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2.3 Cultura brasileira: a formação do Brasil, aspectos e traços na voz de seus intérpretes

2.3.2 O Pensamento Político de Raimundo Faoro

Raymundo Faoro nasceu em Vacaria no ano de 1925 e foi historiador, jurista e integrante da Academia Brasileira de Letras. Faoro pode ser classificado entre os pensadores que interpretam a história sob seus aspectos estruturais, atribuindo papel explicativo a superestrutura representada pelo Estado. A visão de Faoro contrariava a visão marxista dominante na época, que atribuía este papel explicativo a infraestrutura, representada pela sociedade civil (COMPARATO, 2003; VIANNA, 2009).

"Efeitos inevitáveis, decorrentes do isolamento geográfico, da extensão da costa, capazes de gerar núcleos de autoridade social, sem que a administração real permitisse a consolidação da autonomia política. Tudo está longe do feudalismo, da aristocracia territorial, dos monarcas latifundiários. Olhos vigilantes, desconfiados cuidavam para que o mundo americano não esquecesse o cordão umbilical, que lhe transmitia a força de trabalho e lhe absorvia a riqueza. O rei estava atento ao seu negócio" (Faoro, 1975, p.133).

Faoro questionava, assim, a visão marxista de um passado feudal ainda não superado com a criação de uma burguesia nacional moderna que reduziria o papel do Estado a mero executor dos interesses das classes dominantes. Ao invés disso, Faoro afirmava que, na verdade, o poder político era exercido em causa própria pelo grupo que dominava a máquina política e administrativa e derivava deste domínio seu poder, prestígio e riqueza (SCHWARTZMAN, 2003).

Era, em termos de Weber, um “estamento burocrático”, que tinha se originado na formação do Estado português dos tempos dos descobrimentos, senão antes, e que se reencarnaria depois naquilo que ele chamaria de o “patronato político brasileiro”. O estamento burocrático tinha tido sua origem no que Weber denominava de “patrimonialismo”, uma forma de dominação política tradicional típica de sistemas centralizados que, na ausência de um contrapeso de descentralização política, evoluiria para formas modernas de patrimonialismo burocrático-autoritário, em contraposição às formas de dominação racional-legal que predominaram nos países capitalistas da Europa Ocidental (SCHWARTZMAN, 2003, p.210).

De acordo com Comparato (2003), o conceito-chave de estamento foi emprestado de Weber por Faoro. Para Weber, a situação estamental seria uma situação de consideração social da qual gozam certos grupos de pessoas em situação de senhorio político tradicional e uma das modalidades desta situação seria justamente a estamental-patrimonial, em que o poder político é utilizado pelo estamento dominante.

Para Raimundo Faoro, a sociedade brasileira – tal como a portuguesa, de resto – foi tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista, formado, primeiro, pelos altos funcionários da Coroa, e depois pelo grupo funcional que sempre cercou o Chefe de Estado, no período republicano. (COMPARATO, 2003, p. 332)

Nesta abordagem, o Brasil pode ser entendido como uma nação que foi criada pelo Estado. Pois, a existência política do Brasil começou com a chegada do Governador-Geral Tomé de Souza em 1549, num momento em que não podia se considerar que existisse povo.

Neste contexto, o poder no Brasil foi dividido entre a classe dominante e a elite funcional governante, esquema este que permaneceu inalterado mesmo durante a República. Assim sendo, a política nacional-popular nasceu aberta à influência das elites tradicionais e da burocracia estatal e não possibilitou a diferenciação das classes e do povo, os setores

subalternos, como um “corpo comunitário com vida própria” (VIANNA, 2009).

Então, segundo Faoro, para a ideologia nacionalista seria impossível realizar suas promessas de emancipação, pois esta não estava orientada para romper a velha forma de Estado e tenderia a favorecer um rearranjo do poder estamental.

No ensaio Existe um Pensamento Político Brasileiro? Faoro mantém sua diretriz de análise sobre a reflexão da realidade sociopolítica brasileira no caráter dualista de nossa mentalidade, identificando as origens do atraso brasileiro e nossas ambiguidades e dicotomias na peculiaridade de formação do Estado brasileiro, como um legado do passado lusitano. Estes elementos já haviam sido previamente identificados pelo autor na sua consagrada obra anterior Os donos do Poder (1958).

