retirar a seguinte passagem de Leonardo da Vinci: As ostras abrem-se por completo quando está lua cheia; e quando o caranguejo vê uma, ele lança-lhe uma pedra ou uma alga para que a ostra não se possa voltar a fechar, e assim serve-se de carne o caranguejo. Este é o destino daquele que abre a boca demasiado e, por isso, fica à mercê de quem o escuta.99

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