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A legislação processual confere a capacidade para estar em juízo a “toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos” (CPC, art. 7º). Deflui com facilidade dessa determinação da lei, a regra basilar de que a capacidade para estar em juízo vincula-se normalmente à existência da personalidade. Desse modo, somente pessoas, quer físicas, quer jurídicas, detêm capacidade para figurar como partes em processo judicial.

No que concerne ao direito empresarial, calha aqui lembrar a lição de Fábio Ulhoa Coelho, para quem “a personalização da sociedade empresária importa a definição da sua legitimidade para demandar e ser demandada em juízo”249. Fixa-se, desse modo, como princípio: a legitimidade para demandar costumeiramente se vincula à personalização da sociedade.

Por outro lado, o Código de Processo Civil, no artigo 12, incisos III, IV, V, VII e IX, permite que entidades despidas de personalidade jurídica estejam em juízo, quer ativa, quer passivamente, e até mesmo aponta por quem haverão de ser representadas em demandas judiciais: a massa falida, pelo síndico; a herança jacente ou vacante, por seu curador; o espólio, pelo inventariante; as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração dos seus bens; o condomínio, pelo administrador ou pelo síndico. E não é exaustivo o rol dessa determinação processual, porquanto se tem conferido a possibilidade de figurar como parte em juízo a outros entes despersonalizados, como as mesas dos corpos legislativos em ações de mandado de segurança.250

Anote-se, por um lado, que capacidade processual para ser parte constitui realidade mais ampla do que a capacidade jurídica do direito civil, razão pela qual, como se observou, podem eventualmente comparecer em juízo, como autores ou réus, certas coletividades ou organismos não personalizados251, casos em que tais entidades se vestem do que se convencionou denominar personalidade judiciária, atributo esse menos amplo do que personalidade jurídica.

De acordo com Celso Agrícola Barbi, para quem a capacidade para ser parte normalmente se liga à existência de personalidade jurídica, “a lei processual pode atribuir aquela capacidade a figuras que não têm essa personalidade”, conferindo-lhe, assim, a capacidade para ser parte252, o que gerou preciosa síntese de Vítor Nunes Leal: “nem sempre a personalidade jurídica é indispensável à existência da personalidade judiciária.”253

249 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial, 5. ed., 2002, cit., v. 2, p. 14. 250 TACRS

− Apelação n. 192115103, 3ª Câmara, rel. Juiz Arnaldo Rizzardo, j. 17.6.1992, Revista dos

Tribunais, São Paulo, ano 81, v. 686, p. 168, dez. 1992.

251 Ibidem, mesma página.

252 BARBI, Celso Agricola. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1975. v. 1, t. 1,

p. 149-150.

Por isso, esses entes não são pessoas jurídicas; “mas são partes no processo”, em casos claros de que, “mesmo em nosso direito positivo, a personalidade judiciária é independente da personalidade jurídica, muito embora a personalidade jurídica se complete sempre com a judiciária”.254

Mostra bem esse fato Pedro Paulo Cristófaro, quando refere que os entes dos incisos III, IV, V, VII e IX do artigo 12 do Código de Processo Civil “dispõem de uma capacidade limitada, podendo atuar em juízo, nele praticando todos os atos que são próprios das pessoas, sem que, porém, se lhes reconheça personalidade jurídica”.255

Feitas essas ponderações genéricas, a indagação que se põe é se a sociedade em conta de participação pode estar em juízo, ativa ou passivamente, para figurar como parte em demanda judicial. E a resposta que normalmente se tem dado a essa questão, até com argumento de autoridade, é que tal sociedade não tem legitimatio ad causam nem ad

processum para estar em juízo, ativa ou passivamente, como, aliás, já acentuava Moliérac256 e como entende majoritariamente a doutrina na atualidade257, e isso sem maiores divergências.258

Dizer, porém, apenas que a sociedade em conta de participação não pode estar em juízo para ajuizar ação nem para se defender é afirmação simplista, que não chega às reais causas do problema. Também só afirmar que ela não se arrola entre os entes despersonalizados a que o ordenamento confere personalidade judiciária e, assim, uma excepcional capacidade para estar em juízo, é posição que não traz justificativas e não explica, por exemplo, o motivo de conceder personalidade judiciária a outros entes despersonalizados (como a massa falida, a herança jacente ou vacante, o espólio, as sociedades sem personalidade jurídica e o condomínio), e sonegá-la à sociedade em conta de participação. Por outro lado, justificar a sonegação de legitimação processual para a conta de participação a pretexto de ausência de patrimônio também constitui argumento frágil, que

254 LEAL, Victor Nunes, Problemas de direito público, cit., p. 427-429.

255 CRISTÓFARO, Pedro Paulo. Consórcios de sociedades: validade e eficácia dos atos jurídicos praticados por

seus administradores, nessa qualidade: titularidade dos direitos e das obrigações deles decorrentes. Revista de

Direito Mercantil Industrial Econômico e Financeiro, São Paulo, Nova série, v. 20, n. 44, p. 19, out./dez. 1981.

