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CAPÍTULO 1 – O CONCEITO DE MOBILIDADE URBANA E SUAS RELAÇÕES COM A TERAPIA OCUPACIONAL

1.3 MOBILIDADE URBANA E A TERAPIA OCUPACIONAL: QUAIS AS RELAÇÕES POSSÍVEIS?

1.3.2 O conceito de cotidiano

Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã

(Cotidiano. Chico Buarque)

O conceito de cotidiano foi empregado pelas ciências sociais a partir do entendimento de que, para se apreender processos sociais, um olhar externo não é o suficiente – apenas um olhar “de dentro”, ou seja, da dimensão pormenorizada da vida, pode proporcionar que se entenda as vivências e os seus significados, suas representações e sentidos, tanto para indivíduos, quanto para coletivos (GALHEIGO, 2003; PAIS, 2007). Além disso, o estudo do cotidiano, atento às esferas da vida microssocial, revela estruturas sociais complexas e reveladoras de elementos vivenciados na macroestrutura social (PAIS, 2007).

Para Agnes Heller (1985), “a vida cotidiana é a vida de todo homem” (p.17). Ao mesmo tempo em que a vida cotidiana é única, de cada indivíduo, mas o “indivíduo é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico” (p.20). Para ela não existe vida humana sem cotidiano. O que significa que o cotidiano de um indivíduo representa, de alguma forma, os outros indivíduos da sociedade em que vive e, ao mesmo tempo, contém suas particularidades e subjetividades. Ou seja, a dialética implícita no cotidiano revela as relações indivíduo-sociedade, não como dicotomia, mas sim integração, sendo influenciado por cada época e cada lugar, na perspectiva da historicidade. A autora afirma que a vida cotidiana “não está ‘fora’ do acontecer histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social” (HELLER, 1985, p. 20).

Como exemplo, a autora cita o trabalho: todos os seres humanos exercem alguma atividade de trabalho, o que é genérico, mas as motivações de cada um para tal atividade são particulares.

A vida cotidiana é o conjunto de atividades que caracteriza a reprodução dos homens singulares que, por seu turno, criam a possiblidade da reprodução social. Isso significa que, na vida cotidiana, o indivíduo reproduz indiretamente a totalidade social [...]. Na vida cotidiana o homem aprende as relações sociais e as reproduz enquanto instrumento de sobrevivência. (CARVALHO, 2007, p. 26)

Nessa mesma direção, Pais (2003), afirma que “o quotidiano é uma fonte de revelação do social” (p. 111) e, por isso, o seu estudo deve ser valorizado nas pesquisas sociais, naquilo que denomina de sociologia do cotidiano. Seabra (2004) corrobora este ponto de vista, já que, em suas palavras a vida cotidiana “integra todas as representações do mundo, espelhando o conjunto de valores e do ideário de uma época” (p.192). Portanto, a compreensão de cotidiano dos sujeitos que tem sido trabalhada nas ciências sociais entende que não é apenas a repetição de atividades, a rotina, mas sim a representação de uma estrutura social maior.

O conceito de cotidiano não pode se restringir à ideia daquilo que é feito dia após dia, pois abrange como o sujeito vê a si mesmo, como constrói sua identidade, como participa da vida comunitária e também se refere às formas de organização social (SALLES; MATSUKURA, 2015, p. 269).

Para Léfèbvre (1981) são necessárias três perspectivas para se estudar o cotidiano. A primeira é a busca do real e da realidade, que significa que o estudo sobre a vida cotidiana deve se debruçar tanto em dados práticos quanto em dados abstratos da realidade. Isso inclui então entender as vivências, os afetos, as subjetividades, as representações e as imagens. A segunda perspectiva é abordar o cotidiano em sua totalidade, não em fragmentação em partes que formam um todo. A terceira diz respeito às possibilidades de a vida cotidiana ser uma forma das classes e grupos oprimidos revolucionarem a composição social estratificada pela organização capitalista da sociedade (CARVALHO, 2007), ou seja, as criatividades, resistências e vivências fora da norma que se tecem no dia a dia da vida.

Sobre essa terceira perspectiva, parte-se do pressuposto de que o cotidiano é uma representação da estrutura social, composto na conjunção de elementos subjetivos e culturais. Podemos afirmar que, em nossa sociedade contemporânea, o cotidiano representa a organização capitalista e, consequentemente, de suas desigualdades, o que

faz com que a vida cotidiana dos indivíduos seja uma fonte de exploração e um espaço a ser controlado pelas classes dominantes (CARVALHO, 2007).

Para o autor, o cotidiano é um conceito operacional, pois permite uma análise crítica do real. O estudo do cotidiano permite enxergar o vivido e trazer à tona as possibilidades de transformação inseridas nele.

