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Segundo o coordenador da comissão elaboradora, optou-se, na redação do novo Código, “por uma linguagem precisa e atual, menos apegada a modelos clássicos desusados, mas fiel aos valores de correção e de beleza” que distinguem o Código de 191638. Em outras palavras, pretendeu-se buscar uma linguagem nova, mais simples, operacional, adequada e precisa, com o abandono dos arcaísmos, quer quanto aos vocábulos, quer quanto às estruturas. O inesquecível Georges Ripert, logo após o primeiro quartel do século XX, já demonstrava, na França, seu desagrado quanto à redação das leis recentes em relação ao Código Civil daquele país. Aduzia ele bastar a comparação entre os artigos das leis modernas e os do então mais que secular Código, para averiguar a inferioridade de redação das disposições das primeiras39. E, complementando não ser isso o pior, realçava que o mal maior era que os parlamentares que faziam as leis eram pessoas ignorantes das regras fundamentais do Direito, desconhecedoras da organização civil e totalmente destituídas de alguma idéia do que fosse uma ordem geral.40

Lembrando sempre que o legislador atual de nosso país não difere, fundamentalmente, do legislador francês da época considerada, frise-se, desde logo, nesse campo, apenas para exemplificar, que, a par dos muitos acertos havidos na simplificação da linguagem, algumas modificações são questionáveis.

Mesmo sem intento de polêmica, mas apenas cingindo a observação a dois exemplos iniciais, vê-se, num primeiro caso, que o artigo 1° refere que “toda pessoa é capaz de direitos

e deveres na ordem civil”. A expressão toda pessoa veio substituir todo homem da disposição correspondente do Código de 1916. E os noticiários saudaram com estrépito a mudança, justificando que, a partir de então, o vocábulo homem deixava o léxico jurídico do país como designação de cidadãos de ambos os sexos, cedendo seu lugar para pessoa. No afã de explicar o ocorrido, congressistas, em disputa dos holofotes da mídia, empertigaram-se diante das

38 Cf. REALE, Miguel, Visão geral do novo Código Civil, cit., p. 16.

39 RIPERT, Georges. Le regime démocratique et le droit civil moderne. Paris: LGDJ, 1936. p. 12-13.

40 No original e na íntegra: “C’est exact sans doute, et il suffit de comparer les articles des lois modernes à ceux

du Code Civil pour constater l’inferiorité de la rédaction, mais ce n’est pas le plus grand mal. Le plus grand c’est que les parlementaires qui font des lois sont des gens ignorants des règles fondamentales de notre droit et qui se ruent dans l’organisation civile en la saccageant, sans avoir aucune idée d’un ordre général qui pourrait remplacer celui qu’ils ébranlent sans merci”. (RIPERT, Georges, op. cit., p. 12-13).

câmeras com postura premeditadamente grave, para afiançar que já ficara no tempo a era do machismo na legislação.

Esse pretenso machismo, todavia, quer visto por leigos, quer apontado por parte da mídia, quer mesmo afirmado por alguns legisladores, não tem a mínima procedência. Não havia necessidade de mudança na redação, certo como é ser mais que de milenar ciência o postulado de que o masculino genericamente afirmado abrange seres de ambos os gêneros. Veja-se, apenas para exemplo, que, no tradicional raciocínio lógico de silogismo, quando se afiança, na premissa maior, que todo homem é mortal, nem por isso se está excluindo a mulher desse rol dos mortais, nem, muito menos, se está pretendendo consagrar a imortalidade feminina. O direito romano, aliás, pela voz do jurisconsulto Gaio, já ponderava que se continham na denominação homem tanto o masculino quanto o feminino41. No Digesto, de igual modo, se insculpia42 que a enunciação de um vocábulo no masculino fazia estender sua compreensão também ao outro sexo43. Assim também sempre se entendeu no direito pátrio, como se pode verificar pelos Axiomas de Barbosa Lusitano e pelas Regras de

Direito de Correia Teles.44

Carlos Maximiliano, um século atrás aproximadamente, já lecionava que, “quando um texto menciona o gênero, presumem-se incluídas as espécies respectivas”, de modo que, “se faz referência ao masculino, abrange o feminino”. E acrescentava tal autor em outra passagem: “Em geral, as normas são redigidas como se referindo ao masculino, o que não impede de as aplicar, em regra, ao feminino também: por exemplo, aludindo a filho, ou filhos, compreendem-se como amparando a filha, ou as filhas”.45

Em continuação, seguindo o mesmo critério que ocasionou a alteração anterior, o artigo 2° do novo Código registra que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Em vez de personalidade da pessoa, o velho dispositivo falava em personalidade

do homem.

41 No original: “Hominis appellatione tam foeminam quam masculum contineri”.

42 Cf. DE PLÁCIDO E SILVA, Oscar José. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. 2, p. 386. 43 No original: “Pronunciatio sermonis in sexu masculino ad utrumque sexum porrigitur”.

44 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Edição histórica. Rio de

Janeiro: Editora Rio, 1975. v. 1, p. 171.

45 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965. p.

