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CAPÍTULO 5 – O QUE OS JOVENS NOS CONTARAM

5.1 QUEM SÃO E COMO QUEREM SER VISTOS OS JOVENS: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Eles querem um preto com arma pra cima Num clipe na favela gritando cocaína Querem que nossa pele seja a pele do crime Que Pantera Negra só seja um filme Eu sou a porra do Mississipi em chama Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama Racista filha da puta, aqui ninguém te ama Jerusalém que se foda eu tô a procura de Wakanda, ah (Bluesman. Baco Exu do Blues)

Dentre as problemáticas que perpassam os jovens moradores de favela, estão os estigmas pelos quais ainda são vistos, tanto pela sociedade, quanto pela mídia, o que se reflete também no meio acadêmico. Tais questões estiveram presentes em suas discussões durante as atividades que realizamos. Neste percurso, além das narrativas individuais sobre a mobilidade cotidiana de cada um deles, trabalhamos em algumas oficinas com a construção de um mangá81, no qual as personagens seriam jovens do Complexo do Alemão, e com as observações realizadas em diferentes momentos, como durante a realização de atividades abertas tanto no EDUCAP, quanto no evento Circulando.

Para além do conteúdo concreto que criaram nas oficinas, o modo de fazer dos jovens já denota uma forma como querem ser vistos: são detalhistas, perfeccionistas, com uma grande preocupação com a estética do resultado final. Essa preocupação, muitas vezes, faz com que tenham dificuldades em iniciar o fazer, pois ficam durante muito tempo discutindo, coletivamente, como será o processo da atividade.

Eles decidem começar a passar caneta nos riscos que já fizeram em lápis na semana anterior, ver como está e depois terminar, avaliar o que falta.

São muito perfeccionistas! Não querem borrar de tinta, não querem riscos tortos. (Diário de campo. 17 de setembro de 2018)

Na criação do mangá foi dada uma sugestão bem diretiva com relação à temática: a criação de uma história que representasse, para eles, o cotidiano de jovens moradores do

81 Ver nota 74.

Complexo do Alemão. Os jovens pensaram em diversos roteiros para a história, mas as oficinas se restringiram à criação de personagens, na prática. Entendemos que as personagens são representações de como eles se veem, somadas a como querem ser vistos pelos outros. Iniciaram, por exemplo, afirmando que todos eram artistas. Ao se debruçarem mais sobre a história, definiram que as personagens seriam jovens moradores do Alemão que tinham superpoderes, mas ainda não os descobriram. Tal descoberta, segundo eles, seria feita através da arte, quando começassem a frequentar uma ONG. Falaram ainda que uma personagem seria um jovem que queria sair do tráfico e iria conseguir graças ao suporte do amigo, que já frequentava a ONG e iria levá-lo até lá.

Conforme mencionado anteriormente, a visão das ONGs como “salvadoras” dos jovens pobres, a “solução” ou “alternativa” à criminalidade dos jovens pobres é presente no imaginário social (CECCHETTO; CORRÊA; FARIAS, 2016; MONTEIRO; CECCHETTO, 2009; NOVAES, 2006), o que pôde ser observado na discussão feita por eles. Novaes (2006) critica o posicionamento, porque leva a entender, subjetivamente, que todos os jovens pobres moradores de periferia são “potencialmente criminosos”, utilizando tal argumento para justificar as ações via projetos sociais voltadas à juventude. Porém, retomamos que, apesar da crítica, as ONGs e os projetos sociais têm tido um importante papel na promoção de participação social em territórios vulneráveis, pois auxiliam também no acesso à escolarização, capacitação profissional, convivência, reconhecimento e pertencimento territorial:

Assim, na dinâmica social de inclusão e exclusão social em cada espaço se fazem presentes (com maior ou menor peso) todos os elementos enumerados (renda, gênero, raça, local de moradia) – e agora também a presença ou ausência de projetos sociais (NOVAES, 2006, p. 112).