Neste ensaio, então, Faoro (2007) destaca a existência de um liberalismo de fachada no período do Império. Liberalismo este que convivia com a escravidão, vinculava-se com os interesses do latifúndio e, ao mesmo tempo em que defendia as liberdades individuais, aceitava sem grandes constrangimentos o poder moderador (COMPARATO, 2003).

Para responder a pergunta do título do ensaio (Existe um pensamento político brasileiro?), Faoro (2007), reflete sobre a afirmativa de que “se há um pensamento político brasileiro, há um quadro cultural autônomo, moldado sobre uma realidade social capaz de gerá-lo ou de com ele se soldar” (FAORO, 2007, p.29).

Faoro (2007) começa a esboçar a resposta a esta pergunta afirmando que o

pensamento político na sua origem é o pensamento português. Além disso, “o mundo colonial

deveria ser, pelas normas absolutistas vigentes, uma cópia do mundo português” (FAORO, 2007, p.55).

Portugal, por sua vez, constituiu sua nacionalidade sobre o paradoxo de uma

revolução irrealizada. “Da debilidade do Renascimento lhe adveio a debilidade da estrutura cultural, sem o vigor das nações ascendentes da Europa” (FAORO, 2007, p.46). Este seria o

início do isolamento português. Assim, enquanto a Europa assistia o avanço do Renascimento, que privilegiava a ideia da nacionalidade e lançava o contorno da ideia de liberdade, a empresa marítima portuguesa exigia um rei forte. As teorias de soberania popular e a tendência de secularização da política, que ganhavam força na Europa, contrariavam os interesses do reino português, que com o Tratado de Tordesilhas tomava posse de metade do mundo.

Faoro (2007) descreve o Renascimento em Portugal como fraco e cujo ímpeto reformador e revolucionário foi rapidamente esgotado. O “reino cadaveroso” não emancipou seu pensamento da Idade Média. O princípio de soberania popular não vingou e a crença na origem divina do poder, que implicava numa incondicional obediência ao príncipe, retardaria,

em relação ao resto da Europa, a aceitação dos direitos do homem. Portugal apostou, assim, “todos os trunfos (...) na carta aleatória do comércio de trânsito” e desde meados do século XVI, “o povo, abandonando os campos e sem emprego, aglomerou-se em torno de mosteiros para viver de caridade. O Estado, promotor de favores e de riquezas, foi entregue, junto com a

Igreja, às classes altas, à numerosa e empobrecida fidalguia.” (FAORO, 2007, p. 52)

Este Estado patrimonialista foi transplantado para o Brasil como herança portuguesa transmitida pela colonização. O Liberalismo permaneceu “como uma herança anacrônica nos trópicos, de modo a se configurar em tensões e contradições entre a liberdade e a escravidão, a democracia e a monarquia, o comércio e a política” (ROIZ, 2010, p.300). O liberalismo brasileiro não conseguiu alterar a estrutura do Estado e instituiu um Estado protetor de direitos, dado não tratar-se de um liberalismo como consciência do possível e sim, de liberalismo como tática absolutista. Então, na verdade, as elites utilizaram o discurso do liberalismo para seus próprios fins, incluindo as massas nas reformas políticas e econômicas e excluindo as opções democráticas.

Desse modo, segundo Faoro (2007), a peculiaridade do pensamento político brasileiro foi tentar agregar o liberalismo sem ser adequadamente liberal e manter uma estrutura hierárquica desfavorável a alternativas democráticas. Pois, se o Estado fosse realmente liberal,

O Estado seria outro, não o monstro patrimonial-estamental-autoritário que está vivo na realidade brasileira. Da incongruência da dinâmica do pensamento político, resultou que todas as fases suprimidas se recompõem como substitutos em uma realidade absolutista, ainda que reformista, neopombalina em um momento, industrializada em outro, nunca com os olhos voltados ao povo brasileiro, primeiro no respeito aos seus direitos, depois às suas reivindicações sociais. (FAORO, 2007, p. 114)

Assim, a ausência de um liberalismo autêntico estagnou o movimento político e não permitiu a emancipação de uma classe da indústria nacional. O território democrático e participativo não foi desenvolvido, nem os direitos e garantias liberais o foram, e, a democracia não pode atingir o status de um valor permanente, ao invés, de meramente instrumental.

