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TEMA / ASSUNTO

2.6 O Ambiente Público e a Crise e Reforma do Estado Brasileiro

2.6.2 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Reforma do Judiciário Brasileiro

O processo de mudança organizacional iniciado nas organizações públicas com a Reforma do Estado tinha como objetivo transformar o modelo tradicional de administração burocrática de todo o Estado brasileiro. Porém, a reforma do Estado iniciada com a criação do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE) em 1995 ficou restrita ao poder executivo. Apesar disso, a reforma judiciária foi objeto de intenso debate por quase uma década, não só em função dos aspectos materiais do seu funcionamento, mas também devido ao seu papel político realçado pela Constituição de 1988.

Sadek e Arantes (2001) afirmam que, no contexto dos anos 90, com a agenda política brasileira marcada por propostas de reforma constitucional e infraconstitucional que modificaram as relações do Estado com a economia e a sociedade era previsível a inclusão da questão judiciária na pauta de discussões. Pois, enquanto o Estado brasileiro passava por um processo de Reforma institucional, o Brasil também passava por um processo de redemocratização. A Constituição de 1988 ampliou o papel político do Poder Judiciário. De acordo com Sadek (2004, p.81),

A Constituição de 1988 (...) redefiniu profundamente o papel do Judiciário no que diz respeito à sua posição e à sua identidade na organização tripartite de poderes e, consequentemente, ampliou o seu papel político. Sua margem de atuação foi ainda alargada com a extensa constitucionalização de direitos e liberdades individuais e coletivos, em uma medida que não guarda proporção com os textos legais anteriores. Dessa forma, a Constituição de 1988 pode ser vista como um ponto de inflexão, representando uma mudança substancial no perfil do Poder Judiciário, alçando-o para o centro da vida pública e conferindo-lhe um papel de protagonista de primeira grandeza.

Essa mudança de papel do Judiciário também é observada por Vianna et al (1997, p.332) que destaca que a fórmula do constitucionalismo democrático da constituição de 1988, “implica delegar ao Judiciário a função de guardião, em última instância, dos direitos fundamentais e sociais: além de declarar o direito, esse Poder, ao menos de modo latente, se vê envolvido com a realização da justiça”.

Além desta ampliação do protagonismo político, também se pode observar, a partir da década de 1990, um aumento da demanda sobre o Poder Judiciário. Esse aumento da procura por serviços judiciais, segundo Nogueira (2011, p.4), “ao ter que ser tratado pelas estruturas organizacionais então vigentes, passa a colaborar com a crise institucional e de gestão na qual ingressa o Poder Judiciário nos anos seguintes à promulgação da CF 1988”.

como número excessivo de recursos previstos em lei, excesso de formalismo cartorial, abundância de leis e de causas estruturais como difícil acesso ao Judiciário por setores da população, número insuficiente de magistrados e servidores, baixo índice de informatização dos cartórios e varas judiciais. Além disso, a crise do Judiciário estaria relacionada a aspectos de gestão como falta de planejamento, deficiências no controle administrativo e falta de integração com outras instituições que integram o Sistema de Justiça (NOGUEIRA, 2011; VIEIRA; PINHEIRO, 2008; RENAULT, 2005). Para Renault (2005), a necessidade de reforma seria justificada ainda por problemas como a morosidade da justiça, a obsolescência, a ineficiência e a pouca transparência da máquina pública.

Assim, no início da década de 1990 começa a tramitar no Congresso Nacional uma proposta de Emenda Constitucional com o objetivo de implementar a Reforma do Judiciário. E, após 13 anos de tramitação, é aprovada em dezembro de 2004 a Emenda constitucional nº 45. As mudanças implementadas a partir da Emenda Constitucional nº45 representaram um choque de gestão no Judiciário e promoveram mudanças nos procedimentos judiciais e na própria estrutura do poder, além de proporcionar mecanismos administrativos que buscavam maior eficiência e celeridade processual, assegurar autonomia e independência dos magistrados e ampliar o acesso da população à justiça (SENA, 2012). Entre as principais determinações dessa emenda destacava-se a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O CNJ foi instalado em junho de 2005 como um órgão de formação heterogênea, composto por 15 membros (nove magistrados, dois membros do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada) com mandatos de dois anos. O CNJ foi criado com as competências de controlar as atividades administrativas e financeiras dos tribunais e fiscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados e servidores da Justiça. Além do papel de fiscalização, o CNJ teria a missão de “contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade” e a visão de “ser um instrumento efetivo de desenvolvimento do Poder Judiciário”.