Os chamados “jovens de projeto” incorporam e se apropriam de “palavras, gestos, atitudes e práticas” (CECCHETTO; CORRÊA; FARIAS, 2016, p. 493) dos projetos que frequentam, incluindo tais vivências em seu cotidiano como “estratégias de sobrevivência social” (NOVAES, 2006, p. 113), como pudemos observar nas discussões dos participantes durante a oficina. Todos deste grupo faziam parte do projeto “Tambores do Alemão”, um projeto de ensino de música e organização de uma banda com os jovens, que acontecia no EDUCAP, e alguns participavam ainda de atividades relacionadas a dança. Para eles, as artes são importantes em suas vidas e definidoras de suas identidades. Geraldo falou que seu sonho é poder viver de arte. Chico faz curso de graduação em história da arte e Elza disse que graças

à participação no grupo de música estava conseguindo circular mais pela cidade. Além disso, todos reconheciam no EDUCAP um lugar de oportunidades para a participação em diferentes espaços, para a socialização e a convivência.

A primeira personagem criada no mangá foi um homem negro, gay e emo82. Em seguida, propuseram uma mulher transsexual, também negra. Orientação sexual, identidade de gênero e negritude são temas que eles destacaram ao falarem da juventude do Complexo do Alemão. Marcaram essas questões em seus corpos e nos desenhos – fazem questão que todas as personagens tenham cabelos afro: encaracolados e black, como os deles.

Figura 26: Imagem da personagem criada por Elza para o Mangá. Na parte escrita, lê-se: “Mizaki

Miyazaki. Idade: 15 anos. Poderes: desconhecidos. Moradora do Complexo. Seu pai é traficante. Ama música. Tímida, super fan do BTS e Luan Santana. Sonha em ser desenhista.

Fonte: Acervo da pesquisa83.

82 A palavra emo, derivada de emotional hardcore, surgiu na década de 1980 como um movimento cultural ligado

principalmente às bandas musicais derivadas do punk rock que tinham uma composição mais melódica e as letras com um conteúdo mais emocional. Esse movimento é conhecido, no senso comum, principalmente por característica das letras das músicas, como as emoções exacerbadas, melancolia, autodepreciação e características físicas, como as franjas longas sobre os olhos, olhos pintados de preto, cintos com aplicações de metal, dentre outros (SERRÃO; SANTANA, 2013).

83 Todas as fotos aqui apresentadas foram tiradas por mim, durante a realização das atividades, com consentimento

Foram criadas também duas personagens bem diferentes das demais. Elza criou uma menina depressiva, segundo ela, devido ao bullying, e João um menino solitário, depressivo e que ficava em casa sozinho. Porém, ao começarem a desenvolver melhor as características de cada uma das personagens, a partir das nossas provocações na oficina, incorporaram outras características, como estudar música e gostar de videogame. Elza já apresentou um quadro depressivo, segundo ela mesmo me contou posteriormente àquela oficina. Lucia relatou, em determinado momento, um aumento de demanda nos serviços de saúde mental da região a respeito de quadros depressivos e de tentativas de suicídio de jovens.

Figura 27: Imagem da personagem criada por João. Na parte escrita, lê-se: “2º ano. Estudante de

música. Joga videogame. Brasileiro”.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Chico também fez sua personagem, Uz, de 16 anos. Na descrição lê-se “Estudante alegre que ainda não sabe o que vai fazer no futuro como profissão, mas está em busca de um caminho”.

Infere-se que a descrição de jovens ainda em busca de um caminho a seguir é algo que perpassa o cotidiano de todos eles, uma vez que as personagens são jovens que têm sonhos para uma vida adulta, como ser desenhista ou ter uma profissão.

