• Nenhum resultado encontrado

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 117 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

2.2. O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E GÊNEROS ORAIS

2.2.1. Concepção de gêneros textuais

Sabemos que a noção de gênero já foi investigada por outras áreas, como a Literatura e a Retórica, na Antiguidade Clássica. Contudo, iniciaremos nossa discussão do texto Os

gêneros do discurso ([1979] 1997), de Bakhtin, pois o consideramos basilar para compreender

a definição desse termo que vigora hoje. Para o autor, enunciado diferencia-se de oração a partir da função comunicativa daquele e de três estágios apresentados: conteúdo temático, estilo e estrutura composicional. Assim, conforme esse linguista, gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis, elaborados por esferas de utilização da língua. As especificidades

24 Para a construção desta seção, baseamo-nos nos pressupostos teóricos já apresentados no projeto de pesquisa submetido ao Gabinete de Projetos do Centro de Artes e Letras da UFSM e também no texto Pesquisa-ação no

Ensino Médio: proposta de trabalho com gênero oral a partir da metarregra da progressão e das Máximas Conversacionais, de autoria nossa, publicado nos Anais do V SELM (Seminário de Ensino de Língua Materna).

Disponível em: <http://editora.upf.br/images/ebook/anais_seles_e_selm_PARTE1.pdf>. Acesso em 12 abr. 2017.

25

Deveríamos acrescentar a Teoria dos Gêneros Textuais na Fundamentação Teórica ou o gênero textual é um instrumento para as oficinas em sala de aula? Esse questionamento esteve presente na banca de qualificação deste trabalho, assim como em outras bancas de qualificações de pesquisas desenvolvidos na linha Linguagem e Interação, e, por isso, os autores dos trabalhos e os professores orientadores iniciaram uma discussão sobre o papel dos gêneros textuais nos estudos que envolvem investigação de produção de texto a partir de Pesquisa- Ação em sala de aula. Por ora, decidimos incluir a questão do gênero textual na Fundamentação metodológica.

de uma dada esfera comunicativa, as necessidades de uma temática e o conjunto constituído pelos parceiros determinam, conforme o autor, a escolha de um gênero.

De acordo com o que já afirmamos em trabalho anterior (Machado e Motta, 2017), é possível estabelecer uma relação entre a concepção bakhtiniana de que a escolha do gênero faz-se na definição de parâmetros que guiam a ação e a tese de Schneuwly (2004a), de que o gênero é um instrumento, ou seja, um artefato que media a atividade, mas também dá forma, representa e materializa a atividade, que se encontra entre o sujeito e a situação na qual esse age. Como precedente de tal proposição, Vygotsky (1993) já propunha a analogia entre signo e instrumento, em que aquele é concebido como mediador e meio fundamental para apropriar e orientar as funções psíquicas de grau mais elevado:

A formação dos conceitos é resultado de uma complexa atividade em que todas as funções intelectuais fundamentais participam. No entanto, este processo não pode ser reduzido à associação, à tendência, à imagética, à inferência ou às tendências determinantes. Todas estas funções são indispensáveis, mas não são suficientes se não se empregar o signo ou a palavra, como meios pelos quais dirigimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e o canalizamos para a solução do problema com que nos defrontamos. (VYGOTSKY, 1993, p. 50).

Esse pressuposto está, de forma direta, relacionado ao ensino e à aprendizagem, uma vez que processos internos de desenvolvimento são despertados por esses processos e só podem ocorrer quando o indivíduo interage com determinado meio sociocultural, através da mediação de instrumentos. Dessa maneira, a concepção de gêneros como instrumentos funciona de referência para a produção textual, escrita ou oral, conforme pontua Bakhtin:

Os gêneros do discurso organizam a nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas de gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhes o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível. (BAKHTIN, [1979] 1997, p. 302).

Forma-se um repertório de gêneros escritos e orais, que são utilizados com desenvoltura, apesar de que, muitas vezes, os produtores ignoram a existência de classificações e de sistematizações. Apesar disso, para Schneuwly (2004a), o gênero só funciona, enquanto mediador, a partir do momento em que é apropriado pelo sujeito. Pensando nisso, preocupa-se em discutir, juntamente a Dolz, tal condição em um espaço bastante específico: a sala de aula. A partir disso, os autores consideram que os gêneros “constituem o instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho,

necessário e inesgotável, para o ensino da textualidade” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004a, p. 51) e, por isso, a escola sempre os teve como objeto de trabalho:

Na sua missão de ensinar os alunos a escrever, a ler e a falar, a escola, forçosamente, sempre trabalhou com os gêneros, pois toda forma de comunicação - portanto, também aquela centrada na aprendizagem - cristaliza-se em formas de linguagem específicas. A particularidade da situação escolar reside no seguinte fato que torna a realidade bastante complexa: há um desdobramento que se opera em que o gênero não é mais um instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem. (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004b, p.75-76).

