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CAPÍTULO 1 – O CONCEITO DE MOBILIDADE URBANA E SUAS RELAÇÕES COM A TERAPIA OCUPACIONAL

1.1 DIREITO À CIDADE: UM DIREITO CIVIL E SOCIAL

E a cidade se apresenta centro das ambições Para mendigos ou ricos e outras armações Coletivos, automóveis, motos e metrôs Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs A cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o de baixo desce A cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o de baixo desce (A cidade. Chico Science e a Nação Zumbi)

Henri Léfèbvre (2001) introduziu o conceito de “direito à cidade”, em seu livro de 1969, com este mesmo nome. Ele entendeu que a cidade é um produto histórico das relações dos seres humanos. Logo, se elas mudarem, a cidade também muda. Em sua obra, “O direito à cidade”, o autor faz uma recapitulação da história das cidades, desde as pólis gregas, passando pelas medievais, até chegar às atuais, apresentando principalmente a sua posicionalidade: localizado na Europa ao final da década de 1960.

A cidade era o local de participação na vida social e comunitária. No entanto, com a consolidação da cultura do consumo e dos processos de industrialização advindos dela, permeada principalmente pela lógica capitalista, o espaço citadino mudou e passou a ser um local de consumo de bens e de lugares. Para ele, o direito à cidade inclui o direito à participação e à sua apropriação, aos “locais de encontros e de trocas, aos ritmos de vida e emprego do tempo que permitam o uso pleno e inteiros desses momentos e locais” (LÉFÈBVRE, 2001, p. 139). Trata-se de “direito à vida urbana transformada” (LÉFÈBVRE, 2001, p. 118), que só seria possível através de uma transformação da sociedade capitalista, ou seja, por meio de uma revolução do modo de produção, uma vez que esse modo leva à segregação social e de classe, que na visão desse autor destroem as cidades e ameaçam a vida urbana.

David Harvey, geógrafo britânico marxista, influenciado pelos estudos de Léfèbvre, tem discutido o direito à cidade em tempos mais recentes. Para ele, é “o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade” (HARVEY, 2012, p. 74). Assim como

Léfèbvre (2001), retoma o processo de urbanização como fundamental para a existência do capitalismo, sendo, portanto, a cidade transformada em uma mercadoria. Afirma que, contemporaneamente, com as políticas neoliberais, o direito à cidade está cada vez mais determinado através de interesses privados das elites dominantes:

O direito à cidade, como ele está constituído agora, está extremamente confinado, restrito na maioria dos casos a elite política e econômica, que está em posição de moldar as cidades cada vez mais ao seu gosto (HARVEY, 2012, p. 87)

Em comum, esses autores, ambos marxistas, afirmam que a luta pelo direito à cidade é uma luta das classes operárias contra o controle do capital.

A democratização deste direito e a construção de um amplo movimento social para fortalecer seu desígnio é imperativo, se os despossuídos pretendem tomar para si o controle que, há muito, lhes tem sido negado, assim como se pretendem instituir novos modos de urbanização. Léfèbvre estava certo ao insistir que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo deste termo, ou nada mais (HARVEY, 2012, p. 88).

Em uma crítica a este princípio teórico, alguns autores classificam essa definição de direito à cidade de Léfèbvre como utópica, uma vez que sua obra apresenta mais reflexões e pensamentos do que propostas para sua efetivação (CRAWFORD, 2017). Argumentam que, concretamente, ainda hoje, após décadas do lançamento de seu pensamento, não vivemos a “revolução social” a qual ele se dedicou a estudar.

Conhecendo o debate acadêmico e os pertinentes questionamentos que são apresentados pelos críticos de Léfèbvre e Harvey, consideramos neste trabalho que as colocações desses dois autores são, apesar das críticas, relevantes no que se refere a trazer provocações aos movimentos que buscam melhorias nas condições urbanas e diminuição das desigualdades. Corroboramos a ideia de que as cidades não devem ser vistas como mercadorias e o acesso a diferentes espaços apenas como formas de consumo, mas como elementos constituidores para a efetivação da cidadania. Partindo do princípio de que há sempre disputas e tensão social, defendemos que ambos os referenciais ainda embasam discussões que se voltem ao lugar social de determinados grupos nas cidades e suas possibilidades e impossibilidades de direito à cidade.