256 MÉLEGA, Luiz, As sociedades em conta de participação e o imposto sobre a renda, cit., p. 56. 257 Cf. ALMEIDA, Carlos Guimarães de, A virtuosidade da sociedade em conta de participação, cit., p. 7. 258 ACETI JÚNIOR, Luiz Carlos; REIS, Maria Flávia Curtolo, Sociedade em conta de participação, cit., p. 738.

esbarra na realidade de existência de outros entes despersonalizados e faltos de patrimônio, como as mesas dos corpos legislativos, aos quais se concede personalidade judiciária para ações de mandado de segurança.

O que parece de mister esclarecer, no caso, é que a conta de participação é uma sociedade ad intra, voltada para seus sócios e existente apenas entre eles. O sócio ostensivo contrata e aparece em nome próprio, e age por própria conta e risco. Se credores ou devedores, os sócios participantes o são em nome pessoal e individual, jamais da sociedade em si. Exatamente por isso, nunca se pode afirmar a existência de um interesse jurídico da sociedade a ser defendido como tal em juízo. Também jamais poderá haver, em situação de regularidade social, um interesse de terceiros contra a sociedade em si, até pelo argumento de que, para eles, ela não existe. Assim, não se há de falar em demanda a ser proposta pela sociedade ou contra a sociedade. Em ambos os casos – de ajuizamento de ação ou de contestação – a natureza e a estrutura da sociedade em conta de participação não permitem que uma demanda por ela ajuizada ou contra ela aforada ultrapasse sequer o juízo de sua admissibilidade, por ausência de condição da ação representada pela legitimidade de parte.

Mas não é só: o artigo 12, VII, do Código de Processo Civil determina que a sociedade sem personalidade jurídica será representada em juízo, ativa ou passivamente, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens. Por um lado, a sociedade em conta de participação enquadra-se perfeitamente na expressão “sociedade sem personalidade jurídica”. Por outro lado, entretanto, muito embora o ordenamento civil determine que, nessa espécie societária, “a contribuição do sócio participante constitui, com a do sócio ostensivo, patrimônio especial” (CC, art. 994, caput), a mesma lei esclarece, na seqüência, que “a especialização patrimonial somente produz efeitos em relação aos sócios” (CC, art. 994, § 1º). Vale dizer: ainda que se queira entrever um patrimônio social na sociedade em conta de participação, esse patrimônio apenas tem valor entre os sócios, e não perante terceiros. Para qualquer terceiro que queira ajuizar uma demanda ou que a sociedade intente acionar, a especialização patrimonial não produz efeitos, de modo que o pretenso patrimônio social não existe para os terceiros. Se não há patrimônio social perante terceiros, de nenhum valor ou eficácia será, perante eles, a afirmação acerca da existência de uma pessoa a quem caiba a administração dos bens da sociedade. A conta de participação, além de sociedade ad intra, é uma sociedade sem bens. Falar de administração será, em última análise, falar de gerenciamento de bens inexistentes. Uma contradição nos termos da própria afirmação.

Por isso, em resumo, ainda sob esse segundo aspecto, não há como fazer incidir a regra do artigo 12, VII, do Código de Processo Civil, no mínimo porque a sociedade em conta de participação não tem patrimônio próprio e, assim, não há como afirmar a existência de administrador de bens próprios dela. E mais: por não existir perante terceiros, como sociedade e como patrimônio, não tem ela como garantir eventuais demandas. Assim, uma ação por ela ajuizada ou contra ela proposta não ultrapassaria, de igual modo, o juízo de sua admissibilidade, agora por ausência de interesse de agir.

Desse modo, em síntese, porque nessa modalidade societária o contrato social produz efeito somente entre os sócios (CC, art. 993), e a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual (CC, art. 991) e por própria conta e risco, se a sociedade tiver que demandar ou ser demandada, a legitimidade ativa ou passiva para fazê-lo será unicamente do sócio ostensivo.

Por outro lado, se os sócios participantes tiverem algum direito a questionar, ou contra qualquer deles individualmente houver algum direito a ser discutido, haverão eles de se fazer presentes em juízo pessoalmente e em nome próprio individual, já que, em tais circunstâncias, eles serão pessoalmente credores ou devedores de terceiros.

Sintetizou, aliás, nesse aspecto, o colendo Superior Tribunal de Justiça que não há possibilidade alguma, em termos processuais, de se intentar uma citação da sociedade em conta de participação para uma demanda judicial de qualquer natureza, já que ela não tem personalidade jurídica nem existência perante terceiros.259