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CAPÍTULO 5 – O QUE OS JOVENS NOS CONTARAM

5.2 QUE CIDADE QUE DESEJAM OS JOVENS: A CONSTRUÇÃO DE UMA CIDADE DA/PARA A JUVENTUDE

Mas não, mas não O sonho é meu e eu sonho que Deve ter alamedas verdes A cidade dos meus amores E, quem dera, os moradores E o prefeito e os varredores Fossem somente crianças Deve ter alamedas verdes A cidade dos meus amores E, quem dera, os moradores E o prefeito e os varredores E os pintores e os vendedores Fossem somente crianças (A cidade ideal. Os saltimbancos)

A construção da Cidade da Juventude começou logo no início do campo da pesquisa, com o intuito de aproximar os jovens de uma reflexão acerca da cidade em que vivem e a que gostariam de viver. Entendemos que a visão que se tem sobre a cidade e sobre as relações nela estabelecidas se conectam diretamente com a mobilidade urbana cotidiana e, por conta disso, a construção ajudou a entender como os jovens vivenciam cotidianamente a vida urbana.

Na oficina, foi proposto a construção de uma “rua da juventude”, com espaços, instituições, lugares que eles gostariam de ter acesso e considerassem importante para os jovens de forma geral. No entanto, durante o fazer, a atividade ganhou vida com os sujeitos que a faziam e, de uma rua, passou-se para a construção de uma cidade toda, já que eles começaram a enumerar uma quantidade de lugares que não seria possível ser representada em uma única rua, como praça, loja de salgado, lojas, shopping, balada, praia, museu, escola, “serviços públicos”, o EDUCAP, uma escola de dança, teatro, cinema, favela. Referiram também, nessa conversa inicial, antes mesmo de começar a atividade, o desejo de construir um rio, uma piscina pública e até mesmo um cemitério.

Durante o trabalho, que durou quatro semanas, foram diversos os temas e os debates que perpassaram o fazer, enquanto o realizavam. Cabe destacar que não era claro para nós (e talvez não fosse claro a eles, em alguns momentos) o que estava sendo construído: se uma cidade ideal, conforme proposto, ou uma representação da cidade real, feita pelos jovens. Tal dúvida

foi expressa por diálogos estabelecidos pelos jovens em diferentes momentos da oficina e destacada no diário de campo:

Um papel pardo no chão. A Proposta: Construção de uma “rua da juventude”, que acabou virando uma “CIDADE DA JUVENTUDE”! Mas... Será que era mesmo uma cidade da juventude ideal, como eles gostariam? Ou uma cidade real? E sendo ela real, onde entra a juventude, especialmente, a da favela? Seria um misto de ideal e real? Onde entram os desejos dos jovens, que espaços eles têm na construção urbana? É dado ao jovem da favela o direito de sonhar com uma cidade na qual se sinta contemplado? (Diário de campo, 10 de setembro de 2018)

Tais questionamentos apareceram pelo fato de os jovens trazerem, em diferentes momentos, acalorados debates sobre a presença ou não de uma favela na cidade, da polícia, de uma delegacia e de uma piscina pública. Foram diversos os momentos em que ocorreram questionamentos nesse âmbito e optamos por não os interromper. Entendemos que essas dualidades entre real e ideal são importantes para um exercício reflexivo a respeito da cidade em que vivem, da mobilidade por ela, das possibilidades concretas e das utopias no que se refere à sua participação urbana plena, sendo essencial, para além da pesquisa, à intervenção prática que realizamos com aqueles jovens.

Tais fatos remetem às discussões de Paulo Freire sobre conscientização, consciência de futuro e a criação de suas possibilidades. Para o autor (1981, 1987, 2011), a conscientização é um processo que permite a crítica das relações do sujeito com o mundo, frente ao contexto histórico-social. Isto porque, quando se tem mais consciência crítica das injustiças sociais existentes e de sua situação de opressão, há mais possibilidade de desenvolver ações que busquem transformações sociais reais e a construção de outros futuros. A conscientização implica em um compromisso com o mundo e com nós mesmos, com isso os sujeitos assumem uma posição utópica frente ao mundo.

Importante ressaltar que Paulo Freire trabalha com o entendimento da utopia como uma possibilidade de realização dos sonhos possíveis, no planejamento de um futuro a partir de sua consciência. A utopia se constrói a partir da consciência crítica da realidade e, portanto, leva a reflexão de quais são as possibilidades de mudanças que desencadeiam em uma práxis que pode ser transformadora.