Entretanto, os autores afirmam que o trabalho com gêneros, especialmente aqueles da oralidade, ainda carece de uma sistematização a fim de auxiliar os docentes. Travaglia et al. (2013) comentam que, muitas vezes, em um primeiro olhar, parece ser bastante tranquilo definir o que e quais são os gêneros orais. No entanto, a observação empírica revela que definir um conceito de gêneros orais pode ser uma tarefa difícil, isso porque, segundo os autores, há uma certa confusão entre os termos gênero e atividade26.

Assim como Schneuwly (2004a), esse grupo de pesquisadores também defende gêneros enquanto instrumentos que, na medida em que são apropriados pelos sujeitos, permitem o desenvolvimento de “capacidades e competências linguísticas e discursivas de construção e de escolha do gênero apropriado para a ação em dada situação social localizada” (TRAVAGLIA et al., 2013, p. 03).

Por sua vez, os programas e as propostas curriculares oficiais já exemplificam o que seriam as práticas para as quais os professores poderiam enfocar seus olhares. Contudo, muitas vezes, isso não é suficiente para garantir um trabalho efetivo com gêneros orais em sala de aula, justamente por essa dificuldade apontada, tanto pelos autores estrangeiros quanto pelos autores nacionais na definição do que e de quais são os gêneros orais. Dolz e Schneuwly (2004a) acreditam que ainda é necessário modificar a forma de encarar a produção textual como um todo, não apenas aquelas que envolvam os gêneros orais em sala de aula:

Se, para as atividades gramaticais, o professor dispõe de uma descrição precisa dos conteúdos que os alunos devem adquirir a cada série, para as atividades de expressão escrita e oral, nas quais os saberes a se construir são infinitamente mais complexos, ele tem tido de se contentar com indicações muito sumárias. Tudo se passa como se a capacidade de produzir textos fosse um saber que a escola deve encorajar, para facilitar a aprendizagem, mas que nasce e se desenvolve fundamentalmente de maneira espontânea, sem que pudéssemos ensiná-la sistematicamente. (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004a, p. 50).

26 É conveniente destacar que o grupo de autores considera atividade como “ações mediadas por objetivos específicos, socialmente elaborados por gerações precedentes e disponíveis para serem realizadas, usando determinados instrumentos para este fim construídos.” (TRAVAGLIA et al., 2013, p. 03), e, portanto, não se pode confundir com atividade como utilizada por Koch (2014b) para descrever a produção de linguagem.

Os autores atentam, ainda, que o ensino do oral em língua materna só pode se dar a partir da construção de uma nova relação com a linguagem, relação essa que descontrua concepções usuais nas quais a oralidade ou se confunde ou se opõe à escrita. Para isso, junto a Michèle Noverraz, sugerem agrupamentos de gêneros a partir de três critérios: domínios sociais de comunicação, aspectos tipológicos e capacidades de linguagem dominantes. Os autores exemplificam cada agrupamento com gêneros escritos e orais, conforme ilustra o Quadro 3, a seguir.

Quadro 3 - Agrupamento de gêneros por aspectos tipológicos

Domínios sociais de comunicação

Capacidades de

linguagem dominantes Exemplos de gêneros orais e escritos

Cultura literária ficcional NARRAR Mimeses da ação através da criação de intriga.

Conto maravilhoso; fábula; lenda; narrativa de aventura; narrativa de ficção científica; narrativa de enigma; novela fantástica; conto parodiado. Documentação e memorização de ações humanas RELATAR Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo.

Relato de experiência vivida; relato de viagem; testemunho; curriculum vitae;

notícia; reportagem; crônica esportiva; ensaio biográfico. Discussão de problemas sociais controversos ARGUMENTAR Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição.

Texto de opinião; diálogo argumentativo; carta do leitor; carta de reclamação; deliberação informal; debate regrado; discurso de defesa (adv.); discurso de acusação (adv.).

Transmissão e construção de

saberes

EXPOR

Apresentação textual de diferentes formas dos

saberes.

Seminário; conferência; artigo ou verbete de enciclopédia; entrevista de especialista; tomada de notas; resumo de textos “expositivos” ou explicativos; relatório científico; relato de experiência científica. Instruções e

prescrições

DESCREVER AÇÕES Regulação mútua de

comportamentos.

Instruções de montagem; receita; regulamento; regras de jogo; instruções de uso; instruções.

Fonte: Dolz; Schneuwly; Noverraz (2004, p. 121).

