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2.3 Cultura brasileira: a formação do Brasil, aspectos e traços na voz de seus intérpretes

2.3.3 O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro

Darcy Ribeiro nasceu em 1922 em Minas Gerais e teve sua biografia marcada pela atuação acadêmica e pelas suas incursões no campo da política. O engajamento político seria, assim, uma de suas características mais marcantes.

Já no prefácio de seu livro Os brasileiros: teoria do Brasil (1978), Darcy Ribeiro faz uma espécie de declaração de princípios que demonstra seu engajamento político como intelectual:

O que me interessa agora, essencialmente, é contribuir para que se instrumente o brasileiro comum com um discurso mais realista e mais convincente sobre o Brasil, a fim de motivá- lo e capacitá-lo a atuar de forma mais urgente e mais eficaz na transformação da nossa sociedade. Este discurso, para ser eficiente, deve ser rigorosamente objetivo, mas deve ser também, lucidamente participante e comprometido frente aos interesses em choque que

afetam os destinos nacionais e populares. (RIBEIRO, 1978, P.11)

O discurso participante e comprometido seria a arma utilizada para enfrentar os interesses em choque que se interpunham na vida nacional, juntamente com a necessidade de teorizar sobre o Brasil para, então, “redimir o país de seus males de origem, e quem sabe protegê-lo de desgraças e descaminhos futuros”. (BOMENY, 2009, p.340-341)

De acordo com Bomeny (2009), na narrativa de Darcy Ribeiro, o antielitismo aparece como uma das marcas mais salientes de seu discurso sobre o Brasil e observa-se também “o empenho em explicar o país dos contrastes profundos com reflexos na forma de tratamento aqui conferido aos deserdados da ordem econômica e social e aos marcados pela cor da pele” (BOMENY, 2009, p.341).

Darcy Ribeiro (1995; 1978) demonstra em vários momentos de sua obra preocupação com a necessidade de uma teoria sobre o Brasil, dado que considerava inadequadas teorias concebidas em contextos diferentes do nosso. Assim sendo, afirma: “as alternativas que se ofereciam eram impotentes. Serviriam, talvez, como uma versão teórica do desempenho europeu, mas não explicavam a história dos povos orientais, nem o mundo árabe e muito menos a nós, latino-americano.” (RIBEIRO, 1995, p.13)

Ainda nesse sentido, no prefácio do livro O povo brasileiro, Darcy Ribeiro reflete sobre as razões e motivações que o levaram a escrevê-lo e revela que a questão que se propunha a responder seria: por que o Brasil ainda não deu certo?

Meu sentimento era de que nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em seus próprios termos, fundada em nossa experiência histórica. As teorizações oriundas de outros contextos eram todas elas eurocêntricas demais e, por isso mesmo, impotente para nos fazer inteligíveis. Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum. (RIBEIRO, 1995, p.13)

Darcy, então, se propõe a entender o Brasil e a gestação dos brasileiros como povo. Parte do que denomina enfoque das configurações, que consistiria em um método de análise comparativa dos processos de formação e transfiguração das etnias nacionais, e estabelece uma tipologia de distinções entre os americanos: os Povos-Testemunho; os Povos-Novos; os Povos-Transplantados, e os Povos–Emergentes.

O Brasil é classificado nesta tipologia entre os Povos-Novos – aqueles que são fruto da conjunção, desculturação e caldeamento de matrizes étnicas diversas como a indígena, a europeia e a africana. Nesse sentido, Darcy afirma:

Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. [...] Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização socioeconômica, fundada num tipo renovada de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. (RIBEIRO, 1995, p.17)

A confluência das variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, mas o que ocorreu teria sido justamente o contrário. Para Ribeiro (1995, p.19), o Brasil aparece como etnia nacional, como um povo-nação:

Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológico- regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas.

Essa unidade étnica, porém, não significa uniformização, pois atuaram sobre ela três forças diversificadoras: ecológica (surgimento de paisagens distintas onde condições do meio ambiente obrigaram a adaptações regionais); econômica (formas diferenciadas de produção) e imigração.

Assim, para Ribeiro (1995), a atuação destas forças teria permitido a distinção de diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, como sertanejos no Nordeste, cablocos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc.

Ribeiro (1995) ressalta em vários momentos da sua obra o caráter de unidade do brasileiro, o povo-nação, ao mesmo tempo em que aponta fortemente as particularidades regionais. Trata–se de uma unidade maior que não implica necessariamente em uniformidade. Assim, para ele, os cablocos, sertanejos, crioulos, caipiras e gaúchos seriam mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças oriundas de adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação.

