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2.3 Cultura brasileira: a formação do Brasil, aspectos e traços na voz de seus intérpretes

2.3.1 O Homem cordial de Sergio Buarque de Holanda

Sergio Buarque de Holanda nasceu em 1902 em São Paulo e fazia parte da vertente cultural dos intérpretes do pensamento social brasileiro, pois tinha como foco de análise os aspectos culturais e a preocupação com a questão da formação do Brasil e como aspectos desta impactariam no desenvolvimento do país.

Holanda (2011) partiu de conceitos weberianos para o desenvolvimento de suas teorias e atribuiu relevante papel à herança ibérica na formação da cultura nacional. Além disso, também se debruçou sobre os aspectos da modernização e do desenvolvimento do país

e os considerados “entraves culturais” a esta modernização. O autor atribui parte destes

descompassos da modernização a uma dificuldade de transposição de um modelo agrário, rural e baseado na cordialidade para um modelo industrial, urbano e baseado na civilidade.

O argumento central do livro Raízes do Brasil é que o país atravessava uma crise de transição desde o século XIX de uma ordem tradicional para uma ordem moderna. Seria a passagem de um modelo agrário e patriarcal para um modelo industrial e democrático. Os entraves que a estrutura colonial deixou como legados dificultavam esta ultrapassagem.

A indagação sobre a possibilidade de convergência entre um ethos cordial e uma ordem racionalizadora atravessaria a obra de Holanda (2011) que busca a gênese deste ethos na influência ibérica durante o período colonial. Assim sendo, o autor inicia sua obra com um exame da mentalidade ibérica e desenvolve uma tipologia dos contrários para desenvolver os conceitos de trabalhador e aventureiro e semeador e ladrilhador, antes de apresentar o conceito de homem cordial.

A mentalidade ibérica seria caracterizada pelo desenvolvimento extremado da

“cultura da personalidade”, que resultava de uma concepção personalista de autonomia da pessoa. Essa “cultura da personalidade” dos povos ibéricos, que valorizava o livre-arbítrio e a responsabilidade pessoal, não favorecia as associações entre os homens em torno de objetivos comuns. Então, uma de suas consequências seria a dificuldade do desenvolvimento de qualquer forma de associação com base em interesses ou em solidariedades livremente pactuadas.

Outro ponto importante da psicologia dos povos ibéricos destacados por Holanda (2011) seria sua repulsa pela moral fundada no culto ao trabalho. “O certo é que, entre

espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico” (HOLANDA, 2011, p.39).

De forma coerente com esse distanciamento da ética do trabalho dos povos protestantes, no processo de colonização realizado pelos povos ibéricos teria predominado uma ética da aventura. Enquanto o aventureiro buscava a compensação imediata, o trabalhador considerava imoral a concepção aventureira do mundo - de audácia, imprevidência e imediatismo - e valorizava o esforço metódico: “o que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa

trabalho” (HOLANDA, 2011, p.49).

Holanda (2011) utiliza os tipos opostos semeador e ladrilhador para fazer uma caracterização dos sistemas de colonização dos portugueses e dos espanhóis. O ladrilhador representava a colonização espanhola, onde se observava uma valorização das cidades e preocupação com a urbanização, com a organização e com o planejamento. “No plano das cidades hispano-americanas, o que se exprime é a ideia de que o homem pode intervir arbitrariamente, e com sucesso, no curso das coisas e de que a história não somente

‘acontece’, mas também pode ser dirigida e até fabricada” (HOLANDA, 2011, p.98). Os

portugueses, por sua vez, não tinham ordem em suas colônias. Portavam-se a semelhança de semeadores que jogam as sementes ao acaso.

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo (HOLANDA, 2011, p.110).

Essa despreocupação com a formação de cidades juntamente com o ruralismo e o patriarcalismo têm como consequência a formação do homem cordial. A cordialidade seria

um “padrão de convívio humano” que teria como modelo as relações privadas características

do meio rural, patriarcal (ESTEVES, 1998). Assim, o ambiente doméstico acompanharia o indivíduo mesmo quando este estivesse fora dele e o privado transbordaria para o público.

Holanda mostra que a cordialidade é tão forte na sociedade brasileira que penetrou até nas relações comerciais, geralmente marcadas pela racionalidade e impessoalidade (OLIVEIRA; MARTINS, 2009; AVELINO FILHO, 1990). Desse modo,

O quadro familiar torna-se tão poderoso e exigente que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre neles a entidade pública. A nostalgia desta organização compacta, única, intransferível, onde prevalecem

necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. (HOLANDA, 2011, p. 82)

Nas palavras do próprio Sergio Buarque de Holanda, a cordialidade seria um dos aspectos mais marcantes do caráter brasileiro:

A contribuição brasileira para a civilização será a de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal (HOLANDA, 2011, p. 146-147).

O destaque destes traços culturais é uma singular contribuição de Sergio Buarque de Holanda ao pensamento social brasileiro. Sua postura - original para época - de buscar o entendimento da formação do Brasil nos aspectos culturais, quando a intelectualidade estava debruçada sobre aspectos raciais também deve ser considerada.

É importante observar que Sergio Buarque de Holanda não aborda diretamente o universo organizacional, mas suas considerações sobre os aspectos culturais da formação do Brasil constituem uma fonte riquíssima para o embasamento de reflexões sobre as relações entre os aspectos vinculados à cultura de determinada organização, como simbologias, ritos e condutas e as possíveis influências da cultura brasileira nesses aspectos. A análise de Raízes do Brasil também possibilita reflexões sobre as instituições públicas brasileiras, onde relações impessoais características do Estado burocrático são confrontadas com uma ética cordial.