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CAPÍTULO 1 – O CONCEITO DE MOBILIDADE URBANA E SUAS RELAÇÕES COM A TERAPIA OCUPACIONAL

1.3 MOBILIDADE URBANA E A TERAPIA OCUPACIONAL: QUAIS AS RELAÇÕES POSSÍVEIS?

1.3.3 Mobilidade urbana cotidiana na ação terapêutica ocupacional: O que têm sido produzido na literatura específica da área e quais reflexões podem ser apontadas

1.3.3.2 Mobilidade urbana como instrumento avaliativo para a terapia ocupacional

As avaliações e os instrumentos avaliativos em terapia ocupacional são bastante valorizados nas práticas profissionais e de pesquisa por parte dos profissionais da área. Um dos livros brasileiros, “Terapia Ocupacional: Fundamentação e Prática” (CAVALCANTI; GALVÃO, 2007a), apresenta quatro capítulos dedicados a essa temática: um sobre a avaliação qualitativa em terapia ocupacional (ROCHA; BRUNELLO, 2007); um sobre os métodos e técnicas de avaliação nas áreas de desempenho ocupacional, com três seções (CAVALCANTI, 2007; MELLO; MANCINI, 2007; NUNES, 2007); um sobre métodos e técnicas de avaliação dos componentes do desempenho, também com três seções (ABREU, 2007; DORNELAS; GALVÃO, 2007; RODRIGUES; ALVES, 2007) e um sobre avaliação dos contextos (CAVALCANTI; GALVÃO, 2007b).

Rocha e Brunello (2007) afirmam que a expansão das intervenções e campos de atuação da terapia ocupacional leva à necessidade de se repensar também as avaliações feitas pelos profissionais, que precisam contemplar necessidades, desejos e o contexto cultural do sujeito ou grupo com o qual está realizando a intervenção. Para Galheigo (2003), a concepção de uma práxis crítica da terapia ocupacional depende de um olhar que considere o contexto histórico do sujeito e sua inserção participante no coletivo.

Especificando a discussão da avaliação em terapia ocupacional e a questão da mobilidade cotidiana, é preciso considerar diversos fatores que influenciam os sujeitos e coletivos, tais como: fatores pessoais (gênero, idade, escolaridade, condições físicas, renda, etnia, religião e cultura), fatores familiares (ciclo de vida, posse de veículo particular) e fatores externos (oferta de meios de transporte, localização do destino desejado, horário de funcionamento dos destinos e dos meios de transporte e segurança pessoal) (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS TRANSPORTES PÚBLICOS, [s.d.]).

Portanto, compreende-se que a discussão de processos de avaliação da mobilidade urbana cotidiana, em seu sentido amplo, pode também compor este tópico, o que não foi encontrado na literatura da área. Sendo a mobilidade urbana um direito social coletivo, avaliá-la seria importante para terapeutas ocupacionais que atuem em qualquer área, pois

se trata de um elemento informativo acerca da vida cotidiana da pessoa, grupo ou comunidade em questão.

Tal avaliação pode predizer, por exemplo, como está o acesso da pessoa aos serviços de saúde, de educação, de assistência social, de cultura e a espaços públicos; pode apontar a possibilidade de inserção e manutenção no mercado de trabalho; desvelar o uso do tempo nas atividades diárias concretas e aquelas que o sujeito necessita; assinalar necessidades e desejos individuais e coletivos de estar em espaços; perceber como estão as funções físicas, cognitivas e psicossociais que são necessárias para que se tenha uma boa mobilidade pelas cidades; utilizar como avaliador da implementação de políticas públicas de acessibilidade; avaliar a necessidade de uso de equipamentos de tecnologia assistiva, que auxiliem na circulação, entre outras possibilidades.

Os instrumentos de avaliação utilizados por terapeutas ocupacionais podem ser padronizados ou não padronizados. Independentemente do tipo, são importantes como o ponto de partida para certos tipos de intervenções em terapia ocupacional, segundo alguns autores (DORNELAS; GALVÃO, 2007), assim como para a produção de conhecimento no contexto da ciência contemporânea (ROCHA; BRUNELLO, 2007), aplicada a determinadas áreas de atuação.

Algumas publicações da área de terapia ocupacional definem o conceito de mobilidade e propõem sua avaliação e mensuração. Para a Associação Americana de Terapia Ocupacional (AOTA), mobilidade é “planejar-se e mover-se na comunidade e usar o transporte público ou privado, como dirigir, caminhar, andar de bicicleta ou acessar e locomover-se através de ônibus, táxi ou outros sistemas de transporte” (CAVALCANTI; DUTRA; ELUI, 2015)18. Cavalcanti et al. (2013) definem a mobilidade cotidiana como sendo “fundamental, por exemplo, para as relações sociais e de trabalho,

18 Tradução do original publicado pela American Occupational Therapy Association (2014). Occupational therapy practice framework: Domain and process (3rd ed.). American Journal of Occupatinal Therapy, v.

68 (Suppl.1), S1–S48. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2014.682006. Traduzido para o português por Alessandra Cavalcanti, Fabiana Caetano Martins Silva e Dutra e Valéria Meirelles Carril Elui. Tradução autorizada para publicação em português, acesso aberto na Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, v. 26, ed. especial, 2015. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rto/article/view/97496/96423

[e] acontece através dos deslocamentos a pé e do uso dos sistemas de transportes coletivos de passageiros” (p.20).