Figura 28: Personagem criada por Chico.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Em suas falas durante os encontros, uma das características que os participantes mostraram foi o fato de que ser jovens como eles são requer resistência política. Em nossas observações, a discussão era presente em diferentes momentos dos seus discursos. Exemplificavam com fatores relacionados à resiliência cotidiana, mas que associavam com movimentos mais coletivos de resistência política. Chico contou que frequentava o prédio do Centro de Tecnologias da UFRJ e que lá recebia muitos olhares pela sua aparência e seu modo de se vestir. Geraldo, após o resultado das eleições, disse que não estava sendo fácil viver aquele momento e dizia que iria “continuar fazendo o que faço, eu vou continuar existindo”.

Não sei se o Geraldo tem alguma ideia da profundidade dessa fala dele, em um momento em que, existir sendo um jovem, negro, (LGBT?), morador de favela, vai ser tão difícil. Não sei se ele percebe que existir, neste momento, é resistir. (Diário de campo, 29 de outubro de 2018)

Na atividade realizada no evento Circulando, uma das frases escritas pelos jovens participantes foi “Bem favelada sim”. Falavam com orgulho de serem quem são, ao mesmo tempo, remetiam que o lugar de morador de favela, apesar de potente, não lhes permite o acesso a algumas oportunidades, pelo preconceito social, pela falta de liberdade e por causa da violência: “a gente não tem muito acesso [a oportunidades e espaços], é importante a liberdade de ir e vir”. Uma jovem relatou que “a gente não tem paz de ir e vir e nem liberdade de ir e vir”. Neste debate, apontaram principalmente para os estigmas de ser um jovem morador de favela e as relações com a sua cor de pele, identidade de gênero e orientação sexual, bem como tais aspectos influenciam na sua mobilidade e participação em outros espaços da cidade.

Figura 29: Detalhe no mapa corporal do evento Circulando com as frases: “Nós por nós”, “Bem

favelada sim” e “Paz sem voz não é paz, é medo”. As frases estão nas pernas do corpo do mapa.

Como uma possível estratégia de enfrentamento às violências sofridas de diferentes formas e que interferem em seu direito à cidade, os jovens apontaram a necessidade de sua organização em coletivos. Uma das jovens presentes na concepção do mapa corporal no evento Circulando disse: “A gente faz parte de um projeto junto aqui, imagina o que sai de ideia daqui, ideias junto”. Muitos dos jovens ali presentes já desenvolveram ações, principalmente no âmbito educacional (como a participação em pré-vestibulares comunitários e em projetos de alfabetização) e na área da comunicação (jornal comunitário), e afirmaram que, para enfrentar as adversidades cotidianas, a organização tem que vir deles mesmo, como na fala da jovem que escreveu “nós por nós” no cartaz acima. Essa jovem afirmou que “a gente que tem que correr atrás disso [da liberdade e do direito de ir e vir]”.

Eduardo, um dos jovens participantes, disse que os heróis de mangás são definidos por seu vilão, principalmente, então é preciso criá-lo primeiro. Naquele momento, iniciou-se um debate a respeito de quem seria e Geraldo disse que, sendo jovens da favela os “heróis” da história, necessitaria ser alguém de fora, que critica os moradores, que é preconceituoso, racista, machista e que quer matar os moradores das favelas. Elza complementou dizendo que deveria ser uma “pessoa mimada, rica e que sempre tem tudo o que quer”. Os jovens relacionaram essas características aos representantes políticos eleitos e começaram a demonstrar, de alguma forma, preocupação com a violências que os cerca. Apesar da discussão, eles acabaram não criando a personagem. Como em todo o processo da construção do mangá, os jovens debatiam muito as ideias, mas pouco concretizavam o que falavam.

Outra característica importante daqueles jovens é a “vontade de fazer tudo”, como eles mesmos relataram. Em todas as propostas de atividades, os jovens mostraram-se sempre disponíveis às novas experiências e experimentações, especialmente quando estavam em grupos. Novamente, pode ser uma característica advinda de suas experiências de participação em projetos sociais. Para além disso, verbalizaram o desejo de conhecer novas possibilidades e novos lugares. Ao mesmo tempo, refletimos, durante as atividades, sobre o quanto desse desejo em participar de tudo também poderia ser a impossibilidade de identificar o que não gostam, ou a possibilidade de recusa de algo.

