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10. OS GRINGOS CHEGAM PARA SALVAR A CARAVANA

Estava chegando a hora do embarque da FEB, e os treinamentos seguiam com o contingente já reunido na Vila Militar, no Rio de Janeiro. Havia uma ligeira apreensão, pois já não era certo que o Brasil fosse conseguir entrar em combate, depois que os jornais anunciaram a libertação de Roma, em 4 de junho de 1944. Logo em seguida, outra surpreendente notícia, de que os Aliados desembarcaram na França, em 6 de junho de 1944, fez com que todos acreditassem que a guerra estava em suas rodadas finais, com promessas de que o cessar-fogo chegaria antes do Natal de 1944. Depois de tantas dificuldades, de tanta demora nos canais oficiais, só faltava a FEB não embarcar para o front, o que causaria enorme frustração aos brasileiros.

Porém, após muito trabalho, disposição, frustrações, intrigas e problemas de toda espécie, a FEB estava pronta para embarcar. A operação de transporte dos mais de cinco mil homens do 1o escalão da Divisão de Infantaria Expedicionária saiu da Vila Militar em direção ao cais da praça Mauá, no Centro do Rio de Janeiro, na noite do dia 29 de junho. Tudo, em teoria, envolto no mais alto segredo.

Na verdade, muita gente já tinha conhecimento de que os pracinhas estavam prestes a embarcar. Foi impossível manter em absoluto segredo a partida do 1o escalão da FEB, por mais que se tentasse. Transferidas dos alojamentos da Vila Militar em comboios de caminhões até os armazéns da zona portuária, chegavam as várias levas de pracinhas, com seus sacos A e B. Vê-se em fotos da época que muitos levavam pandeiros, outros, violões em punho, o que causa certa estranheza: estariam mesmo indo para a guerra?

Embarcados desde o cair da noite do dia 29 de junho de 1944, somente no dia 2 de julho zarpou o navio-transporte americano USS General W.A. Mann , e levava pela primeira vez na história uma força militar de sul-americanos para lutar em plena Europa. Na madrugada do dia 30, o presidente Vargas visitou o navio e fez um discurso utilizando o sistema de som:

palavra de despedida, em nome de toda a nação brasileira. Sei quanto nos custa, a todos, este momento transcendente em que vos separais dos vossos lares, do calor e do carinho dos entes amados. O destino vos escolheu para a missão histórica de fazer tremular, nos campos da luta, o pavilhão auriverde e responder com a presença do Brasil às ofensas e humilhações que nos tentaram impor. Dedicai-vos de corpo e alma à vossa gloriosa missão. A nação vos seguirá com o pensamento ungido pelas mais fervorosas preces de Deus, certa de que a vitória será o apanágio das vossas armas. O governo não se descuidará um instante, no desvelo pelas vossas famílias. Estejais tranquilos. É com emoção que aqui vos deixo os meus votos de pleno êxito. Não é um adeus. É, antes, um “até breve”, quando ouvireis a palavra da pátria agradecida.

O rebuscado discurso de despedida aos pracinhas guarda em si a essência de tudo que significou o envio da FEB para a guerra. Muitas das razões para lutar, das justificativas, dos apelos emocionais e das promessas que naquele momento foram feitas não seriam cumpridas pela “pátria agradecida”. Vargas esteve presente nos embarques seguintes do contingente brasileiro para a Itália. O 2o e o 3o escalões — que partiram em setembro em dois navios — chegariam a Nápoles nesse mesmo mês. O 5o e último escalão chegaria à Itália no fim de fevereiro de 1945.

Durante a viagem, ainda havia o temor de que algum ataque ao comboio pudesse ser realizado por submarinos do Eixo, mesmo com a escolta de navios americanos e brasileiros e a cobertura aérea possível, ao longo da travessia do Atlântico. Todos a bordo tentavam equilibrar o rigor com os horários de refeições — e se acostumar ao cardápio americano com feijão doce, ovos, bacon e suco de

grapefruit (toranja) — ocupando-se em atividades diversas de leitura, carteado com

apostas, xadrez, damas ou apenas tomar sol pensando em como seria a guerra que aguardava os brasileiros. Os horários de recolhimento eram muito rígidos, e os relatos dos pracinhas contam da grande movimentação nos banheiros, onde muitos acabavam devolvendo toda a comida por conta do enjoo a bordo. Até mesmo um barril era deixado perto das camas nos alojamentos, para facilitar o serviço dos que passavam mal.

americana que se apresentava conforme um programa distribuído para os viajantes. Os pracinhas que levavam seus instrumentos na jornada — violões, gaitas, pandeiros e até cuícas — acabaram promovendo concorridos saraus a bordo, que conseguiam agregar todos num grande coral a cantar sambas e outros temas populares, o que afastava maiores preocupações e o tédio da viagem. A passagem pela linha do equador sempre exigia uma tradicional e engraçada cerimônia, encenada com alguém fantasiado de rei Netuno e autorizando o cruzamento dos mares, o que acabava em samba entre os brasileiros.

