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Em 1867, menos de vinte anos após o início de vigência do Código Comercial de 1850, uma vez designado por decreto imperial de 1859, Augusto Teixeira de Freitas, em vez de uma reforma ou substituição do Código Comercial por outro mais moderno, preconizava a unificação do direito privado por intermédio da consolidação da legislação civil. Propôs a elaboração de dois diplomas: um geral, que abrangesse as regras relativas às pessoas, bens, fatos e efeitos jurídicos, e que unificasse o direito público e o direito privado; outro, chamado civil, que regulasse a matéria sobre os efeitos civis, os direitos pessoais e os direitos reais, e incluísse a matéria comercial. Adoentando seu autor, o trabalho paralisou.

No início do período republicano, em 1889, Coelho Rodrigues foi escolhido para elaborar o projeto de codificação das leis civis, juntando, assim, todo o direito privado, incluindo a matéria comercial. Com parecer contrário da Comissão Revisora, o trabalho não teve seqüência.

Em 1898, durante o governo de Campos Sales, deu-se nova tentativa de organização da legislação civil, desta feita excluindo de seu âmbito a matéria comercial. Preservando a autonomia do direito comercial, Clóvis Beviláqua apresentou seu projeto de Código Civil, que excluiu a matéria comercial e se consolidou no Código Civil de 1916, recentemente substituído pelo de 2002.

Pelo Decreto n. 2.378, de 4 de janeiro de 1911, Inglês de Souza – favorável à unificação do direito privado – foi autorizado a transformar o projeto de elaboração de um novo Código Comercial em projeto de Código de Direito Privado. Em seu trabalho, todavia, ampliou ele de tal sorte a matéria comercial dentro do projeto, que quase nada restou para ser regulado pela matéria de natureza civil. Apresentado ao Congresso Nacional, ali permaneceu por dezoito anos, até 1930, e não vingou, apesar do aperfeiçoamento técnico que recebeu em razão das emendas propostas.

Com a Revolução de 1930, que depôs o Presidente Washington Luís e dissolveu o Congresso, instalado o Governo Provisório, nomeou-se, pelo Decreto n. 19.459, de 6 de dezembro de 1930, uma comissão para elaborar nova lei; mas não se chegou a resultado

algum, sobretudo porque o Legislativo acabou sendo fechado no período, com a conseqüente abundante legislação de exceção.

Em 1936, a Câmara dos Deputados também nomeou comissão especial para elaborar novo projeto de Código Comercial. Todavia, com o fechamento do Legislativo em 1937, o trabalho somente retornou à apreciação do Congresso Nacional em 1946, quando da volta à normalidade institucional.

A partir dos modelos de Códigos das Obrigações da Suíça (1881), Turquia (1926), Líbano (1932) e Polônia (1933), países esses em que continuaram a viger os respectivos códigos comerciais, surgiu em nosso país, em 1941, a idéia de um anteprojeto de Código das Obrigações, e isso num trabalho elaborado em conjunto por Philadelpho Azevedo, Hahnemann Guimarães e Orosimbo Nonato, respeitando, todavia a intangibilidade da matéria comercial. Fruto dessa elaboração doutrinária, em 1949, Florêncio de Abreu foi escolhido para compor um anteprojeto, que não chegou a ser concluído.

Em 1950, sob a presidência do Marechal Eurico Gaspar Dutra, foi nomeada comissão para construir projeto de reforma do Código Comercial. Havia o estímulo adicional de comemorar o centenário de promulgação do código vigente com a reforma à altura da importante obra jurídica. Todavia Getúlio Vargas, de volta ao poder, no início de seu último governo, não o prestigiou e nomeou Francisco Campos para organizar novo projeto.

Com o Decreto n. 5.005, de 10.07.1961, Jânio Quadros nomeou Comissão de Estudos Legislativos para elaborar anteprojeto de Código de Obrigações integrada por Castro Rebelo (para tratar da parte relativa à navegação), Teóphilo Azeredo dos Santos (para os títulos de crédito), Sílvio Marcondes (para as sociedades comerciais) e Caio Mário da Silva Pereira (para a parte das obrigações). Mesmo renunciando o Presidente da República e sobrevindo um estado de exceção, a motivação não arrefeceu, e, com o estudo pronto, o trabalho foi enviado pelo Executivo ao Legislativo, resultando no Projeto de Lei n. 3.264 de 1965.

Houve outra tentativa durante o governo militar, sendo presidente o Marechal Castelo Branco, quando foi nomeada nova comissão, sob o argumento de que o tratamento conferido à matéria estaria desatualizado. Novo anteprojeto foi elaborado por comissão

integrada por Orosimbo Nonato, Caio Mário da Silva Pereira, Orlando Gomes, Sílvio Marcondes, Nehemias Gueiros e Theóphilo Azeredo dos Santos. Meses depois, ainda no governo do mesmo mandatário, por força da prioridade conferida ao projeto de revisão do Código Civil, foi preterido o estudo do Código das Obrigações. Os dois projetos acabaram encalhando.

