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Um aspecto negativo, porém, precisa ser apontado a essa altura, porquanto o modelo criado pelo legislador, que detém inúmeras vantagens e aplicações, está sendo usado de forma imoderada por pessoas e empresas (sócios ostensivos) que pretendem não mais que o lucro fácil, em total prejuízo de terceiros (sócios participantes).

Surgem, assim, no mercado empresas que, mediante forte propaganda, oferecem facilidades para aquisição de veículos ou de imóveis. A par da modicidade das prestações, não exigem comprovação de renda, nem ausência de restrição em órgãos de proteção ao crédito. A propaganda é muito sedutora e agressiva, o que facilita o convencimento de pessoas humildes e que têm pouco acesso à informação.

O consumidor, pensando estar diante de simples modalidade de empréstimo para comprar sua casa própria, é atraído pela publicidade e pelos depoimentos de figuras conhecidas, ou mesmo pela oferta direta do vendedor, com aparência grandemente vantajosa (juros baixos, desnecessidade de comprovação de renda, possibilidade de realização do sonho da casa própria em qualquer lugar do país). Nesse caso, a desinformação do consumidor é a alma do negócio.

Na realidade, porém, sem que se informe ao interessado, celebram tais empresas com os clientes contratos de verdadeiras sociedades em conta de participação, com o específico alvo de captar a poupança popular. Em sua realidade intrínseca, nada trazem da aparência do que a propaganda faz crer. E, na aparência, buscam de todos os modos esconder a realidade jurídica que o contrato determina. Trazem a idéia de que oferecem um contrato de compra e venda mais facilitado. Atuam, porém, como verdadeiros consórcios mascarados, postos à margem da fiscalização do Banco Central e em desacordo com as Leis federais 5.766/71 e 8.177/91, além de outras portarias e comunicados dos órgãos fiscalizadores do Governo. Depois de assinado o contrato, desvirtuam-no, e a empresa passa a captar valores sem oferecer garantia alguma e sem autorização governamental, burlando, assim, a legislação de proteção ao consumidor e a da poupança popular. Ou seja: sem comunicar ao interessado, levam-no a firmar um contrato em conta de participação, com todos os riscos inerentes à condição de sócio dela participante.

A maioria das vítimas de propaganda são pessoas de baixa renda e com pouca instrução, que só descobrem o golpe alguns meses depois. Alguns somente caem em si, quando vence o prazo prometido para a liberação do empréstimo, que não vem. Em muitos casos, o contratante arrependido não consegue localizar o vendedor ou a empresa, nem cancelar o contrato que, formalmente, traduz a realidade de uma contratação de sociedade comercial, da qual ele passou a fazer parte na condição de sócio oculto. Alguns meses depois, os escritórios são fechados, e aparece uma faixa comunicando o atendimento por telefones de atendimento ao consumidor, normalmente de uma outra cidade, quando não de outro Estado da Federação. Tais telefones, contudo, não atendem.

Em termos de essência jurídica, devido a sua natureza comercial, verificou-se uma dificuldade inicial para enquadrar esses contratos na legislação de proteção ao consumidor. Análise mais detida da realidade e da intenção das partes na elaboração do contrato, todavia, revelou no sócio ostensivo sua condição de comerciante e de verdadeiro fornecedor de serviços, contraposta à de consumidor na pessoa do formalmente denominado sócio oculto, com integral enquadramento do pacto, assim, nas regras do Código de Defesa do Consumidor. Em realidade, conforme determina o artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor159, que trata das relações de consumo, o entendimento do contrato pelo consumidor jamais poderá ser dificultado, ocorrência essa de fácil percepção em tais casos. Se o entendimento do contrato não pode ser dificultado, quanto menos poderá ser impedido ou mascarado.

