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2.3 Cultura brasileira: a formação do Brasil, aspectos e traços na voz de seus intérpretes

2.3.4. Celso Furtado e o longo amanhecer

Celso Furtado nasceu na Paraíba em 1920 e possui uma extensa bibliografia formada por trinta livros e mais de uma centena de artigos (BIELSCHOWSKY, 2004). Segundo Bielschowsky (2004), é o cientista social brasileiro mais lido no Brasil e no exterior, além de ser considerado um militante da causa desenvolvimentista, por ter sido um desbravador do conhecimento sobre a realidade latino-americana e também devido a sua capacidade analítica, ousadia e entusiasmo.

A obra de Celso Furtado costuma ser mais lembrada por suas contribuições à teoria econômica com suas formulações sobre subdesenvolvimento e suas propostas de estratégias para superá-lo. No campo da administração, as menções feitas a este autor estão concentradas em trabalhos, normalmente da área de administração pública, que abordam a questão do desenvolvimento e planejamento estatal. Furtado não é um autor que costume aparecer nos referenciais teóricos de trabalhos de estudos organizacionais ou nos estudos sobre cultura nas organizações. Isto talvez se deva a sua abordagem estar focada em aspectos macroestruturais, enquanto que os estudos organizacionais preocupam-se preferencialmente com aspectos micro, como relações e dinâmicas no interior das organizações.

A opção por abordar Celso Furtado neste trabalho, ao invés de outros autores do pensamento social classificados como materialistas que também partiram suas análises de questões estruturais e condições objetivas históricas, deve-se as ideias e posicionamentos deste autor. Furtado tentava explicar as causas do subdesenvolvimento brasileiro através da análise da história do país considerando o modelo centro-periferia, onde o Brasil ocuparia uma posição de periferia em relação ao centro, que seria formado por países europeus e pelos Estados Unidos. Este pensamento comum na CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe) apontava o subdesenvolvimento não como um estágio necessário e anterior ao desenvolvimento, e sim, como uma posição desfavorável e necessária no jogo de poder da economia mundial para que os países desenvolvidos mantivessem sua condição hegemônica (BIELSCHOWSKY, 1989).

Estas posições de Furtado estão muito alinhadas ao que se observa atualmente no pensamento pós-colonial, que conforme já mencionado anteriormente, teve um papel inspirador e motivador para esta tese.

Entre a vasta obra de Celso Furtado, privilegiou-se seu livro O Longo Amanhecer (1999) por sua tentativa de aproximação com o tema da cultura. O próprio autor afirma no prefácio deste livro que o ponto comum entre os ensaios que o compõem é “a tentativa de captar a especificidade do perfil cultural brasileiro” (FURTADO, 1999, p.10).

Ainda em outro ensaio Mensagem aos Jovens Economistas do mesmo livro revela que “pensar o Brasil foi o desafio que sempre guiou minha reflexão. Muito cedo, ainda na adolescência, vieram-me ao espírito questões como: por que certas regiões brasileiras parecem condenadas à miséria em um país com tanta riqueza potencial?” (FURTADO, 1999,

p.69).

Desse modo, Furtado, assim como Darcy Ribeiro, foi um intelectual envolvido com a construção do Brasil e a transformação social e estava preocupado em buscar alternativas para superar o quadro de dominação dos países centrais sobre o Brasil e a América Latina. Esta preocupação aparece de forma clara nos seus textos e Furtado, em vários momentos, explicita seu desejo de contribuir para este processo com suas análises:

Não resta dúvida de que o ciclo histórico que se abre será marcado pela emergência de uma nova concepção da política. O formato que assumirá o Estado nacional em países de grandes dimensões territoriais e demográficas como o Brasil ainda está por definir-se. O objetivo destes textos é ajudar a nova geração a tomar consciência da responsabilidade que lhe cabe para dar continuidade à construção do Brasil preservando os valores fundamentais de nossa cultura. (FURTADO, 1999, p.10)

No livro O Longo Amanhecer (1999), Furtado inicia suas análises abordando o processo de globalização. Para Furtado (1999), existe consenso de que as atividades econômicas se articulam crescentemente em escala planetária e essa busca da economia capitalista por frente externa de expansão estaria longe de ser novidade. Nesse sentido, afirma ainda “o que é realmente novo é a montagem de um sistema produtivo transnacional e global cujo dinamismo se traduz em novo desenho na alocação geográfica dos recursos e em forte concentração social da renda”.