Em síntese, como se verifica, não vingou nenhuma das iniciativas assim encetadas nesse sentido.

4.3 Pequenas observações

Em termos de uma análise do perfil de evolução da matéria, pode-se anotar que, muito embora tenha nascido no bojo do direito civil, onde hauriu conceitos de base, como vontade, pessoa, personalidade, obrigações, coisas e bens, o direito comercial foi, ao longo do tempo, adquirindo autonomia, em decorrência do conseqüente progresso econômico, com o surgimento de aspectos como os títulos de crédito e as sociedades, tornando mais complexas as relações pessoais e sociais. Chegou-se, por fim, à personalidade jurídica da sociedade, distinta da de seus sócios, com o que se pensou haver chegado a sua definitiva consagração como área independente do Direito. O legislador brasileiro, contudo, preferiu, mesmo assim, proceder à unificação.

Quanto à razão de sua ocorrência, alguns doutrinadores levantam a hipótese de que o principal motivo da unificação, ou, ainda, do reencontro de matérias, teria sido a necessidade premente de atualizar o Código Comercial, aproveitando os esforços de elaboração e aprovação do novo Código Civil brasileiro.51

Por fim, no que diz respeito às origens históricas e aos precedentes da unificação da matéria empresarial em nosso país, é oportuno salientar que o Código Civil de 2002 bebe claramente nas águas do Código Civil italiano de 1942. Diferentemente do modelo, contudo, não arrola as atividades consideradas empresariais ou mercantilistas, mas deixa a cargo do intérprete o exercício de enquadrar as diversas hipóteses de fato no conceito geral do artigo 966.

51 PIRES, Antonio Cecílio Moreira; WIEGERINCK, João Antonio. O direito societário e as alterações

4.4 Abrangência da unificação

Querem alguns ver, na inserção do Direito de Empresa no Código Civil de 2002, o fim da histórica dicotomia do direito privado e sua total unificação, ao extinguir a noção de comerciante, a dualidade de tratamento das obrigações e de diversos tipos contratuais e, por fim, ao extinguir as sociedades comerciais, ao menos com tal denominação52. Para tais autores, a teoria da empresa, assim, até mesmo teria posto fim à dicotomia civil e comercial.53

Uma atenta análise revela, porém, que o Código Civil de 2002 não realiza propriamente a unificação do direito privado, mas une tão-somente o direito das obrigações, findando com a dicotomia entre obrigações civis e obrigações comerciais, mediante a introdução do novo livro “Do Direito de Empresa”.

É de mister que se fixe, assim, a premissa de que a junção da matéria comercial com a civil, em tratamento único dispensado pelo Código de 2002, constituiu não propriamente a unificação do direito privado, mas sim do direito das obrigações, justificada pelo Coordenador da equipe de elaboração com a obsolescência do Código Comercial de 1850.54

Assim, conforme síntese de Vinícius José Marques Gontijo, “o Código Civil atual não unificou o Direito Privado, mantendo a dicotomia do Direito Empresarial e do Direito Civil, mantendo diversidade de regulamentos, princípios, institutos, etc.”55

O próprio presidente da comissão organizadora do Código Civil de 2002, por mais de uma vez, foi taxativo para explicitar que a intenção jamais foi realizar propriamente a unificação do direito privado, mas sim do direito das obrigações.56 E uma análise adequada do proceder legislativo evidencia que a unificação realizada não veio para implantar um Código de Direito Privado, de modo que muita matéria privatista escapa, com efeito, de seu plano. Vale dizer: a unificação, em suma, significa apenas uma justaposição formal, em mesmo diploma, da matéria civil e da matéria comercial, esta apenas na extensão já noticiada.

52 CAVALLI, Cássio Machado, O direito da empresa no novo Código Civil, cit., p. 44. 53 Ibidem, p. 58 e 74.

54 Cf. REALE, Miguel, Visão geral do novo Código Civil, cit., p. 13.

55 Cf. GONTIJO, Vinícius José Marques. O empresário no Código Civil Brasileiro. Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, Malheiros, v. 135, p. 85. jul./set. 2004.

4.5 Preponderância entre os componentes

Independentemente de qual seja a amplitude da unificação entre as matérias civil e comercial, é imprescindível partir da premissa de que distintos são os princípios, a dinâmica e muitos outros aspectos de ambas, o que conduz a uma necessária e aprofundada reflexão sobre como se há de dar essa simbiose entre tais ramos.

Por um lado, é certo que “a economia mundial veio assumindo sempre mais marcadamente os caracteres de uma economia global, que tende a superar os confins políticos dos Estados e a reduzir o planeta à unidade econômica”.57

Nesse plano, o quadro que se desenha à nossa frente, no mundo de hoje, mostra que as grandes empresas assumem dimensões mundiais, de modo que os Estados soberanos, por potentes que sejam, não são mais tão soberanos como no passado e não governam senão um minúsculo fragmento do mercado global. Enquanto isso, as multinacionais assumem tal porte, que o controlam em sua inteireza: montam suas unidades de produção diretamente sobre os mercados de consumo dos produtos; articulam em países diversos, conforme critérios de conveniência; fragmentam as diversas fases e setores de sua atividade, auferindo vantagem das diversas oportunidades que possam encontrar, como, por exemplo, o mais vantajoso mercado de trabalho, o mais adequado mercado de capitais, o mais benéfico sistema fiscal, o menor risco e o maior lucro.

