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A sociedade em conta de participação não apenas é uma sociedade perante nosso ordenamento jurídico; mais do que isso, é uma sociedade regular, porque tratada como tal pelo ordenamento jurídico, que a arrola entre as figuras societárias e a trata como entidade que se constitui sob o pálio da lei. Em suma, é sociedade, porque assim é tida pelo Código Civil; é regular, porque é normalmente disciplinada pelo ordenamento jurídico, que lhe estipula as condições e os requisitos.

Se não tem personalidade jurídica, é porque sua norma regente lhe nega tal atributo, o que, todavia, não a lança na vala da marginalidade. Assim, é despersonalizada, não, porém, irregular.

210 Cf. SANCHES, Sydney. Conseqüências da não denunciação da lide. Ajuris: Revista da Associação dos Juízes

12.4 A questão da personalidade jurídica

Invocando ensino de Gierke e de Waldemar Ferreira, Walter T. Álvares ressalta dois significativos aspectos na sociedade em conta de participação: 1) “é uma típica sociedade

interna, e não uma sociedade mercantil”; 2) “é sociedade apenas nas relações entre os sócios” e inexistente nas relações com terceiros, de modo que “não tem personalidade jurídica”.211

É princípio assente na doutrina que o início da personalização da sociedade empresária opera-se com seu registro na Junta Comercial212, e o Código Civil fixa tal formalidade como o ato responsável pela existência legal das pessoas jurídicas de direito privado (CC, art. 45) e do qual decorre a própria aquisição de tal personalidade jurídica (CC, art. 985). Assim, em breve conclusão, a sociedade em conta de participação, por um lado, é sociedade, porque a lei a insere no rol das entidades dessa natureza; por outro lado, não tem personalidade jurídica, porque a lei lhe nega registro e determina que eventual inscrição de seu instrumento não confere personalidade jurídica à sociedade (CC, art. 993).

Tais como postos os dispositivos e os conceitos, todavia, ainda pode remanescer margem a confusões, o que é preciso aclarar. Fixe-se, como premissa, que uma coisa é a existência de fato, e outra é a existência jurídica. Além disso, uma terceira coisa é a existência de uma sociedade, e por fim, uma quarta e bem diversa é a existência de uma pessoa jurídica.

Assim, num primeiro aspecto, um contrato constitutivo de sociedade ainda não levado a registro evidencia a existência de fato de uma sociedade, mas, em tal situação, sua efetiva realidade jurídica pode ser bem diversa da que consta nos documentos, já que, não importando o tipo escolhido pelo contrato social para o desempenho da atividade empresarial, enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade pelas normas da sociedade em comum, observados subsidiariamente, no que compatível, os ditames previstos para a sociedade simples (CC, art. 986).

Ou seja: se os sócios passam a atuar em conjunto na exploração da atividade econômica que se propuseram – ou seja, desde que haja contrato, ainda que verbal, de constituição de sociedade – existe efetivamente uma sociedade. A natureza e os efeitos dessa

211 ÁLVARES, Walter T. Curso de direito comercial. 5. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1979. p. 297. 212 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial, 5. ed., 2002, cit., v. 2, p. 16.

sociedade, porém, serão diversos, conforme estejam ou não inscritos os estatutos sociais. Assim, por exemplo, os sócios firmam um contrato social de sociedade limitada, mas se põem a atuar, desde logo, nos negócios, sem levar a registro o contrato constitutivo da sociedade. Esta, considerada em si, efetivamente existe e é aceita pelo ordenamento jurídico; não é, todavia, juridicamente reputada uma sociedade limitada, em que a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas (CC, art. 1.052), mas é tida, em sua atuação, como uma sociedade simples (CC, art. 986), em que os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais (CC, art. 990).

Num segundo aspecto, não se confundem sociedade e personalidade jurídica. Se, por um lado, é verdadeiro afirmar que, de um modo geral, as sociedades são dotadas de personalidade jurídica, por outro lado, o próprio Código, a par das sociedades personificadas (CC, arts. 997 e seguintes), também traz, como estruturas aceitas pelo ordenamento jurídico e por ele regradas, as sociedades não personificadas, para as quais, por expressa determinação legal, não previu registro nos órgãos respectivos: são a sociedade em comum (CC, arts. 986 e seguintes) e a sociedade em conta de participação (CC, arts. 991 e seguintes). Embora despidas de personalidade jurídica por determinação legal, são elas sociedades regularmente constituídas e com suas estruturas perfeitamente aceitas e acatadas pelo ordenamento jurídico, o qual apenas lhes sonega a personalidade jurídica.

