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CAPÍTULO 1 – O CONCEITO DE MOBILIDADE URBANA E SUAS RELAÇÕES COM A TERAPIA OCUPACIONAL

1.2 CIRCULAÇÃO E MOBILIDADE URBANA COTIDIANA: DO QUE ESTAMOS FALANDO?

O gueto, a rua, a fé Eu vou andando a pé pela cidade bonita O toque do afroxé e a força de onde vem Ninguém explica (ela é bonita) (Canto da cidade. Daniela Mercury)

Diante do entendimento do direito à cidade como fundamental ao exercício de cidadania e da imprescindibilidade de se poder circular pela cidade para a sua efetivação, apresentamos mais detalhadamente o conceito de mobilidade urbana.

Trata-se de conceito utilizado por diferentes áreas do conhecimento - geografia, urbanismo, engenharia, ciências sociais -, o qual tem sido empregado em diversas publicações atuais. São várias as definições que podem ser encontradas sobre esse termo e destaca-se que nem dentro de um mesmo campo de estudo é algo consensual.

Barros (2014) afirma que o interesse de diferentes áreas pela temática se dá pelo “fato de a mobilidade urbana ser um tema que afeta todos os indivíduos” (p.2).

Tradicionalmente os estudos sobre a mobilidade urbana se concentram no campo da engenharia e do urbanismo (FLORENTINO, 2011), com um enfoque voltado para as questões relacionadas ao trânsito e ao transporte.

Independente da disciplina e do enfoque dado ao estudo da mobilidade urbana, é consenso que ela faz parte do cotidiano de todos os indivíduos e coletivos, seja nas grandes ou pequenas cidades, ou nas áreas rurais. Sendo essencial ao cotidiano das pessoas, é um objeto sobre o qual as ciências humanas e sociais devem se debruçar. Entretanto, os estudos sobre seus impactos sociais neste campo, assim como as abordagens multidisciplinares sobre a questão, ainda são incipientes (BARROS, 2014; FLORENTINO, 2011; LANGEVANG; GOUGH, 2009). É neste sentido que buscamos trazer diversas definições e a relação entre elas, na tentativa de construções de um conceito para o que buscamos entender, no bojo dos interesses de nosso estudo.

A ausência da visão relacional que possa agregar perspectivas para se estudar um objeto, torna-o, na maioria das vezes, incompletos, incoerentes ou raso. A soma de olhares poderias ser uma estratégia para tornar mais sólidas as leituras (BARROS, 2014, p. 3)

Existe um sentido tradicional da mobilidade urbana que a entende como a habilidade de se movimentar, em decorrência de condições físicas e econômicas (VASCONCELLOS; JUNQUEIRA, 1999). Para o Ministério das Cidades (BRASIL, 2005), é a “facilidade de deslocamentos de pessoas e bens no espaço urbano” (p.3), sendo considerada mais do que apenas os meios de transporte, mas também os serviços e os meios de se deslocar.

Porém, o que buscamos nesse trabalho é um sentido ainda mais ampliado na discussão do conceito. Barbosa (2016) destaca que não se pode entender a mobilidade urbana apenas como as questões objetivas relacionadas à locomoção, mas que é preciso perceber que está “intimamente ligada às expressões subjetivas de reprodução urbana das relações sociais” (p.49).

Segundo Balbim (2016), nas ciências sociais, mobilidade urbana “designaria o conjunto de motivações, possibilidades e constrangimentos que influem tanto na projeção, quanto na realização dos deslocamentos de pessoas, bens e ideias, além,

evidentemente, dos movimentos em si” (p.24). Para este autor, trata-se de uma atualização e ampliação deste conceito, que até então era relacionado apenas com a questão do transporte, da acessibilidade e da circulação de pessoas.

Pretende-se, ao usar o termo mobilidade, referir-se a uma noção que supera a ideia de traslado físico apenas e analisa também as suas causas e consequências, ou seja, busca olhar para as transformações sociais relacionadas ao movimento (BALBIM, 2016). Engloba, para além dos deslocamentos físicos, suas significações e práticas para os sujeitos (ADEY, 2006; LANGEVANG; GOUGH, 2009; SOUZA, 2014). Para Sabegnago (2018), a mobilidade “se constitui em uma prática social através do tempo e do espaço, o que possibilita o acesso a atividades, experiências, pessoas e lugares. Envolve aspectos corporais, interacionais, simbólicos e afetivos” (p.20). Assim, esse novo conceito de mobilidade urbana se debruça sobre problemáticas sociais que interessam às ciências humanas e sociais e, conforme discutiremos mais adiante, à terapia ocupacional.