O quotidiano – costuma dizer-se – é o que se passa todos os dias. Mas também se costuma dizer que no quotidiano nada se passa que fuja à ordem da rotina e da monotonia. Então o quotidiano seria o que no dia a dia se passa quando nada parece se passar [...], é nos aspectos frívolos e anódinos da vida social, no ‘nada de novo’ do quotidiano, que encontramos condições e possibilidades de resistência que alimentam a sua própria rotura (PAIS, 1993, p. 108)

Pais (1986) afirma que o estudo do cotidiano é importante, pois nem sempre “uma visão exclusivamente macroscópica do social pode dar conta de todos os pequenos jogos sociais que constituem a trama social” (p.11). Então, a sociologia do cotidiano seria uma forma de entrelaçar as esferas micro e macro da vida, considerando, portanto, além das atividades rotineiras diárias, a perspectiva social e histórica em que os sujeitos estão inseridos. Através do estudo do cotidiano é possível conhecer as interações sociais:

A sociologia do quotidiano centra-se nos indivíduos para melhor dar conta de como o social se reflete na vida deles, mas sem perder de vista a historicidade do quotidiano, que nos permite compreender como as sociedades dos indivíduos se transformam por força conjuntas de estruturas sociais e predisposições individuais. (PAIS, 2013, p. 123).

Portanto, estudar o cotidiano “permitiu aos sociólogos aprofundar-se no conhecimento não só da complexidade da trama social, mas identificarem novas dimensões tanto da injustiça, quanto dos recursos da intersubjetividade para enfrentá-la” (MARTINS, 2014, p. 173)

Milton Santos (1996) arrola que “o cotidiano tem como dimensão essencial no mundo de hoje a dimensão espacial. A dimensão espacial é a dimensão talvez central do cotidiano no mundo de hoje” (p. 11). Para ele, existem três dimensões humanas que ajudam o estudo do cotidiano a partir de uma perspectiva espacial. A primeira é a corporeidade, que ele afirma ser uma dimensão objetiva, na qual o autor inclui a forma como o sujeito se apresente e concebe sua educação, riqueza, capacidade de mobilidade,

localidade e lugaridade. A segunda dimensão é a individualidade, que é subjetiva, pois inclui a consciência de mundo, do lugar, de si, do outro e do coletivo do sujeito. E, finalizando, a terceira dimensão, que nomeou de socialidade, que é a relação entre indivíduos e o fenômeno do viver e estar juntos. Ele afirma que esta dimensão inclui o espaço e é incluída por ele (SANTOS, 1996).

Resumindo, para o autor o cotidiano é a relação entre corporeidade, individualidade, socialidade e espacialidade. A relação entre essas dimensões do cotidiano influencia a cidadania. Para Seabra (2004), a partir da leitura baseada em Milton Santos, a vida cotidiana é “uma experiência de espaço e tempo na modernidade” (p.189). Segundo Galheigo (2003, p. 106), “O Estado, as instituições e as corporações são controladores tenazes da vida cotidiana”. A forma de surgimento das cidades no Brasil – a urbanização – é um exemplo do processo de fortalecimento das desigualdades sociais e das hierarquias de poder advindas da sociedade capitalista, que impactam a vida cotidiana de diferentes sujeitos e coletivos, violando direitos básicos como a circulação e a mobilidade pelas cidades, que exacerbam questões como a pobreza, o desemprego, a falta de acesso às atividades e serviços de educação, saúde, cultura e lazer (BARBOSA, 2016; CASTRO, 2004). Os impasses e contradições do processo de urbanização deste contexto configuram um modo de vida da cotidianidade moderna que “se explicita pelas formas de uso do tempo nos lugares demarcados e estipulados no movimento da propriedade” (SEABRA, 2004, p. 183).

O capital, em suas múltiplas dimensões, mas principalmente a financeira, fica acumulado em determinadas áreas da cidade (na maior parte das vezes, as centrais), que recebem melhor infraestrutura, enquanto as áreas periféricas, nas quais são mais difíceis as condições de vida, ficam reservadas aos pobres. Para Milton Santos (2007), o local onde uma pessoa mora determina o seu acesso ou não aos direitos de um cidadão. Balbim (2016), afirma que o local de início de qualquer mobilidade é o lugar onde vive o sujeito e que este lugar é “físico, é social e é simbólico” (p.33). Ou seja, as configurações urbanas são mais uma forma de controle do cotidiano e do ir e vir das classes dominadas pelo Estado e pelos que detém o poder do capital. Nessa perspectiva, território e cotidiano se integram, na medida em que se direcionam para o contexto onde as pessoas vivem:

Pode-se dizer que, de um ponto de vista estritamente teórico, o território articula o particular ao geral ou o local ao global e que, revelando o modo de vida eleva o cotidiano, enquanto expressão da vida cotidiana na modernidade, à teoria e ao conceito. (SEABRA, 2004, p. 185).