Veja-se, assim, que uma sociedade irregular, por não ter registrados seus atos constitutivos, é uma sociedade, mas não é pessoa jurídica. Mesmo em tal situação, ela conta com o reconhecimento legal de sua estrutura e de seus atos, marcando a lei, de modo expresso e específico, os efeitos de sua atividade em tal situação. Se fosse real pessoa jurídica, a responsabilidade de seus sócios e dirigentes seria regrada pelas normas da modalidade societária escolhida, na forma de seu contrato social; do fato de não ser pessoa jurídica, entretanto, deflui que será regrada pelas normas da sociedade em comum, em que a regra é a ilimitada responsabilidade de seus sócios e dirigentes.

Resuma-se, portanto: ser sociedade é uma coisa; deter personalidade jurídica é outra. O Código Civil de 2002, após fixar as disposições gerais para as sociedades (arts. 981/985), inovou, ao distribuir as regras em dois subtítulos: um para as sociedades não personificadas, especificando a sociedade em comum (arts. 986/990) e a sociedade em conta de participação (arts. 991/996); e outro para as sociedades personificadas, com discriminação de regras para a

sociedade simples (arts. 997/1.038), a sociedade em nome coletivo (arts. 1.039/1.044), a sociedade em comandita simples (arts. 1.045/1.051), a sociedade limitada (arts. 1.052/1.087), a sociedade anônima (arts. 1.088/1.089), a sociedade em comandita por ações (arts. 1.090/1.092) e a sociedade cooperativa (arts. 1.093/1.096).

Isso quer dizer que a nova legislação civil – ao inovar com a rubrica geral das sociedades não personificadas – não apenas veio a confirmar e a robustecer a sociedade em conta de participação, mas também a reconhecer a existência legal da sociedade em comum. Inovou em regras e clareou a situação da primeira, que foi tirada do nimbo da desconfiança do ordenamento; quanto à segunda, buscou-a da clandestinidade e da irregularidade em que até então se encontrava, erigindo-a à condição peculiar de sociedade não personificada, em situação de natureza similar, nesse aspecto, à sociedade em conta de participação.

De modo específico para a sociedade em conta de participação, reitere-se, em síntese, que ela é uma sociedade peculiar por suas características advindas da lei; mas é integralmente regular, embora, por própria determinação legal, seja despida de personalidade jurídica.

12.5 Singularidade não é atipicidade

Reitere-se: o fato de ser uma sociedade despida de personalidade jurídica, sem registro e voltada para seus próprios sócios confere à conta de participação uma peculiaridade e uma singularidade próprias, advindas da lei. Mas as ilações a serem extraídas desse contexto devem ser tomadas com a devida cautela.

Nessa esteira, Bernardo Lopes Portugal, a par de elogiar o mérito didático do Código Civil de 2002, por classificar a sociedade em conta de participação como uma das espécies de sociedade não personificada, afirmou que o legislador deixou clara “sua atipicidade em face das demais formas de organização de pessoas jurídicas”.213

Ora, em termos de técnica jurídica, um tipo é um modelo, um padrão, um molde, quer de caráter positivo (como os tipos dos contratos nominados da legislação civil

213 PORTUGAL, Bernardo Lopes, A sociedade em conta de participação no novo Código Civil e seus aspectos

codificada), quer de caráter negativo (como os descritos no Código Penal). E, nesse sentido, porque arrolada no Código Civil com molde respectivo (CC, arts. 991/996), reveste-se a sociedade em conta de participação de total tipicidade.

Assim, se o que se quer é dizer da singularidade, da peculiaridade da referida sociedade em face das demais modalidades societárias estampadas no Código, não há do que discordar, embora se trate de impropriedade terminológica. Afirmar, porém, sua atipicidade, em termos técnicos, ante as demais espécies de sociedades descritas pelo Código Civil de 2002 afigura-se inadequado, porquanto o novo ordenamento não apenas a arrolou como uma das espécies de sociedades, e lhe destinou o respectivo tratamento, como, ao lado da sociedade em comum, especificou-lhe o caráter de sociedade não personificada. E, como já se viu, o fato de não deter personalidade jurídica ou quaisquer outras características que a singularizam não lhe trazem atipicidade alguma.

12.6 Sociedade empresária ou não?

Por um lado, lembra-se aqui o princípio de que, em Direito, o que importa não é o nome que se confere a uma entidade ou a um contrato, mas a realidade estampada em sua essência e em suas cláusulas. Na aplicação desse princípio à realidade do instituto sob análise, oportuno é lembrar que “pouco importa que os sócios a tenham falsamente qualificado de participação. É à realidade, às condições fundamentais que os juízes devem atender para determinar o caráter da sociedade”214. Por outro lado, também não importa que não se tenha dito estar-se diante de uma sociedade em conta de participação, se as disposições clausulares de seu contrato evidenciarem a realidade de uma sociedade dessa natureza. Em síntese: estar- se-á diante de uma sociedade em conta de participação não porque o diga seu contrato ou seus sócios, mas porque assim garanta a realidade de sua existência. E, pela mesma razão, não se estará diante de uma sociedade em conta de participação, se a essência de suas disposições não o confirmar, não importando a denominação que lhe confira o contrato.