No Brasil, por exemplo, embora não tenha acontecido uma revolução urbana, como a proposta pelos autores, a incorporação dessa expressão tem sido utilizada amplamente por diversos movimentos sociais. O início dessa pauta enquanto reivindicação pode ser localizada na década de 1980, a partir do Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU). A organização daquele movimento conseguiu incluir na Constituição Federal de 1988 dois capítulos sobre Política Urbana (capítulos 182 e 183), que culminaram mais tarde na instituição do Estatuto das Cidades (Lei no 10.257 de 2011) e na criação do Ministério das Cidades (em 2003).

Tais instrumentos legislativos incluem, na gestão urbana, a participação de diversos atores interessados nesta discussão, possibilitada pelas Conferências Nacionais das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades (CAFRUNE, 2016; SÃO PAULO, 2015). A organização do MNRU também possibilitou a participação de órgãos ligados ao movimento em eventos mundiais da Organização das Nações Unidas (ONU) de discussão sobre a questão urbana, como os Fóruns Sociais Mundiais e o Fórum Urbano Social. A organização desses fóruns levou a publicação, em 2006, da Carta Mundial pelo Direito à Cidade (CAFRUNE, 2016). Nesta carta, direito à cidade é definido como um direito humano:

o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos [...] O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. [...] O território das cidades e seu entorno rural também é espaço e lugar de exercício e cumprimento de direitos coletivos como forma de assegurar a distribuição e o desfrute equitativo, universal, justo, democrático e sustentável dos recursos, riquezas, serviços, bens e oportunidades que brindam as cidades. (“Carta Mundial pelo Direito à Cidade”, 2006, s/p, grifo nosso).

O entendimento do direito à cidade como um direito humano, um direito social ou um direito político não é consensual e depende da interpretação que se tem de cada um desses direitos, relacionado ao referencial teórico e filosófico utilizado para essa leitura. Para Léfèbvre (2001, p.134), o direito à cidade é “uma forma superior de direito”. Conforme colocamos acima, na Carta Mundial pelo Direito à cidade, é entendido, por alguns movimentos sociais organizados que lutam por essa pauta, como um direito humano essencial e interdependente de outros.

Numa divisão comumente realizada em relação aos Direitos Humanos, podemos traçar um paralelo e, utilizando-se dessa teoria, classificar o direito à cidade como de primeira geração, ou um direito civil, que são os relacionados à liberdade individual, como, por exemplo, o direito de ir e vir (que poderíamos aqui chamar de mobilidade urbana). Pode também ser entendido como primordial para que se efetivem os de segunda geração, ou seja, os direitos sociais, como o acesso ao trabalho, à educação, à saúde, ao lazer, à cultura, entre outros (BENEVIDES, 1998).

Contudo, a aplicação do conceito de Direitos Humanos para a especificação de acessos a bens sociais é discutida por alguns autores, questionando se há benefícios por meio de sua generalização. Hannah Arendt, por exemplo, enfatizando a importância do conceito de Direitos Humanos com a intenção de dar visibilidade às situações de violências e horror que ocorreram e continuam ocorrendo na História (como as guerras, as misérias, à fome etc.), faz uma crítica devido ao fato de “direitos humanos” colocar o humano como um ser abstrato, sem considerar seu pertencimento a um coletivo político, que é primordial para sua existência (MALFITANO; LOPES, 2014). Neste sentido, no debate sobre os direitos é importante considerar a organização política em jogo.