Os pracinhas e todos a bordo eram obrigados a realizar treinos para evacuar o navio inúmeras vezes ao longo da viagem. Muitos se assustavam com os exercícios de tiro que eram eventualmente realizados pelos navios do comboio. Em certa altura da jornada, um avião americano, rebocando um alvo para instrução de tiro antiaéreo, causou confusão quando muitos pensaram que o navio estava sendo atacado.

Essa foi a rotina básica de todos os traslados das tropas brasileiras até o front do Mediterrâneo. Quando o General Mann adentrou o mar Mediterrâneo pelo estreito de Gibraltar, ocorreu um fato no mínimo insólito: a rádio BBC anunciou abertamente pelo seu serviço de transmissões ao redor do mundo que um navio com um contingente militar brasileiro estava chegando ao teatro de operações italiano. A transmissão, recebida pelo rádio do navio, que reproduzia a programação pelos alto- falantes a bordo, causou um grande susto. O comandante do navio determinou imediatamente o estado de prontidão, e soaram alarmes. Ninguém estava autorizado a ficar no convés, e equipes da artilharia antiaérea tomaram posições. A mobilização era total. Em seguida, contatos de rádio das bases Aliadas na região alertaram sobre aviões alemães, rastreados ao norte da Itália, que estariam em rota para atacar navios Aliados no Mediterrâneo. Da mesma forma, o Comando Aéreo Aliado foi posto em ação, aparentemente impedindo que os aviões inimigos se aproximassem do comboio brasileiro.

Depois de alguns momentos de tensão, passado o susto, ficou o mistério sobre as razões de tamanho descuido da tradicional rádio britânica, que colocou em risco toda a operação de chegada da FEB à Itália.

Treino é treino, jogo é jogo

Uma parcela dos soldados que lutaram na FEB era composta por militares da ativa, que já estavam em serviço no momento da convocação. Esse era o caso do terceiro-sargento Divaldo Medrado, natural de Belo Horizonte. Com apenas 21 anos, Medrado seguiu para a reunião do efetivo mineiro que se

concentrava no quartel da então Companhia de Caçadores em São João del-Rei, Minas Gerais, de onde saiu grande parte do efetivo do 11o Regimento de Infantaria, batizado de Regimento Tiradentes, mas

que ficou mais conhecido entre as fileiras da FEB como “o Onze”. De lá, o sargento seguiu para treinos complementares nos campos da Vila Militar, no Rio de Janeiro, onde aprimorou seus conhecimentos e funções como sargento, no comando de um grupo de combate, conforme a nova cartilha militar americana. O sargento foi reconhecidamente um militar especializado no comando em batalha, uma espécie de caaz da tropa, que fica em linha direta com seus comandados — os 13 homens que formam um grupo de combate — preparando-os e sabendo precisamente se estão aptos para realizar uma missão. O sargento tem que repassar ao seu grupo de combate as ordens recebidas do seu superior imediato, o tenente. Esse processo é uma das funções mais importantes em campo de batalha, bem como fazer a tropa progredir no terreno, tomar uma posição do inimigo, trazer prisioneiros, enfim, realizar a maioria das missões que formam o retrato mais realista das ações de combate. Os treinos procuravam reproduzir situações de combate, mas, assim como diz a velha máxima do futebol, “treino é treino, jogo é jogo”, treinamento é uma coisa; na hora do jogo, tudo é diferente.

O sargento Medrado seguiu para a guerra no 3o escalão da FEB, em setembro de 1944. Depois de mais

um curto período de instrução na Itália, as recém-chegadas tropas do Onze e do Regimento Sampaio foram rapidamente postas em ação para substituir os homens do 6o Regimento de Infantaria, que

estavam na frente desde agosto. Além dos alemães, com suas minas, artilharia, armadilhas e a sempre temida Lurdinha, os pracinhas brasileiros começavam a ter noção do inverno rigoroso que se

aproximava da cordilheira dos Apeninos — em nada parecido com o que era frio para eles no Brasil —, com sua neve branca, que depois virava lama preta, escorregadia como sabão, e que jogava a favor do inimigo encastelado naqueles morros.

O sargento Medrado esperava cumprir sua função na 1a Companhia, dentre as três que integravam o 1o

Batalhão do Onze. Ainda antes de a neve chegar, seu grupo de combate era um dos que tomaram parte numa ação em Guanella, nos arredores do Monte Castello, na nova frente de combate da FEB. Era madrugada do dia 2 para o dia 3 de dezembro de 1944 quando as unidades do Onze subiram as colinas daquela localidade. O avanço cuidadoso deixava um clima de suspense no ar, e cada passo era dado como pisar sobre ovos, num silêncio que se ampliava com a escuridão da madrugada.

Um espocar seguido de rajadas de todos os lados cortou os ares. Num relance, houve a certeza de que os alemães estavam em total superioridade naquele setor, o que levou alguns pelotões a bater em retirada. Terror e desorganização levaram todas as unidades a retroceder morro abaixo, alguns

chegaram até Porretta Terme, no posto de comando da FEB. Naquele momento, o 1o Batalhão do Onze

sofreu seu mais duro golpe na campanha da Itália. Mas o sargento Medrado ainda haveria de acertar suas contas com os tedescos.