Entre as diretrizes do CNJ, destacam-se: (1) planejamento estratégico, controle e proposição de políticas judiciárias; (2) modernização tecnológica do Judiciário; (3) ampliação do acesso à justiça, pacificação e responsabilidade social; e (4) garantia de efetivo respeito às liberdades públicas e execuções penais. Com o objetivo de implantar essas diretrizes, a partir de 2009, o CNJ estabelece metas anuais para os tribunais brasileiros, com definição de

indicadores de eficiência, produtividade e qualidade como forma de tornar o serviço público de justiça mais efetivo (SENA, 2012).

De acordo com Nalini (2006), o CNJ passou a servir como local institucional das aspirações sociais de um Judiciário mais célere e transparente e sua criação seria um impulso na direção de práticas administrativas mais modernas e eficientes. Já que até a criação deste órgão, o Poder Judiciário não tinha um espaço de reflexão para pensar sobre o futuro e sobre sua insuficiência no atendimento à demanda da população.

A criação do CNJ foi apontada pelo governo como uma condição fundamental para que o Poder Judiciário pudesse tornar-se mais transparente e ser submetido a algum nível de controle da sociedade (RENAULT, 2005). A questão da transparência teve destaque no contexto da reforma do Judiciário devido a aspectos da própria conjuntura histórica brasileira, que guardaria resquícios de patrimonialismo, clientelismo e corrupção (SENA, 2012).

É interessante observar que a criação do CNJ enfrentou forte resistência de alguns setores do Poder Judiciário, na medida em que representaria um controle externo. A própria Associação Nacional dos Magistrados tentou impedir sua criação alegando inconstitucionalidade com o argumento de que a criação de um órgão externo de controle afetaria o equilíbrio e a independência dos Poderes de Estado.

Em relação à resistência à criação do CNJ, Sadek destacou (2001, p.91) que

Dentre os temas em discussão na reforma do Judiciário, poucos têm provocado tanta paixão e celeuma quanto à criação de um órgão de controle externo deste poder e, na eventualidade de sua aprovação, sua composição. Este mecanismo é visto e defendido por alguns como um remédio capaz de extinguir, de uma só vez, vários males, da morosidade da justiça até comportamentos pouco idôneos, passando por um uso mais racional de recursos e garantia da autonomia política da magistratura. Por outro lado, tem encontrado adversários ferrenhos, sendo considerado impróprio e até mesmo capaz de ferir um princípio constitucional básico: a independência entre os Poderes de Estado.

A resistência de setores do judiciário pode ser atribuída, entre outros fatores, ao próprio status profissional e valorização do magistrado que tem a garantia de autonomia e independência, o que não necessariamente está de acordo com a previsibilidade, padronização e a necessidade do cumprimento de metas representado pelo choque de gestão pretendida pela Reforma do Judiciário.

Segundo depoimento de Bonelli no livro O Judiciário em debate organizado por Sadek (1995, p.36),

A valorização social da profissão de juiz e de desembargador é muito elevada. Os magistrados estão no topo da hierarquia ocupacional. Eles pensam sobre si mesmos como quem tem nas mãos a responsabilidade de decidir sobre a vida de outras pessoas. Nesse ponto se assemelham aos médicos, que também veem a si mesmos como tendo nas mãos a responsabilidade de decidir sobre a vida de seus clientes. Eles também angariam respeitabilidade e status social através da articulação do monopólio de um conhecimento científico, com uma imagem pública de cunho altruísta. Essa construção reforça ainda mais a deferência social em relação à magistratura e inflaciona a aceitação externa quanto ao grau de elitização da carreira.

A configuração do Poder Judiciário sugere semelhanças com uma configuração organizacional de burocracia profissional (LIMA; CRUZ, 2011; NOGUEIRA, 2010; VIEIRA; PINHEIRO, 2008). De acordo com Mintzberg (1995), o termo burocracia profissional é utilizado para conceituar estruturas em que o núcleo operacional é muito importante, as atividades são coordenadas mediante a padronização das habilidades de seus membros e o poder decisório encontra-se descentralizado.