Este processo de globalização teria sofrido importante mutação na segunda metade do século XX com a emergência das empresas transnacionais como principais agentes organizadores das atividades produtivas. Com isso, “a racionalidade econômica, que antes se definia no espaço nacional, passou a refletir parâmetros que independem de um quadro político definido.” (FURTADO, 1999, p.86). Assim, os parâmetros de racionalidade, passam a ser estabelecidos pelos interesses das grandes empresas que em muitos casos atropelariam o interesse nacional.

Este modelo de desenvolvimento capitaneado pelas empresas transnacionais não parece ser o mais adequado para países como o Brasil, pois o tipo de racionalidade econômica que prevalece é a alocação de recursos de acordo com a disponibilidade dos conglomerados transnacionais, deixando escapar a percepção dos valores que cimentam as nacionalidades.

Nesse sentido, Furtado afirma ainda que “a experiência nos ensina que o modelo de

desenvolvimento deve ser concebido a partir das peculiaridades de cada país, tendo em conta

desenvolvimento para economias latino-americanas que tem prevalecido é o guiado pelas necessidades dos conglomerados transnacionais que estão pautados por critérios racionais, racionalidade formal e valores substantivos de sociedades heterogêneas são desconsiderados.

As mudanças observadas na situação do Brasil seriam um exemplo dos efeitos desta lógica. Pois, o Brasil, nesta lógica, deixou de ser o país do Terceiro Mundo que havia construído o mais complexo sistema industrial e passou para uma situação, num momento pós-crise dos anos 70, de redução da eficiência de investimentos financiados com poupança própria, aumento do endividamento externo, crescimento do desemprego e quedas nas taxas de crescimento. Furtado (1999, p.20) sintetiza argumentando que “a transição para a globalização faz-se a um preço considerável. É natural, portanto, que se indague como justificar esse sacrifício e a quem ele beneficia”. Afirma ainda que “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser” (FURTADO, 1999, p.26).

Furtado comenta também a revisão ou redefinição do papel e da importância atribuída ao Estado, que seria o agente capaz de ordenar a hierarquização dos valores substantivos. “Hoje passou a dominar a ideia de que o Estado é um trambolho. Mas, sem o Estado, o que fica? O mercado. E qual é a lei do mercado? É a lei do mais forte, a dos mais poderosos, a do grande capital” (FURTADO, 1999, p.89). Ainda nesse sentido, Furtado (1999, p.53) afirma: “Somente a vontade política pode evitar que a difusão da racionalidade econômica venha transformar um tecido social diversificado num amálgama de consumidores passivos”.

Em relação aos aspectos culturais de nossa formação, no livro O Longo Amanhecer, Furtado (1999) dedica o ensaio Formação Cultural do Brasil ao exame destes aspectos. A cultura brasileira seria um dos múltiplos frutos do processo de expansão geográfica da civilização europeia no início da era moderna.

A expansão portuguesa e o posterior processo de colonização foram, assim, um projeto português possibilitado pela aliança entre a monarquia portuguesa e a burguesia de Lisboa, sendo que esta associação do poder político com o espírito de empresa burguês serviu de modelo para o posterior surgimento das companhias de comércio e navegação como instituições de direito privado exercendo funções públicas. Para Furtado (1999, p.59), “essa articulação do Estado com grupos mercantis estará presente na ocupação, na defesa e na

exploração das terras americanas que constituirão o Brasil”.