A colonização / povoamento do Brasil deu-se a partir de uma matriz uniforme, uma protocélula étnica neobrasileira, que teria sido difundida em vários núcleos e iria modelar a vida cultural e social das ilhas-Brasil. “Cada uma delas singularizada pelo ajustamento às condições locais, tanto ecológicas quanto de tipos de produção, mas permanece sempre como

Além da constituição precoce da matriz básica da nossa cultura tradicional, a identidade étnica dos brasileiros também se deve a sua flexibilidade. Essa flexibilidade teria lhe permitido “como herdeira de uma sabedoria adaptativa milenar, ainda dos índios, conformar-se, com ajustamentos locais, a todas as variações ecológicas regionais e sobreviver

a todos os sucessivos ciclos produtivos, preservando sua unidade essencial” (RIBEIRO, 1995,

p.246).

Assim, com processos de adaptação e diferenciação atuando na protocélula étnica brasileira surgiram as principais variantes da cultura brasileira tradicional: (i) cultura crioula; (ii) cultura caipira; (iii) cultura sertaneja; (iv) cultura cabocla; e (v) cultura gaúcha.

Nesta tese, será privilegiada a cultura crioula, devido ao objetivo da mesma de abordar o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que dentro das regionalidades abordadas por Ribeiro (1995) estaria localizada na região influenciada pelos crioulos.

Cultura crioula

Ribeiro (1995) inicia a seção O Brasil Crioulo em seu livro O Povo brasileiro afirmando que o engenho açucareiro foi a primeira forma da grande empresa agroindustrial exportadora e a matriz do primeiro modo de ser dos brasileiros.

A área cultural crioula seria a configuração histórico-cultural resultante da implantação da economia açucareira na faixa litorânea do Nordeste brasileiro, do Rio Grande do Norte à Bahia. A cultura crioula foi plasmada no mundo do engenho. Assim,

A sociedade brasileira, em sua feição cultura crioula, nasce em torno do complexo formada pela economia do açúcar, com suas ramificações comerciais e financeiras e todos os complementos agrícolas e artesanais que possibilitavam sua operação. A massa humana organizada em função do açúcar se estrutura em uma formação econômico-social atípica com respeito às americanas e às européias de então. Muito mais singela, por um lado, por seu caráter de empresa colonial destinado a lograr propósitos econômico-mercantis claramente buscados. Nela, a forma de existência, a organização da família, a estrutura de poder não eram criações históricas oriundas de uma velha tradição, mas meras resultantes de opções exercidas para dar eficácia ao empreendimento. Mas, por outro lado, muito mais complexa, como população surgida da fusão racial de brancos, índios e negros, como cultura sincrética plasmada pela integração das matrizes mais díspares e como economia agroindustrial inserida no comércio mundial nascente. (RIBEIRO, 1995, p.251)

Nesse contexto de Brasil crioulo, o senhor de engenho tinha um poder hegemônico na ordenação da vida colonial devido ao êxito econômico do seu empreendimento que proporcionava à metrópole altas rendas e ocupação do território. O seu poder estendia-se a sociedade inteira inclusive ao clero e à administração do reino. Assim, “no seu domínio, o

senhor de engenho era o amo e o pai, de cuja vontade e benevolência dependiam todos, já que

nenhuma autoridade política ou religiosa existia que não fosse influenciada por ele” (RIBEIRO, 1995, p.258).

Ribeiro (1995), assim como Holanda (2011) também observa o poder do senhor do engenho transbordando para toda a sociedade e transportando assim sua estrutura hierárquica para todas as esferas da sociedade. Nesse sentido, Ribeiro (1995, p.265) afirma:

Cada comerciante, cada padre e cada oficial da Coroa tinham como ideal supremo chegar, um dia, a fazer-se também senhores de engenho; e enquanto não o alcançassem, honrá-los com o seu apoio, sua admiração e respeito, como aos donos da vida. Essa subserviência eleva o senhor de engenho à categoria de setor predominante da classe dominante cuja hegemonia se projetava sobre a sociedade inteira, submetendo todos à estrutura hierárquica do engenho e a englobando, num sistema coeso e unificado.

É possível enxergar na dualidade de perspectivas adotadas por Darcy Ribeiro semelhanças com as perspectivas de integração – quando o brasileiro é visto na unidade do povo-nação – e com a perspectiva da diferenciação – quando são apontadas as diferenças regionais das ilhas-Brasil.

Este é um ponto interessante da obra de Darcy Ribeiro, pois a maior parte dos autores do pensamento social brasileiro aborda a cultura brasileira apenas do ponto de vista de sua unidade. Os aspectos destoantes, contraditórios não costumam ser mencionados. Esta é justamente uma das críticas que a utilização destes autores recebe. Darcy, por sua vez, ao desenvolver essa dualidade – cultura como unidade e regionalidades- desenvolve também uma perspectiva de análise alinhada com as abordagens propostas por Martin (1992) e

Alvesson (1995) que consideram tratar a cultura com “lentes” da perspectiva da integração, da

diferenciação e da fragmentação.