Numa estrutura organizacional de burocracia profissional, o núcleo operacional é formado pelos membros que executam o trabalho essencial para a organização - os operadores. Estes operadores são especialistas treinados, que possuem autonomia e controle sobre seu trabalho, sendo que seu poder deriva “do fato de que seu trabalho não só é muito complexo para ser supervisionado por gerentes ou padronizado por analistas, como também porque seus serviços são, caracteristicamente, de grande procura” (MINTZBERG, 1995, p.196). Estas estruturas seriam encontradas nos hospitais, onde os médicos seriam os operadores, nas escolas, onde os professores seriam os operadores e nos Tribunais, onde os juízes seriam operadores.

No caso do Poder Judiciário, os juízes, que possuem capacidade técnica e autonomia no exercício das suas funções de aplicação da jurisdição e na supervisão de atos de gestão, representam “os operadores profissionais”. Os demais servidores da justiça (escrivão, subescrivão, escrevente, oficial de justiça, assessores e estagiários) compõem as assessorias de apoio, formadas pelos cartórios judiciais que dão suporte à atividade exercida pelo magistrado (VIEIRA; PINHEIRO, 2008). Cria-se, assim, uma grande estrutura de apoio ao operador que centraliza todo o poder e exige que o magistrado exerça também as funções de administrador.

Entretanto, conforme aponta Nogueira (2010), as características de imparcialidade e falta de previsibilidade desejáveis aos magistrados na sua função jurisdicional, representam um problema nas práticas de gestão interna. O magistrado ao transpor sua conduta judicial

para o campo administrativo evitaria a previsibilidade e o planejamento, elementos necessários à atividade administrativa. Os magistrados, também, tomam constantemente decisões sozinhos o que levaria a um estilo de gestão muito hierarquizada em que a maioria dos assuntos gerenciais é centralmente dirigida por eles. Além disso, a formação do magistrado o levaria a ver problemas legais onde existem problemas gerenciais e a aplicar soluções legais autoritárias onde seriam necessárias soluções gerenciais (LIMA; CRUZ, 2011; NOGUEIRA, 2010).

Outro ponto que merece destaque é que a própria cultura deste Poder privilegia os aspectos externos relacionados ao papel político do judiciário e trata a gestão como um aspecto interno que recebe menos atenção dos magistrados. Os juízes definem a jurisdição

como sua atividade “fim”, embora reconheçam que, também, desempenham uma atividade “meio” que consiste na administração do seu local de trabalho.

É o que os próprios juízes definem como sua atividade “fim”: a jurisdição. Reconhecem eles mesmos que desempenham também uma atividade “meio”, que é a administração de seu local de trabalho. É unânime entre eles o reconhecimento de pertencerem a uma sociedade organizada por um denso esquema de solidariedade, porquanto denunciam sua dificuldade para com as atividades “meio”. Contabilidade, administração, informática, são atividades que reconhecem como estranhas ao seu treinamento e processo de recrutamento. Também atestam que tudo em sua atividade “meio” que puder ser suprimido, otimizado ou mesmo automatizado é bem vindo porque lhes reserva mais tempo para a atividade que se julgam capazes de fazer com perícia (FONTAINHA, 2006, p. 36).

Neste contexto, o processo de reforma do Judiciário, ao mesmo tempo em que está alinhado com os princípios gerencialistas de eficiência e accontability da Nova Gestão Pública, está ocorrendo numa instituição com peculiaridades, onde aspectos relacionados à gestão, entendida como área meio, historicamente ficaram relegados a um segundo plano. Além disso, conforme apontou Bergue (2007) em relação à reforma administrativa, na reforma do Judiciário, também, observam-se estruturas que convivem com padrões patrimonialistas serem fortemente compelidas a orientarem-se para um comportamento de gestão focado no alcance de resultados. Assim, “se por um lado o Poder Público prega a adoção de práticas do gerencialismo na administração pública, por outro lado, o Poder Judiciário apresenta uma configuração organizacional desfavorável a elas” (LIMA; CRUZ, 2011).

Desse modo, o processo de reforma pelo qual está passando o Poder Judiciário propõe-se a realizar um choque de gestão, de inspiração gerencialista (SENNA, 2012), na medida em que busca implantar instrumentos utilizados na administração de organizações

privadas como planejamento estratégico, indicadores de eficiência, responsabilização pelos resultados, controle etc. Porém, este processo de reforma está transcorrendo numa estrutura de burocracia profissional, na qual os magistrados, operadores especialistas, historicamente, têm operado no topo de uma rígida hierarquia de poder centralizado e onde a gestão, como área meio, não recebeu muita atenção.