Adicionamos que o trabalho territorial no cotidiano de vida das pessoas requer, entre outras questões, abordar a mobilidade, o acesso e restrições aos diferentes espaços geográficos que compõem a vida de sujeitos, grupos e/ou comunidades, como elementos que possibilitam a compreensão dos cotidianos vividos, assim como revelam estruturas macro e microssociais entrelaçadas.

Na terapia ocupacional, a incorporação do conceito de cotidiano vem, conforme já colocamos, desde os anos de 1990, a partir da crítica às práticas que eram realizadas até então, em um momento em que os terapeutas ocupacionais buscavam cada vez mais contextualizá-las com a realidade, o que engloba o contexto social, histórico, econômico e cultural, e as formas de inserção e participação coletiva dos sujeitos e grupos com as quais realiza suas intervenções (GALHEIGO, 2003). Salles e Matsukura (2015) afirmam, a partir de uma revisão de literatura, que o conceito de cotidiano é tanto uma ferramenta teórico-conceitual como uma prática para terapeutas ocupacionais:

a utilização do conceito de cotidiano em terapia ocupacional indica um caminho teórico e metodológico trilhado pela profissão, que procura ir além do estudo dos fenômenos concretos, repetitivos e sintomáticos [...] para focalizar também no que é único e ocorre em conexão com o contexto social. (SALLES; MATSUKURA, 2015, p. 269).

A terapia ocupacional atua com populações em situação de vulnerabilidades diversas, que têm seus direitos violados e sua participação social limitada por diferentes fatores e em diferentes contextos (seja pelas condições econômicas, a institucionalização e os estigmas; seja por questões ligadas à saúde, como os transtornos mentais, as deficiências físicas ou as limitações impostas pela idade e gênero, por exemplo). São também essas populações que mais têm o seu direito de mobilidade cerceado, conforme já apontava Milton Santos: “Como conciliar o direito à vida e as viagens cotidianas entre a casa e o trabalho, que tomam horas e horas? A mobilidade das pessoas é, afinal, um direito ou um prêmio, uma prerrogativa permanente ou uma benesse ocasional?” (SANTOS, M. 2007, p. 124). Sendo uma profissão que constitui seus saberes e suas

práticas como resposta às necessidades de pessoas e coletivos, procurando sempre uma abordagem ética, dialógica e participativa dos sujeitos envolvidos neste processo, a terapia ocupacional tem como seu objetivo buscar algum nível de transformação social (GALHEIGO, 2011, 2012).

Portanto, incorporar as reflexões acerca da mobilidade compõe a construção de um pensamento crítico a respeito da epistemologia e prática da profissão. Afinal, “A circulação é um importante elemento articulador e transformador do espaço, pois mais movimento conduz a mais mudanças espaciais (e, por extensão, sociais, econômicas e políticas)” (SILVA Jr., 2013, p. 414). Promover a circulação de pessoas e grupos pelo espaço urbano, quando esta é restrita ou até inexistente, é um trabalho primordial em vista da participação social, um dos objetivos da intervenção terapêutico-ocupacional (CASSAB; MENDES, 2011; MAGALHÃES, 2008; PERO; MIHESSEN, 2013; SOUZA, 2014).

Retornando a um importante ponto levantado por Galheigo (2012), esse compromisso ético-político do terapeuta ocupacional não pode ser apenas um processo reflexivo, mas precisa também acontecer na práxis da atuação profissional. Neste sentido, busca-se refletir aqui como a mobilidade e a circulação urbana cotidiana podem ser efetivadas como ação de pesquisa e de prática em terapia ocupacional.

Entender as formas de circulação e descolamento das pessoas e grupos, assim como sua mobilidade, constitui um elemento da prática do terapeuta ocupacional aplicado à dimensão territorial do trabalho. Neste sentido, entendemos que o conceito de mobilidade urbana cotidiana supera a ideia de deslocamento físico e analisa também as suas causas e consequências, ou seja, busca abordar as transformações sociais relacionadas ao movimento, às significações desses deslocamento para a vida de pessoas e grupos, entendendo, portanto, a mobilidade como uma prática social que inclui as diferentes dimensões da vida cotidiana (BALBIM, 2016; SOUZA, 2014).

Assim, ao usar o termo mobilidade urbana, referimo-nos a uma noção marcada pelo lugar social ocupado pelos sujeitos individuais e coletivos em suas vidas. Compreendendo que a expressão mobilidade urbana incorpora, de maneira implícita, a adjetivação cotidiana, por se tratar do local onde a mobilidade ocorre. Assim, defendemos

que o conceito pode ser incorporado à terapia ocupacional tanto como um elemento para a prática profissional, quanto uma ferramenta teórica de análise e avaliação da prática.

1.3.3 Mobilidade urbana cotidiana na ação terapêutica ocupacional: O que têm sido