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154 Cf Friedrich Meinecke, op.cit., p 3.

na sua conduta social. Como ninguém permanece calado para sempre, aquele que fala terá de escolher entre o que pacificamente pode ser dito, entre o que deve ser «representável», e o que deverá permanecer na esfera do silêncio. Como tão bem constata Elias Canetti:

Aquele que se cala é quem melhor se conhece. É algo mais preciso e valioso; algo que o silêncio não apenas protege, mas concentra. Um homem que se cala muitas vezes dá sempre a impressão de uma concentração maior. Quando cala, supõe-se que ele sabe bastante e que pensa muitas vezes no seu segredo. Encontra-se com ele sempre que o tem de proteger.156

Ora, é justamente o indivíduo que detém o poder do silêncio que consegue, simultaneamente, resistir à sedução de falar e, ao mesmo tempo, saber quando e em que circunstâncias o deve e pode fazer. No fundo, tratar-se-á de falar o menos possível sempre que se possa estar a ser vigiado. E, se assim for, o guardião do segredo correrá menos riscos se medir todas as oportunidades que se lhe oferecem para falar.

Para estudarmos a importância do segredo na esfera da acção política, não podemos desconsiderar as questões sociológicas e psíquicas que estão subjacentes ao fenómeno em si. Vimos, anteriormente, que guardar um segredo implica uma forte pressão cognitiva e uma luta interna que oscila entre a vontade da divulgação, vulgarmente conhecida como «desabafo», e a necessidade ou obrigatoriedade da ocultação. É neste ponto que a psicologia e a sociologia do segredo acabam por convergir, visto que o comportamento do ser humano no seio de um grupo social é vincadamente condicionado por disposições psicológicas. O interior do homem não só tem a capacidade de revelar a verdade acerca de si próprio, como também possui a capacidade de esconder esse mesmo interior mediante o recurso ao silêncio, à mentira e à dissimulação.

No seu estudo sobre o segredo e as sociedades secretas, Georg Simmel acaba por fazer uma análise fenomenológica dos processos de interacção social. Mas qual será a relação possível e existente entre segredo e interacção social? Ora, o autor interroga-se acerca da atmosfera de reserva e discrição que torna possível o conhecimento mútuo, sendo que a interacção social será, doravante, vista como um processo de pôr a descoberto.

Não obstante, e como tão bem sublinha Simmel, «o conhecimento de uns sobre os outros, que de resto determina positivamente as relações, não é a única coisa em jogo. As relações sociais implicam um certo desconhecimento, uma certa dissimulação recíproca».157 Vemos, assim, que, para o sociólogo alemão, forças sociais como a acção comum e a harmonia devem sofrer uma espécie de fricção a fim de produzir uma configuração fiel da realidade social. Isto significa que a evolução social só será possível se existir um permanente desequilíbrio nas relações entre os homens. Com efeito, do ponto de vista sociológico, o segredo tratar-se-ia de uma abstenção a conhecer tudo o que o outro não pretende revelar. Fundamentalmente, não é algo de determinado, de acessível ao público, mas antes um

156 Elias Canetti, Massa e Poder, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 294. 157 Cf. Georg Simmel, Secret et Sociétés Secrètes, S.L. Circé, 1996, p. 20.

direito à reserva e à intimidade, um jogo de imperativos: «tudo o que não é interdito é permitido, e tudo o que não é permitido é interdito!».158

Para a sociologia do segredo, o seu conteúdo deixa de estar, somente, ligado a pressupostos como a ocultação, a mentira ou a dissimulação visto que, do ponto de vista das relações entre os homens passam a ser, igualmente, enfatizados processos como a habituação e o respeito pelo silêncio do outro, a confiança e a cooperação em grupo. Georg Simmel inaugura, assim, uma nova forma de encarar o segredo vista, mormente, como uma dinâmica comunicacional que ajuda a estreitar e a fortalecer as relações entre os homens.

É neste sentido que as relações humanas se deparam com a questão do conhecimento recíproco: tudo aquilo que não é dissimulado pode ser conhecido, e tudo aquilo que não é revelado não deve ser, de forma alguma, conhecido.159

Efectivamente, Simmel pretende sublinhar a existência de uma espécie de propriedade privada no domínio do espírito, sendo que a discrição não seria mais que um direito aplicável à esfera de conteúdos que devem ser «incomunicáveis». Ora, se é verdade que a sociedade é modelada pela capacidade de expressão do homem, sobretudo pela fala, não é menos verdade que ela acaba por ser condicionada pela capacidade que o homem tem de se esconder, de se retirar dos círculos sociais. Por conseguinte, percorrer e analisar a vida social pressupõe uma fenomenologia sobre pressupostos como a mensagem, a confiança entre os seres, a reserva e discrição. Percorrer a vida social é, também, percorrer quer o segredo, quer as formas de revelação que nascem no núcleo mais íntimo das suas associações. Como, sobre este ponto, explica o próprio Simmel:

As relações profundas e fecundas, que nos possibilitam ter a honra de conhecer as últimas divulgações e que gostamos de conquistar a cada dia, não são mais do que uma recompensa pela delicadeza e auto-controlo que se refere ao respeito pela propriedade privada interior e pela percepção de que o direito de questionar o outro é limitado pelo direito ao segredo. 160

Com efeito, o respeito pela propriedade privada interior do outro deverá ser, segundo o autor, uma consequência resultante das associações humanas que reconhecem, mediante um sistema de auto-controlo, um certo «direito ao segredo». Cada um respeita a existência do segredo do outro sendo que aquele que dissimula, de forma intencional ou não intencional é, também, respeitado intencionalmente ou não. O autor encara o segredo como um elemento estruturante da interacção social, já que uma total transparência nas relações homem/homem, homem/sociedade, acabaria por torná-las absolutamente inviáveis. É neste sentido que o segredo conduz a uma «grande ampliação da vida», sobretudo porque uma

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