No caso, ainda que, ciente do rigor técnico da redação do legislador de 1916 e da integral correção do texto da legislação primeira, quisesse o codificador de 2002 expulsar do léxico do novo Código o termo homem para abarcar seres de ambos os sexos, tinha ele a seu dispor expressões mais felizes, por configurarem sinônimas perfeitas, como ente humano ou

ser humano, ambas mais indicativas do gênero humano.46

A discussão nesse sentido não é nova, e alguns elementos históricos podem trazer aspectos que permitam elucidar com mais clareza o assunto. O Projeto do Código de 1916, tal como aprovado pela Câmara dos Deputados, registrava todo ser humano nos dispositivos referidos. Por emenda de Rui Barbosa, todavia, em seu Parecer no Senado, acabou-se alterando para todo homem. Diversa não foi a elaboração dos artigos 1º e 2º do novo Código Civil, em que o Projeto 634, redigido pelo Ministro Moreira Alves, consignava, respectivamente, as expressões todo homem e personalidade civil do homem, e assim foi o texto aprovado pela Câmara dos Deputados. Emenda do Senador Josaphat Marinho, todavia, sob o falso argumento de que o vocábulo homem já não era claramente indicativo da espécie humana, vale dizer, também da mulher, propôs a alteração para todo ser humano e

personalidade civil do ser humano. De volta o projeto à Câmara dos Deputados, o parecer do relator parcial para a parte geral, Deputado Bonifácio de Andrada, opinou pela rejeição da emenda, por se haver elegido expressão consagrada no ordenamento jurídico, posição essa que obteve o aval do relator geral, Deputado Ricardo Fiuza. Após intenso debate, todavia, o Professor Miguel Reale, em audiência pública perante a Comissão Especial, sugeriu constasse

pessoa em lugar de ser humano, e assim acabou obtendo o texto aprovação final na Câmara dos Deputados.

Com a devida vênia do saudoso coordenador da comissão elaboradora do Código, todavia, o termo pessoa era o menos indicado para a pretendida modificação. Primeiro, porque tecnicamente diz menos do que homem, do que ente humano e do que ser humano. Introduziu-se, no caso, uma acepção vulgar de pessoa como sinônimo de ser humano, contrariando a própria técnica jurídica. Veja-se, por um lado, que, se “a personalidade civil

da pessoa começa do nascimento com vida” (CC, art. 2º), não se pode dizer, tecnicamente, que a pessoa exista antes de tal termo; por outro lado, se “a existência da pessoa natural

termina com a morte” (CC, art. 6º), então se pode delimitar que a pessoa existe entre os

46 Cf. DINIZ, Maria Helena. Novo Código Civil comentado. Coordenação de Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva,

termos nascimento e morte. Ora, o nascituro é um ser humano já concebido, mas não nascido. O morto, por outro lado, é um ser humano que encerrou seu ciclo de vida aqui. Por conseqüência, a pessoa é um ser humano entre seu nascimento e sua morte. Nesse quadro, vê- se com facilidade que os direitos reconhecidos ao nascituro, a determinados casos de desvios da forma corpórea, ao corpo do falecido e a sua memória não advêm senão de uma acepção mais compreensiva e abrangente do ser humano em sua totalidade e plenitude, função essa que o vocábulo pessoa não pode preencher. E não importam, neste raciocínio, os argumentos objetivos de que os direitos reconhecidos de modo específico aos primeiros emanem da parte final do artigo 2º do novo Código Civil, nem que os direitos que assistem aos demais se insiram em disposições outras, protegidas até mesmo por sanções de natureza penal.

Mas não é só: a contra-indicação do vocábulo referido para tal despicienda modificação mais se patenteia, quando se nota que tanto pessoa quanto personalidade têm sua origem na mesma palavra latina persona. Ou seja: quando falou em personalidade da pessoa (CC, art. 2°), incidiu o legislador em uma daquelas expressões equivocadas e redundantes, vindas de mesmo radical, portadoras de tautologia, ou pleonasmo vicioso. Muito embora

pessoa e personalidade sejam substantivos, o certo é que, na estrutura sintática do período, a expressão da pessoa se acopla ao substantivo personalidade como locução que equivale a um adjetivo, emparelhando-se a torneios tais como ação acionada, processo processado,

inventário inventariado, ou algo similar47. Ao se postar contra o emprego de expressões como

uso abusivo, o gramático Domingos Paschoal Cegalla leciona que não se devem juntar vocábulos de mesmo radical em tais circunstâncias48. Houvesse, no Congresso de 2002, um cuidadoso Rui Barbosa a digladiar com seu mestre Ernesto Carneiro Ribeiro, talvez não houvesse uma polêmica digna de uma resultante Réplica, mas com certeza resultaria o novo Código Civil como peça de melhor redação.

Não se quer, com essas observações, embaçar o mérito que vem sendo ressaltado em loas infindáveis à edição do novo Código, até porque se está ciente de que os vícios da linguagem legal são um mal endêmico nos Estados contemporâneos, uma deformação da

47 Cf. COSTA, José Maria da. Manual de redação profissional. Campinas: Millennium, 2002. p. 1.119.

48 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro:

relação de comunicação entre o poder e os cidadãos, que o Estado ainda não arrostou de modo adequado.49

Todavia, quando se dá com essa característica acumulação de pequenos vícios de clareza, de precisão e de afronta à Gramática, que ocorre, de um modo geral, nos textos de lei, sabe-se que, como, em substanciosa monografia, bem lembrou Jesús Prieto de Pedro, seus sintomas não são tanto uma questão de febre alta, mas ocasional. E a questão, todavia, é que essa somatória de pequenos vícios pode vir a formar uma cortina de obscuridade contra a própria capacidade do cidadão para entender o que, em última análise, dizem as leis.50

49 Cf. PRIETO, Jesús Prieto de. Lenguas, lenguaje y derecho. Madrid: Civitas, 1991. p. 152-153. 50 Ibidem, p. 151.