Feita essa observação inicial, lembra-se que, já na vigência do ordenamento anterior, em que precisa a dicotomia entre direito civil e direito comercial, a sociedade em conta de

214 Cf. MENDONÇA, Jose Xavier Carvalho de, Tratado de direito commercial brasileiro, cit., v. 4, livro II, p.

participação, por via de regra, era comercial, quando comercial fosse seu objeto (CC/1916, art. 1.364), e comerciante fosse seu sócio ostensivo. Entendia-se, contudo, que nada impedia fosse ela civil, se civil fosse seu objeto.215

Embora pressupusesse o artigo 325 do Código Comercial, na sociedade em conta de participação, a reunião de duas ou mais pessoas, sendo ao menos uma comerciante, ainda na vigência do estatuto de 1850, reputava-se que ela poderia ter natureza civil, quando civil fosse o seu objeto, porquanto, a teor da lei então vigente, as sociedades civis poderiam revestir-se das formas estabelecidas nas leis comerciais, devendo, em tal caso, obedecer aos respectivos preceitos, naquilo em que não contrariassem o Código Civil.

Quanto a saber se a conta de participação tem natureza de sociedade empresária ou não, por um lado, é bem certo que, se o conceito que se tem de sociedades empresárias coincide com a extensão do conceito de pessoas jurídicas, é de fácil percepção ser “incorreto considerar a conta de participação uma espécie destas”216, no mínimo por tratar-se de espécie não personificada de sociedade. Em tal hipótese, a conta de participação não poderá ser considerada uma sociedade empresária, pois lhe falta personalidade jurídica para anuir às obrigações perante terceiros (o que se dá pelo sócio ostensivo em seu próprio nome), apenas havendo divisão dos lucros entre os sócios.

E é interessante que, dessa circunstância conceitual como premissa, deriva até mesmo, como corolário, a conclusão de que, naqueles lugares onde há varas cíveis e várias empresariais, a competência para conhecer e julgar ações propostas a seu respeito é de uma vara cível, e não de eventual vara empresarial.217

Por outro lado, porém, no atual Código Civil, sem similar na codificação anterior, tem-se a regra do artigo 983, a determinar que a sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos artigos 1.039 a 1.092, e seu parágrafo único ressalva “as disposições concernentes à sociedade em conta de participação”. Ora, porque na conta de participação, o sócio ostensivo exerce, com exclusividade, a atividade constitutiva do objeto

215 CAMARGO, Ruy Junqueira de Freitas. Sociedade em conta de participação (Parecer). Justitia, São Paulo, v.

68-69, p. 260-262,1º semestre 1970.

216 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial, 5. ed., 2002, cit., v. 2, p. 476.

217 Cf. TJRJ, 16ª Câmara Cível, Conflito de Competência 2005.008.00207, j. 20.09.05, rel. Des. Miguel Ângelo

social, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, enquanto os demais apenas participam dos resultados correspondentes (CC, art. 991), o que se dá, em termos de natureza, é que a sociedade em conta de participação será o que é seu sócio ostensivo: se a atividade por ele desempenhada for de natureza empresarial, então a conta de participação será uma sociedade empresária; em caso contrário, diversa há de ser a natureza dela.

Em verdade, considerado seu caráter de espécie de efetiva sociedade, embora não personificada, que atua pela figura de seu sócio ostensivo, sob responsabilidade deste, então forçoso será concluir que nada impede que se constitua uma sociedade em conta de participação em caráter não-empresarial. Basta, para tanto, que o sócio ostensivo – que é quem vai agir, em seu próprio nome, no interesse da sociedade e por ela obrigar-se perante terceiros – não seja empresário218. Fran Martins, em obra atualizada para o novo ordenamento, concorda com este entendimento de que, embora prevista no antigo Código Comercial de 1850 e trazida para o direito de empresa do Código Civil de 2002, ela pode revestir-se dessa modalidade não-empresária.219

A amplitude do leque de opções para atuação dessa modalidade societária, aliás, já era defendida por Carvalho de Mendonça na vigência do Código Comercial de 1850, em excerto no qual esse autor ponderava a possibilidade de que, a par de ser comercial em outras circunstâncias, pudesse a conta de participação ser de natureza civil em determinadas situações.220