• Nenhum resultado encontrado

Um aspecto primeiro que se deve considerar no plano histórico é que a idéia que norteou a unificação no Brasil certamente foi uma proposta de unificação formal. Não foi, assim, a mesma que bafejou o sistema italiano no início do século XX, a saber, uma forte

61 GALGANO, Francesco, Lex mercatoria, cit, p. 225-226.

62 Cf. ASCARELLI, Tullio. Panorama do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 40.

63 Cf. FORGIONI, Paula A., A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil brasileiro, cit., p.

carga ideológica, inspiração fascista, de que a existência de dois Códigos dividiria a sociedade em classes, algo incompatível com aquela corrente, que buscava o equilíbrio entre a sociedade comercial e a civil. E mesmo com essa carga ideológica e essa nada recomendável inspiração, o Código italiano acabou prevalecendo em sua quase inteireza após a queda do Fascismo, e isso porque, em última análise, não foi obra dessa ideologia, mas resultou de debates de uma plêiade de juristas, distantes de qualquer polêmica política, que buscavam, em última análise, satisfazer as novas exigências da sociedade italiana.

Num segundo aspecto, vale ressaltar que, no plano histórico, atribui-se a Cesare Vivante o despertar a maioria dos povos para a idéia de unificar o direito privado. A partir da publicação de um estudo que defendia a unificação da matéria comercial e da civil num só diploma, ou num só direito comum (1888), surgiu destacado interesse na criação de um código de direito privado, que, adiante, evoluiu até desaguar na idéia de criar um código de obrigações. Para justificar a quebra da autonomia do direito comercial, argumentava-se que os atos de comércio tanto poderiam ser praticados por comerciantes como por qualquer outra pessoa, de modo que a autonomia se mantinha quase que exclusivamente por tradição. Seguiram-no, entre nós, Spencer Vampré, Bento de Faria, Clóvis Beviláqua. Opunham-se a ele, na defesa da autonomia do direito mercantil, entre nós, Carvalho de Mendonça, Alfredo Valadão, Inglês de Souza e Castro Rebelo.

O que é preciso adicionar, contudo, é que, mais tarde, o próprio Vivante, em conhecida retratação, repensando seus ideais, admitiu não ser oportuna a unificação do direito comercial e do direito civil, uma vez que isso traria prejuízos ao próprio desenvolvimento do direito privado. Tanto assim que, em 1919, foi criada na Itália uma comissão presidida pelo próprio Cesare Vivante, incumbida de apresentar proposta de reforma da legislação comercial. Quando todos acreditavam que o jurista italiano não deixaria escapar a oportunidade para implementar em definitivo e na prática suas idéias de unificação de direito privado, Vivante recuou, justificando que o momento não era oportuno para incorporar o Código Civil e o Código Comercial em um só diploma. Além disso, o processo de maturação e o estado de maturidade dos dois ramos do direito são muito distintos. Por fim, diversa a velocidade com que se elabora o conteúdo de ambos, o que sempre traz obstáculos à unificação.

E, assim, conforme sintetiza de modo brilhante João Eunápio Borges64, Cesare Vivante propôs a unificação do Direito Privado; Alfredo Rocco, porém, analisou e impugnou um a um os argumentos, demonstrando a impossibilidade de sua ocorrência à época. Em edições posteriores de seu trabalho, o próprio Vivante reconheceu o equívoco doutrinário de sua posição e concordou com a manutenção da divisão do direito privado, aduzindo, basicamente, a “diversidade de espírito” entre o comerciante e o civil.

É certo, por um lado, que há aqueles que, de longa data, como Sampaio de Lacerda, sustentam que a coexistência dos dois códigos é prejudicial à certeza do direito e traz dificuldades para se determinar se tal ou qual matéria pertence ao campo do direito civil ou do direito comercial. Além disso, segundo tais autores, essa divisão do direito privado exerce perniciosa influência sobre o progresso científico, porquanto o estudioso dos institutos do direito comercial perde de vista a atenção à teoria geral das obrigações. E, por fim, o aplicador acaba tendo dificuldade para combinar as disposições de ambos os códigos que regulem um mesmo instituto.

