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Entre a razão de Estado e as «razões» do Estado de Direito

Não parece restar a menor dúvida à pergunta se a razão de Estado, uma vez que implica a possibilidade de que determinados funcionários do Estado actuem excepcionalmente à margem e em claro confronto com a lei, se coaduna com a legalidade imposta pelo Estado de Direito.149 Colocada a questão da seguinte forma, a resposta deve ser

invariavelmente negativa, caso contrário estaríamos perante o critério do oportuno e do inoportuno, isto é, equivale a dizer que estaríamos perante a defesa da autonomia da política face à moral. A questão terá de ser colocada no nível em que o direito, princípio sagrado por muitos que sejam os sacrifícios do poder dominante150, possa regular a ideia de necessidade e

de excepcionalidade política, num novo marco político onde a praxis da sua acção esteja, incondicionalmente, submetida às leis. Por conseguinte, tudo aquilo que seja contrário ao direito das gentes é um claro obstáculo à liberdade segundo as leis universais.151

Deste modo, e no que se refere à discrepância entre a moral e a política, um autor como Kant defende que não é justo, nem legal nem moralmente, subsistir uma zona intermédia entre Direito e utilidade, entre Direito e racionalidade puramente política, isto é, uma zona obscura de um direito condicionado pela prática. Como, a respeito, constata Kant:

A moral é já em si mesma uma prática em sentido objectivo, como conjunto de leis incondicionalmente obrigatórias, segundo as quais devemos agir, e é uma incoerência manifesta, após se ter atribuído autoridade a este conceito de dever, querer dizer ainda que não se pode obedecer. Pois então semelhante conceito sai por si mesmo da moral (ultra posse nemo obligatur); por conseguinte, não pode existir nenhum conflito entre a

148 Idem.

149 Cf. Eusébio Fernandez García, Entre la Razón de Estado y el Estado de Derecho: la racionalidad

política, Madrid, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Universidade Carlos III de

Madrid, Dykinson, 1997, p. 29.

150 Cf. Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, op.cit., pp. 163-164.

151 Cf.Imannuel Kant, Introducción a la Teoría del Derecho, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales,

política, enquanto teoria do direito aplicado, e a moral, como teoria do direito, mas teorética (por conseguinte, não pode haver nenhum conflito entre a prática e a teoria).152

Ora, a posição kantiana não podia ser mais clara. Os conceitos de liberdade, moral, Direito e política encontram-se estreitamente relacionados na filosofia do autor. Com efeito, independentemente da transcendência ou, inclusive, da nobreza do fim que se pretende alcançar, sempre que os meios utilizados não estejam de acordo, em qualquer circunstância, com o Direito, a política passa a estar condicionada pela prática e não pelo Direito, o que equivale a dizer que nos encontramos perante uma violação do Direito e, ao mesmo tempo, perante uma contradição da política com aquele que deve ser o seu fim. Como, contundentemente, acaba por concluir Kant:

A verdadeira política não pode, pois, dar um passo sem antes ter rendido preito à moral, e embora a política seja por si mesma uma arte difícil, não constitui no entanto arte alguma a união da mesma com a moral; pois esta corta o nó que aquela não consegue desatar, quando entre ambas surgem discrepâncias. O direito dos homens deve considerar-se sagrado, por maiores que sejam os sacrifícios que ele custa ao poder dominante; aqui não se pode realizar uma divisão em duas partes e inventar a coisa intermédia (entre direito e utilidade) de um direito pragmaticamente condicionado, mas toda a política deve dobrar os seus joelhos diante do direito, podendo, no entanto, esperar alcançar, embora lentamente, um estádio em que ela brilhará com firmeza.153

Assim, parece claro que, em Kant, a racionalidade de acção do Estado deve dirigir-se no sentido de promover a garantia pelas normas jurisdicizadas, isto é, a liberdade dos cidadãos só pode ser assegurada se as acções dos mesmos (e as acções do próprio Estado) estiverem em conformidade com o respeito incondicionado pelo Direito. O mesmo equivale a dizer que em nenhum Estado denominado de «Estado de Direito», cujos princípios básicos devem ser o respeito pelo Direito e a prevalência do mesmo sejam quais forem as circunstâncias, se pode admitir a derrogação de alguns princípios jurídicos consoante a utilidade prática deste ou daquele fim. Pelo menos, será sempre necessário comparar direitos e, admitindo, ainda assim, o pressuposto de que lex specialis derogat generalis quando está em causa a segurança do Estado, é necessário que a derrogação de determinadas normas esteja justificada pela necessidade de assegurar não só a segurança do Estado, como também a segurança do Estado de Direito.

Isto significa que se por um lado o agir político está dotado, desde Maquiavel, de uma praxis de acção justificada por um logos específico, essa mesma racionalidade política terá de ser capaz de formular normativamente as situações de excepção mediante as quais será necessário derrogar as leis gerais. Contudo, se aparentemente dotar de um corpo jurídico os casos de excepção resolve algumas questões, o problema coloca-se quando se constata que

152 Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, op.cit., p. 151. 153 Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, op.cit., pp.163-164.

será sempre o Estado, como fundador do Direito, o reino superior, o elemento cuja racionalidade se encontra num plano transcendental, ainda que positivamente justificado pela lei que ele próprio fundou.

Por outro lado, como o proveito do Estado se encontra sempre mesclado, de uma forma ou de outra, com o proveito do soberano, nunca saberemos até que ponto a razão de Estado não permite ocultar a substituição do interesse público pelo interesse privado. Neste caso, estaríamos, mais uma vez, na presença da desforra da «representação de interesses» sobre a «representação política».

Com efeito, num Estado caracterizado pela prevalência do Direito, a razão de Estado deve saber conviver com as razões de um Estado de Direito. Se, como defende Friedrich Meinecke, as máximas do agir político se modificaram de forma fluida tendo em conta as mudanças do próprio Estado154, a razão de Estado, num Estado de Direito, terá de perseguir a

máxima concordância com o Direito no sentido de «salvar» o próprio Estado de Direito. No fundo, já não se trata de concentrar poder, mas antes de contribuir para um Estado mais forte, não pela sua expansão, mas principalmente pela salvaguarda dos seus princípios axiológicos.

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