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O conceito de “ponto de referência” e a interpretação semântico-temporal das formas verbais do português e do alemão

I. Enquadramento teórico 1.1 Distinções terminológicas prévias

1.4. O conceito de “ponto de referência” e a interpretação semântico-temporal das formas verbais do português e do alemão

A funcionalidade dos tempos verbais em contexto de DI implica, necessariamente, a análise e interpretação dos valores formalizados que a forma verbal assume no paradigma verbal de cada sistema linguístico em estudo e os valores diversos que admite nos contextos em que ocorre, enquanto factor primordial de coesão semântico-pragmática. Nesse sentido, teremos de verificar o tratamento distribucional das formas verbais, tendo em conta as possibilidades e restrições de co-ocorrência com outros elementos do sistema, que permitirão à forma verbal, por um lado, assumir níveis diferentes níveis de polissemia, ou, por outro, fixar o seu valor temporal em contextos que apenas fornecem informações complementares e de especificação. Assim, concebemos que a análise dos tempos torna indissociável a forma da sua funcionalidade discursiva.

Partimos, por isso, do pressuposto que existe uma dissociação entre tempo linguístico e tempo cronológico, ou seja, as relações de ordem temporal base – anterioridade, simultaneidade e posterioridade – são multiplicadas e desdobradas pelo tempo verbal, que pode remeter para vários pontos de referência. Uma forma verbal localiza sempre um intervalo temporal na linha de tempo, pelo que teremos de definir as suas coordenadas de configuração temporal, ou seja, os intervalos de tempo que são determinantes na especificação do modo como uma forma verbal localiza uma situação,

sendo que o momento da enunciação9 (ME) e o momento da situação (MS) adquirem um papel referencial determinante.

Reichenbach, nos anos 60, desenvolveu um trabalho pioneiro em que definiu, para além dos dois intervalos de tempo supra mencionados, um terceiro que designou por “reference point” – ponto de referência - e cuja interpretação não é pacífica e tem suscitado ampla discussão no meio linguístico, sendo tido como um ponto intermédio de localização entre a enunciação a situação. (Mira Mateus et alli. 2003: 131).

Diversos têm sido os estudos desenvolvidos tendo por base a noção de que vários intervalos de tempo contribuem para a localização temporal de um determinado evento. Wolfgang Klein (1994) define no seu trabalho Time in Language a existência de três intervalos que, segundo o autor, permitem fazer o enquadramento semântico-temporal de uma forma verbal: TSit, TU e TT, respectivamente “time of situation, time of utterance, topic time.” Um pressuposto essencial de que parte a teoria de Klein é de que a forma verbal não localiza especificamente o ponto da situação, relativamente ao ME:

Tense does not directly specify the “time of the situation”; rather it imposes a temporal constraint on the time for which the assertion is made (Klein 1994: 3)

Assim, o intervalo de tempo localizado não é, para Klein, TSit mas sim TT, ou seja, o intervalo de tempo a que a acção é confinada. Nesse sentido, TT é o ponto de ancoragem de Tsit, que é um componente indefinido, não interpretado temporalmente, ou seja, é uma situação que ocupa um determinado intervalo de tempo, que será descrito selectivamente por TT. Klein fornece vários exemplos para ilustrar esta relação. Vejamos dois deles, que nos parecem bastante eludacidativos da perspectiva defendida pelo autor. No enunciado “The light was on”, TSit corresponde a “the be on of the light” e TT corresponde ao componente definido, ou seja, é o momento a que a forma verbal de Past Simple “was” confina TSit. Outro exemplo a considerar é o seguinte: “What did you see when you entered the room?”, em que é claramente fixado um TT, designadamente através da oração temporal.