Outro estudo que apresenta definições acerca dos conceitos que aqui abordamos é o de Ferreira, Folha e Tobias (2013), que define circulação como “parte do ambiente construído que permite a circulação física de pessoas e mercadorias: vias públicas, calçadas, vias físicas e terminais de passageiros e cargas” (p. 26) e que busca avaliar os fatores que influem na mobilidade, utilizando como instrumento a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), o qual considera a mobilidade essencial para as atividades cotidianas dos sujeitos.

Já existem instrumentos de avaliação da mobilidade urbana desenvolvidos para as áreas da engenharia e do urbanismo. No entanto, buscamos aqui pensar na aplicação dos conceitos especificamente para o campo da terapia ocupacional. Nos instrumentos já utilizados mais comumente pelos profissionais, o termo mobilidade aparece mais frequentemente referindo-se à transferência de posicionamento, como no MIF (Medida de Independência Funcional)19 e no PEDI (Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade)20. No PEDI, no entanto, o item mobilidade avalia também a locomoção e o ambiente externo, por exemplo. O MIF utiliza o termo locomoção para avaliar a marcha, o uso de cadeira de rodas e a capacidade de subir escadas. O HAQ (Heatlh Assement Questionnaire)21 tem questões a respeito do caminhar em lugares planos, de subir e descer escada e sobre a utilização de transporte coletivo (MELLO; MANCINI, 2007).

Ressaltamos que, embora seja importante a abordagem da mobilidade nas avaliações já utilizadas por terapeutas ocupacionais, ainda precisamos considerar outros aspectos que se referem à mobilidade no sentido que propomos nesta tese e que não são contemplados em instrumentos que utilizam escalas numéricas com uma perspectiva de mensuração de itens pré-determinados.

19 RIBERTO, M. et al. Reprodutibilidade da versão brasileira da Medida de Independência Funcional. Acta

Fisiátrica, v. 8, n. 1, p. 45–54, 2001.

20 MANCINI, M. C. Inventário da Avaliação Pediátrica de Incapacidade (PEDI): manual da versão

brasileira adaptada. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

21 STANFORD UNIVERSITY SCHOOL OF MEDICINE. DIVISION OF IMMUNOLOGY &; RHEUMATOLOGY. The Health Assessment Questionnaire Manual. (HAQ). [s.l: s.n.]. Disponível em: https://www2.gov.bc.ca/assets/gov/health/forms/5383fil.pdf. Acesso em: 28 ago. 2018.

Cressweel (2010) afirma que, apesar de diversos instrumentos e estudos sobre os transportes urbanos apresentarem dados concretos sobre o deslocamento, como medidas e mapas, eles não informam sobre as representações da mobilidade em nível individual ou coletivo, nem sobre como ela é efetivamente incorporada e praticada. Se estamos propondo o conceito de mobilidade urbana cotidiana como uma prática social, que se refere não só aos movimentos no espaço, mas também aos sentidos, significados e afetos causadores e causados pelos deslocamentos, precisamos pensar que outras formas de avaliação podem ser incluídas no arsenal de trabalho do terapeuta ocupacional.

De exemplo nessa direção, Borba et al. (2017), em relato de uma experiência prática no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), abordam que, tendo como objetivo se aproximar do cotidiano das pessoas que frequentavam um determinado serviço, buscaram conhecer, entre outros aspectos, por onde elas circulavam na cidade, realizando esta abordagem através de um acompanhamento “corpo a corpo”, ou seja, circulando junto com a pessoa, indo com elas aos espaços que frequentavam e buscando entender como se dava sua inserção e participação naqueles espaços. Esse caso, como veremos adiante, exemplifica uma experiência em que a circulação e a mobilidade foram tanto instrumentos avaliativos, quanto recursos da ação técnica.

Avaliações qualitativas e que considerem os aspectos subjetivos são possibilidades de abordagem da mobilidade no entendimento que estamos propondo e já têm sido utilizadas por terapeutas ocupacionais, tanto em pesquisas, quanto na prática profissional (CAVALCANTI; GALVÃO, 2007b; GOZZI; LUSSI, 2013; ROCHA; BRUNELLO, 2007). Para isso, pode-se trabalhar com avaliações a partir de entrevistas abertas, histórias de vidas, uso de mapas, cartografias, etnografia, grupos de atividades, diários de campo, entre outros a serem avaliados pelo profissional, a depender de seus objetivos e suas possibilidades.

Podemos inferir então que a inclusão de aspectos relacionados ao conceito de mobilidade urbana como um instrumento avaliativo ou parte das avaliações em terapia ocupacional já é realizada, notadamente quando se refere à discussão sobre acessibilidade física (CAVALCANTI et al., 2013; CAVALCANTI; GALVÃO; MIRANDA, 2007). Porém, a ampliação desse conceito contribuiria para uma avaliação mais qualificada no

aspectos subjetivos e sociais e colaboraria para o planejamento de intervenções que se estendam ao território, propiciando mais possibilidades de participação social, um dos objetivos anunciados pelas práticas em terapia ocupacional.