Por outro lado, não se pode olvidar, contudo, que essa unificação jamais teve aprovação unânime, pretendendo alguns a continuidade de separação entre o direito comercial e o direito civil como medida mais recomendável e sensata, pois, segundo eles, o que se faz na unificação é juntar o direito empresarial, específico de certos profissionais e de uma série de atividades, fruto de atuação no plano internacional, com um oposto, o direito civil, de natureza estática, formal, conservadora e nacional. Para essa corrente, melhor seria a separação entre as obrigações civis e as mercantis, atualizando-se, por um lado, o Código Civil, incorporando novos institutos surgidos do avanço da ciência e aperfeiçoando outros com a evolução da doutrina e da jurisprudência; por outro lado, que o Código Comercial fosse substituído por um código autônomo, que tratasse do empresário, das sociedades, do estabelecimento e dos institutos que lhes dão suporte, mais a legislação complementar.65

Existem, até mesmo, os que pensam que as transformações sociais rápidas fazem a unificação redundar em vã e ilusória pretensão. Para Fábio Konder Comparato, em posição

64 Cf. BORGES, João Eunápio, Curso de direito comercial terrestre, cit., p. 55 e seguintes.

65 Cf. ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. O novo Código Civil, de 10 de Janeiro de 2002, e o Livro II do

reiterada por Newton de Lucca66, o novo Código não conseguiu harmonizar, em um só corpo normativo, a disciplina jurídica civilística do homem comum com o regime próprio do direito empresarial, específico de certo profissional e de atividade peculiar67. Em realidade, o direito de empresa é um ramo muito dinâmico e versátil do direito, que não se permite amarrar indefinidamente, à espera de tramitação legislativa quase sempre muito longa, como a do Código Civil, que foi de aproximadamente trinta anos.68

Mesmo quando se tende a uma codificação do direito privado, em que há prevalência da mediação do Estado na regulação de todas as relações sociais, Francesco Galgano vê ainda o direito comercial como direito dos códigos de comércio, separados dos códigos civis, e a jurisdição comercial separada da jurisdição civil. Em seu entender, “conquanto direito do Estado, como o direito civil, o direito comercial se separa deste por uma razão que diz respeito, ainda uma vez, a um diverso modo de criar direito: é tornado autônomo do direito civil por ser mais facilmente e mais rapidamente emendável, em consonância com as mutáveis exigências do comércio, e por ser um direito, o mais possível, anacional, em antítese à acentuada caracterização nacional do direito civil, aberto às exigências de uniformidade metanacional, funcional para as necessidades de um mercado interestadual”.69

Tendo como premissa a advertência que faz Paula A. Forgioni, com base em lição de Tullio Ascarelli, para quem um direito especial nasce em virtude da peculiaridade de seus princípios jurídicos, e não da especialidade da matéria tratada70, uma análise sistêmica dos ordenamentos diante do que são as multinacionais de hoje revela que se pode utilizar nada ou bem pouco das experiências político-constitucionais maturadas no seio das sociedades nacionais diante da globalização da economia e da nova lex mercatoria. Como lembra Francesco Galgano, é preciso nascer novas idéias e experiências de todo originais para enfrentar os novos problemas e ditar novas soluções71. E uma junção do direito civil com o direito comercial dificulta sobremaneira uma real e efetiva atuação nesse campo.

66 DE LUCCA, Newton. A atividade empresarial no âmbito do Projeto de Código Civil. In: DE LUCCA,

Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.). Direito empresarial contemporâneo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 75.

67 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p.

546.

68 Cf. GONTIJO, Vinícius José Marques, O empresário no Código Civil brasileiro, cit., p. 81. 69 GALGANO, Francesco, Lex mercatoria, cit., p. 224-225.

70 FORGIONI, Paula A., A interpretação dos negócios empresariais no novo código Civil brasileiro, p. 6. 71 GALGANO, Francesco, op. cit., p. 228.

Além disso, o direito comercial é mais efervescente e mais mutável que o direito civil. Aspecto significativo dessa maior necessidade de alterações no direito comercial do que no direito civil se evidencia no fato de que, enquanto se editava apenas um Código Civil, eram aprovados dois códigos de comércio na Alemanha, dois na Espanha, dois na Itália, além de se observar com nitidez, na segunda metade do século XIX e no século XX, um início de processo de uniformização internacional de múltiplos setores do direito comercial, da concorrência, dos direitos de propriedade industrial, do cheque e da cambial.