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A expressão da deíxis temporal e a regra “sequence of tenses” formulada por Comrie (1986)

I. Enquadramento teórico 1.1 Distinções terminológicas prévias

1.3. A expressão da deíxis temporal e a regra “sequence of tenses” formulada por Comrie (1986)

Comecemos por relembrar o objectivo principal a que nos propusemos no início deste trabalho, designadamente proceder a uma análise e interpretação semântico-temporal dos tempos verbais, quando se procede à recuperação de um discurso prévio utilizando a transposição discursiva em estilo indirecto, tendo como contexto específico o texto jornalístico.

Tal, como já fizemos referência, Zifonun et alii. explicitam dois princípios que norteiam a relação entre a enunciação original e enunciação citada e que nos parecem de grande pertinência: o Princípio Proposicional e o Princípio Referencial. Da articulação entre os dois decorrem dois pressupostos essenciais: a proposição da enunciação é passível de ser transposta para o DI em palavras, uma vez que os aspectos ilocutórios podem apenas ser descritos ou interpretados pelo LOC da nova situação enunciativa; tem de existir uma relação de referência entre os dois enunciados linguísticos, ou seja, o acto ilocutório e a sua reprodução têm de remeter para o mesmo estado de coisas, independentemente do grau de literalidade e de interpretação por parte do relator (Zifonun et alii. 1997: 1756-70). A transposição discursiva implica uma alteração dos elementos deícticos pessoais, espaciais e temporais, de forma a poder cumprir os dois princípios explicitados anteriormente.

Relativamente à análise das relações deícticas, Comrie (1986) sugere no artigo “Tense in indirect speech”, que se centra na análise da referência temporal no DI em língua inglesa, a dicotomia: referência fixa e referência deíctica, sendo que a primeira, tal como a designação indica, possui um referente constante independentemente do LOC e da situação enunciativa em que ocorre (nomes próprios, datas) (v) (w), enquanto que a segunda é contextualmente dependente. No que concerne à categoria “referência deíctica”, assumiremos como pressuposto teórico o binómio: expressões deícticas absolutas (v) (x) (y) e relativas (aa), sendo que as primeiras têm o seu referente determinado pela situação de enunciação em que se inserem (pronomes pessoais, advérbios de tempo, as desinências verbais específicas) e as segundas possuem um centro deíctico contextual, um ponto de referência prévio. Alguns exemplos em que ocorrem os três tipos de referência são os seguintes:

v) Ontem, ao apresentar Iekhaunurov na Rada, o líder ucraniano prometeu não bloquear a reforma política, que deverá entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2006. (Jornal Público nº 5658, 21.09.05, p. 20)

w) Dabei übte die Anklage deutliche Kritik am Urteil der ersten Instanz, dass im Februar 2004 alle 16 Angeklagten freigesprochen hatte. (Jornal Die Welt nr. 226-39, 27.09.05, p.32)

x) A AFP citava ontem um estudo recente do Instituto Nautilus da Califórnia que defende que dois reactores capazes de produzir 1000 megawatts cada um ligados em rede farão explodir o sistema. (Jornal Público nº 5658, 21.09.05, p. 21)

y) Die US-Armee geht davon aus, dass das Armenviertel innerhalb von zehn Tagen leergepumpt werden könne. (Jornal Die Welt nr. 226-39, 27.09.05, p.32)

aa) Er erzählt eine lange und rätselhafte Einwanderergeschichte. Er kam 1983 aus dem Irak nach Bowling Green, um an der Universität Soziologie zu studieren. Er war damals 32 Jahre alt und arbeitete im Landwirtschaftsministerium von Bagdad. Über die Vermittlung eines pakistanischen Diplomaten erhielt er das Stipendium, sagt er. (Revista Der Spiegel nr. 43/18.10.04, p. 90)

Na análise que faz da utilização dos tempos verbais na transposição discursiva indirecta na língua inglesa, o autor equaciona a hipótese de os três tipos de referência

deíctica constituírem o princípio que regulamenta o emprego dos tempos verbais na transposição discursiva em estilo indirecto. No entanto, e ainda que sejam relevantes ao nível da perspectiva temporal e constituam marcos referenciais que especificam a localizam das situações, este processo baseia-se, em língua inglesa, numa regra gramatical genericamente designada por “sequence of tenses” – “sequência de tempos verbais” e que o autor define da seguinte forma:

If the tense of the verb of reporting is non-past, then the tense of the original utterance is retained; if the tense of the verb of reporting is past, then the tense of the original utterance is backshifted, except that if the content of the indirect speech has continuing applicability, the backshifting is optional. (Comrie 1986: 284s)

Assim, e de acordo com o princípio orientador explanado por Comrie (1986), o emprego de uma determinada forma verbal em contexto de DI decorre do tempo verbal que consta da oração subordinante. O tempo da enunciação actual assume-se como ponto de ancoragem principal e, a partir da perspectiva que este encerra, o tempo verbal da oração subordinante pode ocorrer no presente ou no passado, ditando a manutenção ou alteração do tempo verbal que consta do conteúdo proposicional. Esclarece, ainda, o autor que os únicos contextos em que a manutenção do tempo verbal pode ocorrer implicam a aplicabilidade contínua do estado de coisas constante do discurso citado original, ou seja, se este remete para factos permanentemente válidos para qualquer momento enunciativo considerado, sem circunscrição a limites temporais. Este processo de transposição de formas verbais tendo por base o tempo verbal do discurso citador parece, numa primeira instância, apontar para alterações deícticas de índole iminentemente temporal. No entanto, o processo que Comrie designa por “backshifting” é uma operação iminentemente formal, em que há uma correspondência unívoca entre os tempos verbais da enunciação original e actual. Assim, é um processo completamente independente do valor semântico-temporal das formas verbais envolvidas (à excepção de contextos em que ocorra aplicabilidade contínua), sendo que os tempos verbais considerados de presente (não só pelo seu significado temporal mas também por questões morfológicas) são substituídos pela forma verbal de passado que lhes corresponde morfologicamente. À excepção do “Past Simple”, todas as formas cujo verbo auxiliar é um tempo verbal de passado têm de ser mantidos no contexto comunicativo original e citador.

Em sintonia com os objectivos que explicitámos na introdução, procuraremos averiguar quanto à validade dos pressupostos teóricos definidos por Comrie para o inglês, quando aplicados ao português e ao alemão, assumindo a perspectiva de Fernanda Irene Fonseca (1994):

A aplicação a uma língua de uma hipótese teórica que foi baseada na observação de outras línguas desempenha um papel importante como forma de testar a validade dessa hipótese e pode, assim, contribuir ou para infirmá-la como hipótese generalizável ou para completá-la tornado a sua validade universal mais provável. (Fonseca 1994: 17)

1.4. O conceito de “ponto de referência” e a interpretação semântico-temporal das