Segundo Furtado (1999) ainda, a peculiaridade do nosso processo de formação impediu que aqui se formasse uma burguesia mercantil autônoma à semelhança do que ocorreu em outros países da América Latina. Pois,

os interesses mercantis que comandavam todo o processo econômico estão controlados por agentes metropolitanos, o que impediu a emergência no país de uma classe comerciante com consciência de seus interesses específicos e com participação significativa no sistema de poder. (FURTADO, 1999, p.61)

Desse modo, na ausência de uma classe mercantil poderosa, tudo passa a depender da Coroa e da Igreja e o processo de criação cultural seria balizado por essas duas instituições. Isso explicaria em parte porque o Brasil não teria acompanhado as transformações culturais pelas quais a Europa passava. Nesse sentido, Furtado (1999, p.62) afirma que: “O quadro histórico em que se forma o Brasil – articulação precoce do Estado com a classe mercantil e total domínio da sociedade colonial pelo Estado e pela Igreja – congela o processo cultural em estágio correspondente à Europa pré-humanismo”.

Outro ponto ressaltado por Furtado (1999), que ajudaria a captar a gênese do ser cultural brasileiro, refere-se ao fato dos portugueses, durante a colonização do Brasil, não terem sido apenas os dominadores, mas também o único segmento da população que manteve contato com suas matrizes culturais e dela se realimentado. Já, que os índios e os africanos teriam sido isolados de suas matrizes culturais e progressivamente foram perdendo a identidade cultural. O estilo cultural gestado no Brasil, então, seria português em seus temas dominantes e incorporaria motivos locais e uma gama de valores dos povos dominados.

A posição de Furtado (1999) neste aspecto difere da defendida por Darcy Ribeiro (1995), pois enquanto que para o primeiro o Brasil teria sido gestado sobre uma matriz lusitana, para o último a base seria uma protocélula de etnia nacional, onde haveria uma mescla de três etnias e que seria fortemente mestiçada e diferenciada de suas matrizes formadoras.

Um ponto que estes dois autores têm em comum é a percepção de distanciamento entre povo e elite. Uma das marcas do discurso de Darcy Ribeiro (1995; 1978) seria o antielitismo e a visão do Brasil como um país de contrastes. Furtado (1999), por sua vez, acrescenta a este distanciamento entre povo e elite, a percepção por parte das elites de aspectos relacionados a povo como não-europeus e por isso vistos de forma negativa, como

atrasados. Assim,

O distanciamento entre elite e povo será o traço marcante do quadro cultural que emergirá como forma de progresso entre nós. As elites, como que hipnotizadas, voltam-se para os centros da cultura europeia. O povo era reduzido a uma referência negativa, símbolo do atraso, atribuindo-se significado nulo à sua herança cultural não-europeia e negando-se valia à sua criatividade artística. (FURTADO, 1999, p.64)

Os valores da cultura popular eram, então, desprezados pelas elites e teriam prosseguido com autonomia no seu caldeamento. Desse modo, a diferenciação regional do Brasil se deveria a autonomia criativa da cultura de raízes populares.

A obra de Furtado (1999) está impregnada da tentativa de oferecer uma explicação alternativa à ortodoxia proposta pelos teóricos dos países centrais sobre a situação de subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina, buscando revelar as sutilezas dos jogos de poder da geopolítica internacional. Demonstra a necessidade de dar voz à margem, aos periféricos, na medida em que o tipo de problemática que abordou dificilmente surgiria na academia dos países centrais, não só por se tratar de interesse específico da periferia, mas também por contrariar os interesses do centro.

É importante destacar a atualidade das ideias de Celso Furtado (1999) que vislumbrou muito antes de outros autores, uma posição subalterna do Braisl num processo de globalização crescente. E, neste contexto, de “enredamento” no todo, do Brasil como inserido no mundo, reafirmou a necessidade do conhecimento cultural, a necessidade de se entender as caracteristicas e peculiaridades do Brasil para, a partir deste conhecimento, buscar caminhos e soluções realmente adequados à realidade brasileira e ao projeto de Brasil desejado pelos brasileiros.

Este aspecto da necessidade ou da importância de uma perspectiva brasileira também pode ser entendido como um ponto de aproximação entre os autores do pensamento social brasileiro que se privilegiou tratar neste trabalho.