Já o conceito de circulação, presente em publicações na discussão sobre a vida urbana, pode ser considerado como uma “parte” da mobilidade, uma “condição estrutural importante, mas apenas preliminar, na garantia do direito à mobilidade” (SILVA J. S. et al., 2016, p.186). Circular pela cidade é o passo inicial para que os sujeitos e coletivos comecem a conhecê-la, seus diferentes espaços e trajetos, para que, posteriormente, possam ocupá-la e apropriar-se dela. A circulação é importante para o início dos processos coletivos da vida cotidiana (CASSAB; MENDES, 2011; CASTRO, 2004). Neste entendimento, somente pela circulação é possível iniciar um movimento de apropriação do espaço, o que é essencial à efetivação da mobilidade.

Em contraponto, Magalhães (2008) afirma que a circulação unicamente já é uma forma de apropriação do espaço, embora outros autores possam avaliar que para se considerar uma apropriação é preciso que haja também uma intervenção no espaço. O ponto de vista dessa autora é que circular, transitar ou se deslocar por determinado espaço permite conhecê-lo. Contudo, como a apropriação de uma experiência é individual e subjetiva, cada um a fará de um jeito, no seu tempo, não sendo possível, dessa forma, “medir níveis” de apropriação.

É neste sentido mais amplo do conceito de mobilidade urbana que passamos a entendê-la como um direito social fundamental, pois é através da mobilidade (e da circulação que a compõe) que podemos buscar promover a participação ativa e democrática da população no desenvolvimento local, sendo, portanto, um importante recurso ou capital social (PERO; MIHESSEN, 2013; SOUZA, 2014).

Diversos autores (BALBIM, 2016; CASSAB, 2009; CASSAB; MENDES, 2011; CASTRO, 2004; LEITE; MACHADO DA SILVA, 2013; SILVA, J.R. et al., 2016; VELOSO; SANTIAGO, 2017) são enfáticos ao afirmar que o direito à circulação pela cidade, e consequentemente à mobilidade, não é igual para todos. Cresswell (2010) e Silva Junior (2013) dizem que, desde a pré-história, o sistema de circulação é um elemento fundamental para o exercício do poder pelas classes dominantes – quem possui maior domínio sobre a regulamentação da mobilidade e maior possibilidade de circulação, possui mais poder.

Podemos afirmar que são diversos os fatores que influem na mobilidade urbana: classe social, local de moradia, gênero, contexto político, cultura, religião, idade, violência, estigmas, contexto simbólico e acessibilidade. Sobre tais fatores, podemos pormenorizar alguns deles. Com relação à classe social, tem-se que quanto maior a renda do indivíduo ou de sua família, maior a mobilidade das pessoas, já que é preciso pagar pelo transporte, seja ele público ou privado. Tal fator se relaciona diretamente com o local de moradia: classes sociais mais desfavorecidas economicamente, que possuem menor renda, acabam estabelecendo suas residências em locais periféricos da cidade que, além de mais distantes dos centros econômicos e locais de maior oferta de serviços, possuem pior qualidade e oferta de transporte público, além de menos infraestrutura urbana, como calçadas adequadas, ruas asfaltadas e ciclovias.

A acessibilidade também é menor nesses locais, assim como os transportes adaptados para as pessoas com deficiência, que em geral já têm a mobilidade reduzida. O mesmo acontece com os idosos. Mulheres apresentam mais restrições de mobilidade do que os homens, por medo da violência de gênero e sexual, que impõe limitações nos horários de retorno à casa e a necessidade de estar acompanhada para se sentirem mais seguras, por exemplo (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS TRANSPORTES PÚBLICOS, [s.d.]). O fato de o transporte público funcionar com maior frequência até certo horário

da noite e nos dias úteis restringe que moradores de regiões mais distantes saiam de suas casas para outros lados da cidade para a realização de atividades de lazer à noite ou aos fins de semana. Ou seja, o deslocamento de alguns grupos da população é organizado apenas de modo a possibilitar as atividades de trabalho (SILVA , J.R. et al., 2016).