Tal debate se aproxima da discussão acerca da efetivação da cidadania, conforme propõe Marshall (1967). Para o autor, a cidadania plena se relaciona à conquista de três direitos: o civil, o social e o político. O que o autor chama de direito civil e de direito social, correlacionando com a teoria de direitos humanos, poderia ser descrito como direitos humanos de primeira e segunda gerações. Já os direitos políticos são os direitos de participação e exercício do poder político, ou seja, considera a inserção dos seres humanos em organizações coletivas.

A participação na vida política, segundo Arendt, só é possível através da participação em espaços públicos, que para a autora são lugares de conflitos, debates de interesses e espaços essenciais para a fomentação da cidadania (MALFITANO; LOPES, 2014). Harvey (2012) afirma que o direito à cidade deve ser concebido como um direito coletivo, já que implica no “exercício de um poder coletivo de moldar o processo de urbanização” (p.74). Assim, podemos inferir que o direito à cidade pode ser considerado também um direito político, pois através dele é possível ocupar diferentes espaços públicos e garantir a participação política coletiva e democrática.

Diante dessa discussão sobre as conceituações do direito, nos aproximamos da defesa de Léfèbvre, considerando o direito à cidade como um direito superior, sendo que reservamos algumas críticas ao uso da palavra “superior”. Entendemos que o direito à cidade é um direito social e primordial para a efetivação de outros direitos sociais, civis e políticos. Dessa forma, caracteriza-se como um direito transversal. Classificá-lo como “superior” pode ser problemático à medida em que a luta pelos direitos deve ser coletiva e agregadora e um posicionamento hierárquico na importância de cada um deles pode não contribuir para a organização e luta coletivas.

Para além disso, podemos dizer que a percepção de importância/relevância pode ser considerada subjetiva, sendo influenciada pelas vivências individuais e coletivas de quem define. Podemos dizer, portanto, que a hierarquização em termos de direitos, a nosso ver, é um aspecto desnecessário. Por essas diferentes possibilidades de “categorização” do direito à cidade, é que Cafrune (2016) diz que o direito à cidade, enquanto um termo, é usado por diferentes movimentos sociais no Brasil como um “guarda-chuva” para os outros direitos.

A despeito das diferentes possibilidades de entendimento do direito à cidade, é consenso que este direito é importante para os seres humanos em sua vida cotidiana e por isso é preciso entender como se constrói concretamente, uma vez que vivemos em uma sociedade capitalista com políticas neoliberais que culminam na organização dos centros urbanos de acordo com interesses do capital. Umas das questões essenciais para essa discussão é pensar o papel da mobilidade urbana para a concretização do direito à cidade. Para Florentino (2011), “a mobilidade é uma dimensão crucial do direito à cidade, permitindo a integração entre pessoas e espaços” (p.47).

Tal ponto de vista é corroborado pelo Movimento Passe Livre de São Paulo10

(2014, s/p.), quando afirma que “as condições de mobilidade urbana são uma catraca que restringe a efetivação do direito à cidade em seus mais variados aspectos”. Entre estes, citam que a restrição à circulação pela cidade dificulta o acesso das pessoas a

10 O Movimento Passe Livre (MPL), oficializado e nomeado em 2005, “é um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa privada” (MOVIMENTO PASSE LIVRE, [s.d.])

serviços/espaços de saúde, educação e cultura e aos espaços de participação política, impedindo a apropriação da cidade.

Frente a tais discussões, entendemos a cidade como um espaço de trocas, encontros e produção de vida coletiva e das relações sociais, na contramão da ideia de mercadoria ou espaço de consumo. Essa perspectiva, portanto, coloca a cidade como um objeto de estudo e de efetivação das políticas públicas de diversos níveis e setores.

Assim, entendemos que o direito à cidade é um direito social essencial para o acesso e a efetivação de outros direitos sociais, civis e políticos, e que envolve diversos aspectos em sua conceituação. Podemos incluir, como uma parte do direito à cidade, o de ir e vir, ou seja, o de circular pela cidade.

1.2 CIRCULAÇÃO E MOBILIDADE URBANA COTIDIANA: DO QUE