Exatamente nessa esteira, autores há que defendem a posição de que a unificação, no caso, não foi determinada pelo direito civil, mas configurou conseqüência da crescente influência do direito comercial, que teve como resultado uma decidida invasão e domínio sobre o direito civil.58

Talvez nesse sentido fosse a lembrança de Georges Ripert de que o mote da maioria das discussões acerca da unificação do direito das obrigações gira em torno da

comercialização do direito (“commercialisation du droit”), vale dizer, cinge-se a verificar se

57 Cf. GALGANO, Francesco, Lex mercatoria, cit., p. 227.

58 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 24. ed. atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo:

os princípios nascidos e desenvolvidos no seio do direito especial se espraiaram para o restante do ordenamento.59

É preciso ter em mente que, embora constituam ramos do direito privado, o direito civil e o direito comercial têm natureza e fins distintos, razão por que não são norteados pelos mesmos princípios. Se não houver atenção para esse aspecto, poder-se-á cair na tentação da mesma proposta que, nos anos trintas, dividiu os juristas soviéticos sobre o tema “direito econômico”, havendo mesmo quem, de modo pragmático, propugnasse “a substituição do direito civil pelo direito econômico”. A quantos assim preconizavam, Visinski acusava de haverem “feito do ser vivente, com seus direitos pessoais e patrimoniais, um acessório do mecanismo econômico”, de não compreenderem que, em realidade, “o socialismo postula o desenvolvimento e o fortalecimento dos direitos pessoais e patrimoniais dos trabalhadores”, e, por fim, de ignorarem “a importância da propriedade individual”, do que resultava a imprescindível e urgente necessidade de “criar o mais rapidamente um novo código civil”.60

Vale dizer: sob pena de graves sacrifícios à noção do que sejam os direitos concernentes à individualidade do homem e ao conjunto de regras que deve regê-lo em seu relacionamento com seus semelhantes, não se pode reduzir o problema, quando dessa unificação, a uma simples equação econômica.

Por outro lado, não se pode olvidar que uma mola propulsora do direito comercial mostra que, quanto maior o grau de segurança e de previsibilidade jurídicas advindas do sistema, mais azeitado o fluxo das relações econômicas, já que a relação entre segurança, previsibilidade e funcionamento do sistema é a razão determinante da própria gênese do direito comercial.

À luz de um postulado como esse, verifica-se que, se não houver uma visão conjunta dos ramos que se unificam, questões sérias hão de vir na aplicação das disposições da lei, sobretudo quando se está em presença de um direito civil mais e mais impregnado com duas outras preocupações: com o meio ambiente e com o consumidor. Em síntese: uma preocupação exclusivista com essas duas questões há de inviabilizar o desenvolvimento da

59 RIPERT, Georges. Aspects juridiques du capitalisme moderne. Paris: LGDJ, 1946. p. 330 e seguintes. 60 Cf. GALGANO, Francesco, Lex mercatoria, cit., p. 227.

atividade comercial; e uma proteção excessiva desta última há de abafar as conquistas que vêm sendo arduamente galgadas por aqueles.

É pertinente observar aqui que a relação entre o direito comercial e o direito civil, conforme ensino de Francesco Galgano, não deve ser posta em uma visão sincrônica do direito privado, apenas em uma relação ratione materiae, mas sim em uma perspectiva diacrônica, em que o direito comercial aparece como inovação jurídica introduzida na regulação das relações econômicas, no que tange à regulação especial que, nas diversas épocas históricas, a classe mercantil diretamente criou ou pretendeu do Estado, regras essas freqüentemente destinadas a se traduzirem, nas épocas sucessivas, nas normas de direito civil. E lembra tal autor a advertência de E. B. Pasukanis: “o direito comercial, com respeito ao direito civil, cumpre a mesma função a que é chamado a cumprir o direito civil em relação a todos os outros setores; ou seja, aquele indica a este a via do desenvolvimento”.61

Se não houver uma efetiva visão sistêmica das matérias unificadas, o caminho será uma possível deterioração exegética, com prejuízo para ambas e sem a obtenção das melhorias pretendidas com a reformulação. Aí, então, se deverá conferir razão àqueles que tomam um ensino de Tullio Ascarelli como verdadeira profecia de mau agouro. O mestre bolonhês, em certa oportunidade, asseverou que, no Brasil, por ser o Código Civil de 1916 mais moderno que o Código Comercial de 1850, teria havido aqui uma civilização do direito

comercial62. Tal ensino, segundo alguns, seria predição do futuro em que houve a unificação, sobretudo se se trocar a palavra civilização por consumerização63. Ou, ainda, por

ambientalização, ou por qualquer outra preocupação maior ou influência exercida sobre o direito civil pátrio.