A mobilidade também depende de fatores simbólicos e subjetivos, como o desejo de se deslocar para diferentes espaços e o sentimento que aparece durante o trajeto, assim como o de pertencimento ao local de destino. Moradores de favelas, por exemplo, muitas vezes têm sua mobilidade cerceada pelos estigmas que carregam: por mais que até consigam acessar fisicamente outros espaços da cidade, não se sentem pertencentes a eles e sofrem violências (veladas ou não), tanto no caminho quanto no próprio local (CRESSWEEL, 2010; LEITE; MACHADO DA SILVA, 2013; VELOSO; SANTIAGO, 2017). “Parece haver poucas dúvidas de que a mobilidade é um dos principais recursos da vida no século XXI e que é a distribuição desigual desse recurso que produz algumas das diferenças mais gritantes de hoje”11 (CRESSWEEL, 2010, p. 163, tradução nossa).

Assim, podemos afirmar que a mobilidade (ou a falta dela) expressa patamares de desigualdades sociais. A diferença da circulação e da mobilidade urbana de diferentes grupos, além de revelar as discrepâncias no acesso aos direitos sociais como um todo, indica também como se dá a manutenção dessas desigualdades sociais através da organização das grandes cidades. Cressweel (2006) coloca que é uma via dupla: as mobilidades são produtos dessas relações de poder ao mesmo tempo que as produzem.

Segundo Balbim (2016), a mobilidade é uma atividade/condição humana por natureza e é essencial ao modo de vidas de pessoas. Souza (2014) afirma que a mobilidade pode ser dividida em permanente (aquele oriunda das migrações por exemplo) e a cotidiana, que se refere aos deslocamentos para a realização de atividades diárias, como trabalho, estudos e lazer.

Nos estudos sobre mobilidade urbana, têm-se um destaque para a mobilidade urbana cotidiana, que se refere tanto aos deslocamentos diários, quanto às estratégias traçadas pelas pessoas e coletivos para que estes se efetivem. A mobilidade urbana

11 No original: “There seems little doubt that mobility is one of the major resources of 21st-century life and

cotidiana é aquela em que o retorno ao ponto inicial do deslocamento ocorre num período de tempo curto (BALBIM, 2016). Portanto, sujeitos e coletivos precisam pensar em estratégias diversas para que se efetivem em um espaço de tempo reduzido disponível, o que inclui os meios de transportes, os custos, as rotas a serem realizadas, as prioridades de lugares e deslocamentos, entre outros. Está cada vez mais em voga a necessidade de se debruçar sobre a questão da mobilidade cotidiana, pois, segundo Balbim (2016), expressa a posição social dos indivíduos e suas condições de vida. Como exemplo, o autor menciona a mobilidade cotidiana obrigatória, ou seja, aquela que se refere ao trajeto casa- trabalho. A forma como se concretiza (tempo, tipo de transporte utilizado, condições para sua efetivação) traduz a realidade em que o sujeito vive.

Tomando-se a mobilidade cotidiana a partir de um indivíduo ou uma família, por exemplo, devem ser levadas em conta – para sua completa compreensão – a formação e a história de vida do sujeito da ação, suas trilhas espaço- temporais, inclusive seus valores e os valores presentes na formação socioespacial a qual está inserido. Não se pode ainda olvidar da sua aptidão física, das condições de seu local de residência, dos meios e modos de circulação disponíveis, acessíveis e escolhidos, além dos próprios desejos e vontades. A construção de um quadro a partir desse conjunto amplo de fatores resultaria na imagem da condição de mobilidade desse indivíduo e, ao mesmo tempo, traria paisagem única do seu lugar de vivência (BALBIM, 2016, p. 32– 33).

Portanto, a mobilidade faz parte do cotidiano dos indivíduos e é a partir dessa relação que podemos pensá-la como um elemento importante a ser considerado na prática em terapia ocupacional. Neste sentido, por compreender que a expressão mobilidade urbana incorpora implicitamente a adjetivação cotidiana, deixamos subentendido que toda vez que a abordarmos estaremos entendendo que se refere ao cotidiano concreto de vida dos sujeitos, grupos e comunidades.

1.3 MOBILIDADE URBANA E A TERAPIA OCUPACIONAL: QUAIS AS