A sociedade em conta de participação travestida de formalidade legal para parecer uma sociedade dessa natureza e oferecer imóveis em módicas prestações, retrata flagrantemente um verdadeiro contrato de consumo por diversas razões: a) ao pretenso sócio participante não se deu efetiva ciência da realidade do contrato que estava firmando; b) a tal sócio, não se lhe deu escolher entre compor uma sociedade em conta de participação (que não queria) e assinar um contrato de consórcio para aquisição de casa própria em módicas prestações e sem burocracia (que era o que pensava estar assinando); c) desde o início, o sócio ostensivo sabia da impossibilidade de geração de lucro ao sócio oculto; d) o aspecto formal

159 Artigo 46 do CDC: Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se

não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

não pode prevalecer sobre a realidade dos fatos; e) ou seja, não basta que o consumidor seja rotulado de sócio e formalmente conste como sócio de uma sociedade em conta de participação, para que seja afastado do vínculo do consumo; f) o contrato engendrado pelo sócio ostensivo teve a finalidade exclusiva de afastar do crivo dos órgãos e entidades de proteção e defesa do consumidor um contrato que revela verdadeira relação de consumo; g) em contratos dessa natureza, mesmo afastada a trapaça existente na maioria dos casos, não há qualquer relação entre sócios, e sim a prestação de serviços de administração de recursos de terceiros, mediante remuneração pecuniária do administrador por suas atividades; h) não existe em tais contratos o objeto social alegado, a saber, a formação de fundo específico, mas o desenvolvimento de operações financeiras com recursos de terceiros, o que constitui atividade privativa das instituições financeiras autorizadas pelo Poder Público; i) havendo a ocorrência de prestação de serviços, consistente na administração de recursos de terceiros, obviamente incidem as regras reguladoras das relações de consumo do Código de Defesa do Consumidor.

O Ministério Público, pelas Promotorias de Justiça do Consumidor, além das medidas repressivas corporificadas em ações judiciais, vem implementando providências preventivas de significativo resultado no que concerne ao emprego da sociedade em conta de participação para prejuízo do consumidor. Dentre essas medidas, podem-se destacar:

I) Quanto às empresas que oferecem ao público em geral contratos efetivos de sociedade em conta de participação ou de qualquer outra nomenclatura equivalente para a aquisição de imóveis, tem buscado o Ministério Público obter delas um compromisso de ajustamento de conduta, para que elas: a) não promovam a captação da poupança popular, quer pelo meio referido, quer por consórcio, cooperativa, associação, etc., sem autorização do Banco Central e dos órgãos governamentais: b) ao mesmo tempo, que se obriguem a devolver os valores pagos pelos consumidores que aderiram ao referido contrato, com a devida atualização monetária; c) que se abstenham de exigir, cobrar ou receber qualquer quantia dos consumidores, derivada do referido contrato.

II) Quanto às emissoras de rádio ou televisão, é-lhes posta ao dispor a faculdade de um compromisso de, antes de veicular ou permitir a veiculação de qualquer publicidade pelo rádio ou televisão, que signifique captação de poupança popular para a futura entrega de crédito ou de bens móveis ou imóveis, por consórcio,

cooperativa, associação, etc., exigir a necessária comprovação cabal da autorização da autoridade competente.

O Banco Central do Brasil, órgão governamental incumbido de fiscalizar entidades que funcionam como financeiras e as que atuam como consórcios, pelo Comunicado Bacen n.

9.609/2002, divulgou o entendimento de que a formação e o funcionamento de grupos para aquisição de imóveis por meio de sociedades em conta de participação sem a autorização determinada pelos artigos 7º e 8º da Lei n. 5.768, de 20.12.1971, e artigo 33 da Lei n. 8.177, de 1º.03.1991, não têm respaldo legal, razão pela qual orientou tais empresas a implementar os seguintes aspectos: I) solicitar ao Banco Central autorização para administrar grupos de consórcio (cf. Circular n. 3.070, de 07.12.2001); II) converter os grupos já formados para a modalidade de consórcio de imóveis, transferindo-os para administradoras de consórcio autorizadas, ficando a cargo do sócio ostensivo a responsabilidade pelos custos dessa conversão; III) dissolver os grupos já formados, garantindo os direitos dos atuais participantes aos valores já desembolsados, de modo a preservar o poder de compra dessas parcelas.

De igual modo, chamado a pronunciar-se em demanda específica, o colendo Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de assentar que “a formação e o funcionamento de grupos para aquisição de bens por meio de sociedade em conta de participação não tem respaldo legal”.160

Anote-se, por fim, que a questão do desvirtuamento das sociedades em conta de participação exatamente no sentido apontado motivou recentemente o Projeto de Lei n. 10, de 2005, para acrescentar o inciso XVII ao artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, com o intuito de dar por nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços, “que resultem na inclusão automática do consumidor, na qualidade de sócio, seja ostensivo ou oculto, cotista ou acionista de qualquer modalidade de sociedade comercial, inclusive na denominada sociedade em conta de participação”.