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CAPÍTULO 1 – O CONCEITO DE MOBILIDADE URBANA E SUAS RELAÇÕES COM A TERAPIA OCUPACIONAL

1.3 MOBILIDADE URBANA E A TERAPIA OCUPACIONAL: QUAIS AS RELAÇÕES POSSÍVEIS?

1.3.3 Mobilidade urbana cotidiana na ação terapêutica ocupacional: O que têm sido produzido na literatura específica da área e quais reflexões podem ser apontadas

1.3.3.1 Mobilidade urbana como um objetivo da intervenção

A mobilidade urbana cotidiana pode ser o objetivo da intervenção em terapia ocupacional, para além de um meio/recurso para promoção do trabalho, conforme no item acima destacado. Isso incorpora a compreensão de que este conceito é mais do que ações

de ir e vir, mas também a possibilidade de produzir novas formas de vida coletiva social, além de ter significados subjetivos a cada um.

Objetivar a circulação urbana em terapia ocupacional se relaciona com a busca por maior participação social dos sujeitos, grupos e/ou coletivos. Nas práticas nem sempre é possível atingir os objetivos planejados inicialmente, sendo necessário programar em etapas, estabelecendo planos e metas para curto, médio e longo prazos. A mobilidade urbana pode ser um objetivo em diferentes etapas do processo terapêutico ocupacional. No contexto estrangeiro, o conceito de mobilidade parece estar mais voltado à questão da circulação física por diferentes espaços, podendo ser sua criação e/ou ampliação o objetivo da intervenção terapêutico-ocupacional. Di Stefano et al. (2009) definem o que chamam de mobilidade comunitária (community mobility) como a “capacidade das pessoas de se locomoverem em sua área local e inclui atividades como caminhar, andar de bicicleta, dirigir ou usar transporte público e outros dispositivos de mobilidade” (p.5, tradução nossa)15. Conceito semelhante aos apresentados por Di

Stefano; Stuckey e Lovell (2012); Jónasdóttir; Egilson; Polgar (2018) e Jónasdóttir e Polgar (2018) e que, conforme colocamos anteriormente, é uma visão já difundida especialmente pelas áreas do urbanismo e das engenharias.

Jónasdóttir, Egilson, Polgar (2018), que também se utilizam da expressão mobilidade comunitária, ampliam tal entendimento ao defenderem que a mobilidade pode “ser pensada tanto como ocupação quanto como um recurso para a ocupação” (p.2, tradução nossa).16 Os autores ainda complementam que, mais do que “como” as pessoas se deslocam, a mobilidade se refere ao porquê desses deslocamentos acontecerem, o que se aproxima do entendimento que propomos aqui de mobilidade urbana.

Em outro artigo, Jónasdóttir e Polgar (2018) realizaram uma revisão da literatura sobre a temática e indicam diferentes termos que foram usados para expressar a questão da mobilidade urbana cotidiana, como “community mobility” (mobilidade comunitária), “physical mobility” (mobilidade física), “moving around” (mover-se no entorno, que

15 No original: “peoples’ ability to transport themselves around their local area and includes activities such

as walking, cycling, driving, or using public transportation or other mobility devices”

poderíamos associar à circulação), “life space” (espaço de vida) e “community participation” (participação comunitária). Por essa perspectiva, a palavra mobilidade foca na acessibilidade aos espaços e transportes públicos coletivos para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida (CASSAPIAN; RECHIA, 2014; CAVALCANTI et al., 2013; DI STEFANO et al., 2009; LOGAN et al., 2004; SACKLEY et al., 2009; VIEIRA; CAVALCANTI; ALVES, 2015; VOLPINI et al., 2013).

Já no contexto brasileiro, Soares, Inforsa e Castro (2009) apresentam projetos realizados em parceria pelo Programa Permanente de Composições Artísticas e Terapia Ocupacional (PACTO)17, filiado ao curso de graduação em Terapia Ocupacional da

Universidade de São Paulo (USP) com a Associação Morungaba da cidade de São Paulo, os quais buscavam, nas intervenções realizadas, “favorecer a produção e o exercício coletivo, fomentando as estratégias de circulação e exploração da cidade, bem como as trocas que daí se desdobram, promovendo maior acessibilidade e pertinência social” (p.197). Utilizaram-se, segundo o relato, de estratégias como o mapeamento dos territórios, fortalecimento de redes sociais e utilização de diferentes espaços públicos para a realização das ações, que aconteciam com diferentes populações, de pessoas com deficiência até populações em situação de vulnerabilidade social, de diversos segmentos, como crianças, famílias, adultos etc.

As autoras relatam que objetivavam fomentar o desejo por maior circulação na cidade fora das atividades do grupo, através da “apropriação de circuitos significativos” (p.197). Podemos afirmar que elas apresentaram a mobilidade urbana como um objetivo de sua intervenção, uma vez que, além de efetivar deslocamentos pela cidade e refletir sobre as implicações necessárias para eles, buscaram desenvolver atividades que trabalharam com a apropriação de si e de seu entorno, considerando sensações, afetos, dificuldades e interesses, o que se relaciona com o conceito de mobilidade urbana cotidiana que defendemos neste trabalho.

17 O PACTO é um projeto didático-assistencial do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia

Ocupacional, do Curso de Terapia Ocupacional da USP, criado em 1998 (LIMA et al., 2011) com o objetivo de se pensar em “abordagens e metodologias que atravessam o trabalho com o corpo e com as artes e com as diretrizes que integram práticas clínicas e sociais no campo da Terapia Ocupacional” (CASTRO et al., 2009, p. 150).

A mobilidade urbana como objetivo do trabalho terapêutico-ocupacional também é apresentada na publicação de Baldani e Castro (2007), também realizado pelo PACTO, que apresenta a experiência de uma ação com uma criança que vivia em situação de vulnerabilidade social.

E foi essa apropriação que buscamos conquistar nos encontros que aconteceram nos diversos espaços existentes no território. Neste processo, evidenciou-se outra perspectiva importante: a construção da experiência de apropriar-se do mundo, sentir-se pertencendo a ele (BALDANI; CASTRO, 2007, p. 4).

O artigo de Baldani e Castro (2007), além de apresentar um objetivo congruente com a definição de mobilidade urbana que utilizamos, apresenta ainda a ideia da circulação como um elemento/recurso para se atingir esse objetivo: “avaliou-se que realizar com ela a exploração do território forneceria uma nova experiência para M. habitar o mundo [...] Neste sentido, é necessário em primeiro lugar que o mundo seja apresentado por alguém” (BALDANI; CASTRO, 2007, p. 4).

Já a pesquisa de Ferigato, Carvalho e Teixeira (2016), que relata uma experiência nos Centros de Convivência (CECO) da cidade de Campinas, SP – caracterizados, segundo os autores, como equipamentos que compõem a rede intersetorial, abertos à comunidade em geral e especialmente para a população em vulnerabilidade –, apresenta os CECOs como meios importantes para a efetivação do objetivo de intervenções nas cidades, entre outros, através da criação de novos modos de circulação pelo território.

Percebemos que a circulação e a mobilidade urbana são objetivos encontrados em parte da literatura em terapia ocupacional, seja enfocando as pessoas com deficiência, as crianças, os adultos ou os idosos, os usuários de serviços de saúde, educação e assistência social, ou sujeitos em vulnerabilidade social. Conforme já mencionado, a depender da situação, a circulação e mobilidade poderão ser objetivos de curto, médio ou longo prazos. Poderão também, a depender de cada contexto e o resultado do trabalho, deixar de ser um objetivo e se tornar um recurso da intervenção.