Nunca falo da utopia como uma impossibilidade que, às vezes, pode dar certo. Menos ainda, jamais falo da utopia como refúgio dos que não atuam ou [como] inalcançável pronúncia de quem apenas devaneia. Falo da utopia, pelo contrário, como necessidade fundamental do ser humano. Faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se, que homens e mulheres não prescindam, em condições normais, do sonho e da utopia. (FREIRE, 2011, p. 85)

Assim, entendemos que a prática reflexiva da atividade realizada pode ser pensada como um instrumento de construção de uma consciência crítica coletiva entre aqueles jovens, sendo que a busca por uma cidade ideal (ou utópica) pode ser necessária para que eles possam começar a refletir sobre uma ação (ou práxis) em busca dessa cidade.

5.2.1 O espaço da cultura e do lazer na cidade

Um dos aspectos centrais para os jovens durante a construção da cidade foram os espaços de cultura e lazer. A primeira “estrutura” construída foi uma praça no centro, na qual chegavam várias ruas e se interligavam a outras praças. Nesta praça, o centro da cidade, quando estava começando a ser construído, os jovens decidiram por desenhar um museu. Ao lado do museu, construíram um teatro e um cinema, ligaram as três praças e discutiram como iriam chegar a tais locais a partir de outros pontos da cidade. A praça do museu e os espaços de lazer receberam bastante atenção nas semanas seguintes e foram trabalhadas com diferentes materiais, que lhes deram cores e texturas, como tintas, papeis, lãs e barbantes, resultando no destaque dessas construções na cidade como um todo.

Figura 31: Detalhe da cidade: museu no centro da cidade

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 32: Detalhe da cidade: o teatro.

Figura 33: Detalhe da cidade: o cinema.

Fonte: Acervo da pesquisa.

É importante ressaltar que essa oficina, no dia 10 de setembro de 2018, aconteceu alguns dias depois do incêndio que atingiu um dos principais e mais acessíveis museus da cidade do Rio de Janeiro, o mais antigo museu do país, o Museu Nacional, localizado na Quinta da Boa Vista. A tragédia teve repercussão mundial nas mídias, diante do debate a respeito do papel do museu na cidade, o descaso com as instituições culturais públicas e a importância do acervo perdido86. Muitos dos jovens que estavam na oficina já haviam visitado aquele museu, a maioria, em passeios com a escola.

O museu é colocado no centro da cidade, em uma praça (emociona lembrarmos que, na última semana, o museu mais acessível ao público do Rio de Janeiro foi destruído...). Perto dele, um teatro e um cinema. E o destaque de Chico, jovem de 20 anos, morador do Alemão e estudante de história da arte na UFRJ: “Tem que ter uma via ligando a favela ao museu, cinema e teatro, porque a acessibilidade é fundamental!”. Acessibilidade, primordial na garantia da mobilidade urbana, aqui representada em seu aspecto mais fundamental: a acessibilidade física ao espaço! (Diário de campo, 10 de setembro de 2018)

86 Sobre o incêndio do Museu Nacional, exemplificamos algumas reportagens da mídia, como no jornal Folha de

São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/apos-mais-6-h-bombeiros-controlam-incendio-no- museu-nacional-no-rio.shtml) e na revista Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/incendio- destroi-museu-nacional-no-rio-de-janeiro/). Acesso em 17 de março de 2019.

Outro lugar que os jovens fizeram questão de construir e que destacaram como importante para sua sociabilidade e lazer foi um parque. Utilizaram, como referência, o Parque de Madureira, localizado na zona norte do Rio, próximo ao Complexo do Alemão, e que já tinha sido (ou ainda é) frequentado por todos os jovens que estavam no EDUCAP naquele dia. Desenharam uma pista de skate, banheiros, uma fonte de água e brinquedos. Perto dele, acrescentaram uma floresta e também um rio, representando uma preocupação em garantir um espaço para a natureza na cidade, que, apesar de conter muitos elementos urbanos, também é verde e arborizada.

Figura 34: Detalhe da cidade: o parque

Fonte: Acervo da pesquisa

Uma das atividades que os jovens mais referiram gostar de fazer aos fins de semana foi passear pelos locais de comércios do bairro. Eles relataram gostar de ver as vitrines, para saber o que está na moda, e também de comer salgadinhos. Por isso, na cidade, construíram uma área de comércio.