Qualquer lugar, qualquer atividade, desperta interesse e envolvimento ... Tão interessante pensar sobre isso. Ao mesmo tempo que é muito bom para o grupo e para as oficinas, penso para eles, será mesmo que não tem nada que eles não queiram? É importante termos desejos, mas também é importante identificarmos e saber o que não desejamos. (Diário de campo, 17 de setembro de 2018)

Um dos assuntos que mais apareceu nas atividades foi a questão da orientação sexual e da identidade de gênero. São assuntos que eles trazem como desejo de discussão e que verbalizam em seus discursos como um marcador importante em seu cotidiano e algo que afeta, inclusive, sua mobilidade na favela. No primeiro encontro de construção de mangá, antes de decidirmos qual seria a atividade a ser realizada, os jovens presentes pensaram na possibilidade de realizar estêncil e a temática que perpassou essa discussão foi a orientação sexual e a identidade de gênero:

Começo a perguntar o que eles gostariam de escrever ou desenhar pelo estêncil e, puxados por Elza, começam: Liberdade, viva a arte, diversidades, #complexodediversidade #cpxdediversidade84, CPX85, Complexo do Alemão, Direito à cidade. LGBT+. Nessa hora, alguém pergunta o que é LGBT+, falo para o Geraldo explicar, afinal, ele produziu um fanzine sobre isso (Diário de campo, 29 de outubro de 2019)

Caetano, por exemplo, em uma conversa individual contou que perdeu amigos por se assumir gay e reclamou que não gostava de ficar andando perto de casa para se divertir, pois os “vizinhos são muito fofoqueiros”. Neste sentido, disse que gostaria de mudar para uma rua maior, onde se sentisse mais à vontade. No evento Circulando, os jovens também trouxeram essa questão. No mapa corporal coletivo criado, um jovem escreveu “bixa preta” nos braços do corpo desenhado. Sobre essa interferência na atividade coletiva, ele explicou que “as bixas pretas, pardas, negras, em geral sofrem diariamente em seus corpos. Eu, pessoalmente, por ser afeminada, já senti. Bixa foi a primeira palavra que eu ouvi, e eu nem sabia o que era, mas sabia que era algo que eu não poderia ser”.

84 Essas duas hashtags foram escolhidas pelos jovens em uma atividade anterior ao início dessa pesquisa, no qual

produziram um fanzine com objetivo de debater questões relacionadas à orientação sexual e ao gênero.

85 CPX é a maneira informal como os moradores se referem ao Complexo do Alemão na escrita, aparecendo

Figura 30: Detalhe no mapa corporal do evento Circulando. Destaque para o símbolo da luta

feminista no centro do corpo, com as palavras “Liberdade LGTBQ+”. Nos braços do mapa, escrito em tinta vermelha, com bastante destaque, “Bixa Preta”.

Fonte: Acervo do Projeto Juventude(s). Divulgação com autorização.

Pires (2016) e Vieira (2011) afirmam que a cidade é um espaço heterossexualizado e normativo. A homossexualidade e suas diferentes formas de expressão pública são vistas como algo “estranho”, que deve ser mantido apenas no espaço privado. Para Aguião (2011), “ter um corpo fora da lei patriarcal de gênero é experimentar a desigualdade do espaço urbano não democrático” (p.104-105). Tal desigualdade, podemos afirmar, ocorre na cidade como um todo e também dentro da favela, onde os padrões heteronormativos não se diferem da sociedade, de modo geral (CECCHETTO, 2004).

5.2 QUE CIDADE QUE DESEJAM OS JOVENS: A CONSTRUÇÃO DE UMA CIDADE