A literatura da especialidade tem abordado e interpretado de forma profícua o conceito de ponto de referência introduzido por Reichenbach. As análises elaboradas para a

9 É na própria actividade enunciativa que se gera um marco referencial temporal inequívoco (Fonseca 1994:

língua alemã são muito vastas e é-nos impossível abordá-las de forma exaustiva. No entanto, existem alguns estudos, cujas interpretações são incontornáveis e que iremos abordar no nosso trabalho A literatura específica sobre temporalidade no sistema linguístico português não aborda de forma tão exaustiva uma possível interpretação do conceito de ponto de referência. Os sistemas verbais português e alemão constituem dois paradigmas distintos, daí que, neste primeiro capítulo, procuraremos definir os conceitos centrais que podem subjazer a uma análise geral do comportamento dos tempos verbais em contexto de DI, sendo que esses conceitos serão, posteriormente, aplicados à análise específica das formas verbais de cada sistema verbal, tendo em vista a (re)contextualização e (re)acomodação de discursos prévios na forma de texto jornalístico.

Thieroff (1992) elabora uma breve resenha de várias adaptações e interpretações do conceito de ponto de referência, tal como postulado por Reichenbach. Os intervalos de tempo que designa de “Sprechzeit” – ME e “Ereigniszeit” – MS não levantam quaisquer questões terminológicas ou de interpretação. Porém, emprega outros dois conceitos, designadamente “Orientierungszeit” – “ponto de orientação” e “Referenzzeit” – “ponto de referência”, que necessitam de ser devidamente analisados. Assim, o autor considera que, para além dos dois intervalos indiscutíveis supramencionados, é necessário recorrer a dois outros parâmetros localizadores. Para Thieroff, “Referenzpunkt” aplica-se unicamente à análise dos tempos do perfeito “Perfekttempora”, admitindo apenas a relação “Ereigniszeit vor Referenzzeit”. Este último é distinto do “Sprechzeit”, ainda que ambos possam coincidir. Relativamente ao quarto parâmetro, Thieroff evidencia que este se resume aos tempos do grupo II, no “Indikativ” (INDK), detendo o mesmo papel que o “Sprechzeit” assume para os tempos do grupo I. É, portanto, um centro deíctico distinto do “Sprechzeit”, passando a ser um centro deíctico secundário que se relaciona com os tempos do grupo II e com os advérbios temporais deícticos.10

Concluímos, portanto que os tempos do grupo II possuem dois tempos da orientação, sendo que o primeiro é o ME e o segundo é fornecido pelo contexto. Relativamente ao “Sprechzeit”, Thieroff considera-o um caso especial de “Orientierungszeit”:

10

Thieroff distingue entre dois grupos de tempos verbais, sendo o primeiro aquele que remete para os verbos conjugados no “Präsens”: “Präsens, Perfekt I, Perfekt II, Futur I, Futur II” e o segundo consiste mas formas verbais conjugadas no “Präteritum”: “Präteritum, Plusquamperfekt I, Plusquamperfekt II, FuturPräteritum I e FuturPräteritum II”.

Damit erweist sich die Sprechzeit nun in der Tat als ein Sonderfall – nicht der (auf die Perfekttempora beschränkten) Referenzzeit, sondern der Orientierungszeit. Das heiβt, (…) die Sprechzeit S jeweils durch die (allgemeine) Orientierungszeit O zu ersetzen ist, wobei O genau dann gleich S ist, wenn der Kontext (insbesondere das Obersatztempus von Komplementsätzen) nicht eine andere Festlegung trifft. (Thieroff 1992: 275)

Zifonun et alii. (1997) elaboram um quadro de interpretação dos tempos verbais que assenta nos seguintes intervalos temporais: “Faktzeit”- “momento da situação”, “Sprechzeit” – “momento da enunciação” e “Betrachtzeit” – “momento da observação”:

Assim, o princípio de interpretação dos tempos verbais concebido pelos autores procede da articulação do “Sprechzeit”, ou de outro intervalo de tempo que serve de ponto de orientação, com um “Betrachtzeit”, um ponto de observação a partir do qual o tempo verbal ainda por interpretar - “Satzrest” - é analisado. Este princípio serve de base aos tempos simples e compostos, sendo que para os primeiros há que averiguar se o MS e o ponto de observação coincidem; quanto aos tempos compostos, a análise é mais complexa, pois a forma temporal “Infinitiv Perfekt” implica a existência de um novo ponto de observação, (que consiste no ponto de orientação da forma finita do verbo auxiliar), relativamente ao qual o lexema verbal é interpretado em termos temporais:

Bei zusammengesetzten Zeiten enthält der Restsatz nach Interpretation des Obertempus (= Tempus der finiten Verbform) noch den Infinitiv Perfekt. Um zu einem tempuslosen Satzrest zu gelangen, wird dieser analog zu den anderen Tempora interpretiert, und zwar so, dass die Betrachtzeit für das Obertempus als Orientierungszeit dient, von der her die (zweite) Betrachtzeit für die Auswertung des (jetzt tempuslosen) Satzrestes gewonnen wird. (Zifonun et alii. 1997: 1691)

A interpretação das formas verbais fica, no entanto, desprovida de parte do seu sentido se não considerarmos a vertente contextual, como já havíamos referido anteriormente. Assim, Zifonun et alii. (1997), a que nos temos vindo a reportar, defendem, igualmente, uma análise dinâmica dos tempos verbais, que assenta na noção de que a transição para um novo contexto temporal implica a escolha de um novo ponto de observação, sendo que o anterior ou o ponto do evento anterior passam a deter a função de ponto de orientação.11

11 Ana Paula Loureiro (1997) menciona na sua dissertação de mestrado a dupla análise que uma interpretação

temporal das formas verbais acarreta, referindo os problemas daí decorrentes: “(…) prevê-se, por um lado, a criação, no continuum semântico, de zonas de confluência e de resolução da descrição das unidades

Nos capítulos seguintes pretendemos proceder a uma análise e interpretação dinâmica dos tempos verbais em português e alemão, tendo em conta um enquadramento discursivo específico, o texto jornalístico. Os dois estudos aqui apresentámos para o alemão serão abordados de forma mais pormenorizada no capítulo III, em que confrontamos diversos estudos elaborados para o alemão sobre esta temática.

Relativamente aos estudos sobre a língua portuguesa que discutam uma possível interpretação da teoria de Reichenbach, verificámos que são escassos os trabalhos que se prendem com esta temática. Peres (1995) estabelece dois parâmetros para a análise e interpretação dos tempos verbais: a perspectiva temporal - presente, passado e futuro - relativamente ao ME e a localização relativa – anterioridade, sobreposição e posteridade – definida a partir do momento de referência. Ou seja, a introdução de um novo momento de orientação permite a coexistência de duas perspectivas na descrição dos tempos verbais, em que uma é objectiva e a outra contextual. Mateus et alii. (2003) estabelecem a existência de três intervalos temporais que estão na base de uma localização relativa e contextual dos tempos verbais, nomeadamente o ponto da fala, o ponto do evento e o ponto de referência (Mateus et alii. 2003: 130s).

Assim, e tendo por base os estudos supramencionados, assumiremos que, para o estudo dos tempos verbais em alemão e português, há que entrar em linha de conta com a relação que se estabelece entre o momento da enunciação (ME) e o momento da situação (MS) com um terceiro intervalo temporal que designamos por momento de referência (MR).

Consideramos que ME e MR são ambos momentos de orientação MO – “Orientierungszeiten”, porque dependendo do contínuum contextual ou da própria interpretação isolada da forma verbal, os dois podem fornecer a perspectiva de tempo relevante para contemplação de MS. No entanto, o contexto específico do produto denominado DI pressupõe, como vimos anteriormente, a existência de dois momentos de enunciação, o actual, que é o citador (ME), e o momento enunciativo original, que é citado (MEO).

linguísticas e, por outro, a dificuldade em separar claramente o que é da responsabilidade dos tempos verbais e o que decorre de outros elementos do contexto ou da combinação contextual das unidades” (Loureiro 1997: 4)

1.5. Os conceitos de modo/modalidade, aspecto/aspectualidade – algumas