A incompletude que deu origem ao Brasil persiste no confronto das teses de modernização e modernidade. Faoro contrapõe as duas teses afirmando que o que se instaurou no Brasil foi a modernização, justamente o caminho que não levaria a profundas mudanças na estrutura do poder.

A modernidade compromete, no seu processo, toda a sociedade, ampliando o raio de expansão de todas as classes, revitalizando e removendo seus papéis sociais, enquanto a modernização, pelo seu toque voluntário, se não voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes. (...) Na modernidade, a elite, o estamento, as classes – dizemos para simplificar, as classes dirigentes – coordenam e organizam um movimento. Não o dirigem, conduzem ou promovem como na modernização (FAORO, 2007, p.125).

A modernidade feita de cima e sem o envolvimento de toda a sociedade não alterará a estrutura social, nem seus valores dominantes. Os atores do estamento podem se alterar, mas o fundamental para Faoro é que a natureza das relações estamentais não é alterada.

O pensamento de Raymundo Faoro recebeu inúmeras críticas, questionou-se desde sua infidelidade ao embasamento weberiano do conceito de patrimonialismo, até se seria possível atribuir caráter estamental a sociedade brasileira.

Uma das críticas feitas à obra de Raimundo Faoro é o caráter a-histórico de suas ideias. Pois, apesar de identificar as raízes históricas do conceito de estamento, Faoro não considera a possibilidade de mudanças ou evolução neste conceito. Assim, para Faoro (1975, p.733) "De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político- social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessa do oceano largo”.

Para Faoro, a estrutura patrimonial-estamental configura-se num padrão de relações políticas de longa duração, que se perpetuam na história do Brasil até os dias de hoje. Desse modo,

o patrimonialismo não se mede apenas pela extensão. Tem a profundidade coincidente com a história brasileira, nesta incluída sua origem ibérica. Ela vai desde a monarquia patrimonial, que encontra na dinastia de Avis (séc. XIV) sua vocação marítima, até os planos financeiros das décadas de 80 e 90 deste século. (FAORO, 2007, p.17)

Outra importante crítica à interpretação de Faoro encontra-se na corrente que discorda do iberismo para explicar as peculiaridades da formação do Brasil e do Estado brasileiro. Jesse Souza (2000) em sua obra A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro critica a concepção de influência do iberismo que atribui principalmente a autores como Raimundo Faoro, Sergio Buarque de Holanda e Roberto Da Matta e argumenta que estes autores poderiam ser enquadrados numa categoria de culturalismo atávico, pois ao

“desvincularem cultura e dinâmica institucional, eles não conseguiram oferecer uma

explicação plausível sobre como certos traços culturais lograram se tornar valores e normas

Independente das críticas recebidas, a importância de Raymundo Faoro para o pensamento social brasileiro é significativa. Pois, Faoro representa o pioneirismo de uma postura crítica, que denuncia as diferenças e peculiaridades das instituições no Brasil, o que, por sua vez, abre caminho para uma postura crítica em relação à importação de teorias formuladas com bases em contextos tão diversos do nosso. Além disso, Faoro juntamente com Sergio Buarque de Holanda também foi responsável por introduzir no Brasil uma análise político–sociológica de caráter weberiano.

Outro mérito da obra de Raymundo Faoro reside em tratar a questão ética da relação entre dominados e dominadores subjacente à análise da ação política. Faoro estaria orientado assim, para além de uma visão pessimista por uma preocupação ética com o alcance de direitos humanos universais ainda não atingidos nesta parte da América.

O olhar que Faoro lança sobre o comportamento e mentalidade dos ocupantes do poder no Brasil focaliza-os especialmente sob o viés das relações entre ética e política em um país onde culturalmente a violência encontra-se diluída em séculos de dominação, seja nos momentos de populismo, da ditadura militar ou da formal democracia. Essa será, sem dúvida, a principal e resistente denúncia de Faoro e será sob esse tema maior que o liberalismo e a democracia assumem destaque em suas análises (MENDONÇA, 1999, p.94). Faoro poderia ser considerado, então, um autêntico educador político na concepção

de Ricoeur (2007), entendido como um intelectual que “busca exercer uma ação eficaz de

educação e crítica política pelo pensamento, pela palavra ou pela escrita, intervindo nas

transformações de seu tempo” (MENDONÇA, 1999, p. 93).