Travaglia et al. (2013) apresentam a conceituação de gênero oral defendida pelo Grupo de Pesquisa sobre Texto e Discurso (PETEDI)27, ao qual os autores estão vinculados. Assim, gênero oral “tem como suporte a voz humana (vista como a característica particular que tem o som produzido pelo aparelho fonador) e que foi produzido para ser realizado oralmente, utilizando-se a voz humana, independentemente de ter ou não uma versão escrita.” (TRAVAGLIA et al., 2013, p. 04). Apesar de divergir em alguns aspectos da lista anterior28, julgamos relevante apresentar o levantamento realizado pelo PETEDI, que ilustra a quantidade e a diversidade de gêneros orais. Os pesquisadores optaram por classifica-los a partir das esferas de atividade humana nas quais são produzidos.

Quadro 4 - Lista de gêneros orais conforme o PETEDI

ESFERAS EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS

Esfera das relações do dia a dia

Entrevista de emprego, fofoca, caso/causo, recados (social e familiar), bronca (repreensão), conselho, discussão (bate-boca, briga), reclamação, lamento, alerta, brinde, cantiga de ninar, discurso, exéquias, juramento, provérbio, nota de falecimento (pode também ser escrito, como as que aparecem em jornais), convite (também pode ser escrito), acusação, agradecimento, atendimento (por exemplo por secretárias, telefonistas), recados (em secretárias eletrônicas ou pessoalmente), dentre outros.

Esferas do entretenimento e

literária

Cantiga de roda, piada, anedota, peça de teatro (representação), parlenda, reconto, comédia stand up, esquete, repente (improviso cantado ou recitado), bingo (o cantar as pedras, prêmios e vencedores), filme, narração esportiva radiofônica/televisionada (de jogos, corridas),

27

O Grupo de Pesquisa sobre Texto e Discurso (PETEDI) está vinculado ao Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e é coordenado pelos professores Luiz Carlos Travaglia e Cláudia Goulart Morais. Desde 2000, reúne estudiosos interessados no estudo dos textos e discursos dentro do campo de estudo e pesquisa das Letras, Linguística e Linguística Aplicada. Página no CNPq: <http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1271078685298732>. Acesso em 08 fev. 2017.

28 Travaglia et al. (2013), a partir da distinção entre gênero e atividade, não consideram, por exemplo, seminário como gênero oral, uma vez que defendem ser uma atividade realizada por meio de exposição oral, depoimento e debate – esses sim gêneros. Em Dicionário de gêneros textuais, Costa (2012) também opta por não apresentar seminário como gênero, com base em Marcuschi, pois o considera como evento ou suporte.

telenovela, adivinhação/adivinha, desafio, locução de rodeio, música, entrevistas com celebridades, dentre outros.

Esferas escolar e acadêmica

(cont.) Avisos/comunicados, feitos em sala de aula, por agentes diversos (professores, funcionários da direção ou da secretaria, alunos), palestra/conferência, exposição oral (como nas aulas. Pode ocorrer em outras esferas), debate de opinião, debate deliberativo, arguição e defesa de dissertação ou tese ou sobre um assunto estudado ou de monografia/trabalho de conclusão de curso, comunicação de pesquisa (em eventos acadêmico-científicos), entrevista de pesquisa científica, arguição/prova oral, dentre outros.

Esfera religiosa

Homília, sermão, celebração da palavra, pregação ou prédica, prece/oração, confissão, passe espírita, benzeção, batismo, batismo de fogueira, casamento, consagração, crisma, extrema unção; unção de enfermo, cantos de folia de reis, ladainha, profissão de fé (há profissões de fé religiosas, mas também sobre aspectos filosóficos, sobre cânones artísticos), hinos, cânticos de congadas ou congado, ordenação de padre, batizado, consagração, ângelus, prece/oração/reza, jaculatória (oração curta e fervorosa), missa, testemunho (tipo de depoimento que nesta esfera recebe um nome particular), oferenda, leitura de búzios, dentre outros.

Esfera militar Comandos, instrução de comandos, dentre outros. Esfera médica Consulta, sessão de terapia, dentre outros.

Esfera jornalística

Notícia, reportagem, comentário (feito por comentaristas econômicos, esportivos, críticos de arte), entrevistas (como as de opinião sobre determinado tópico), dentre outros.

Esfera

jurídica/forense Depoimento, defesa, acusação, dentre outros. Esfera policial Interrogatório, denúncia, depoimento, dentre outros. Esfera comercial e

industrial

Pregão (de camelô, de vendedor, de feirante), leilão (a fala do leiloeiro), atendimento de call center, transações de compra e venda (pessoalmente ou mediadas), entrevista, dentre outros.

transportes aeroportos e rodoviárias sobre partidas, chegadas, cancelamentos, dentre outros.

Esfera de magia

(cont.) Leitura de mão, praga, leitura de cartas, simpatia, dentre outros.

Esferas diversas

Depoimento/relatos de experiência de vida (policial, religiosa, de tratamentos, histórico), pedido (social - casamento e outros, comercial), agradecimentos, profissão de fé, dramatização, instruções (para realização de algo), aviso, dentre outros.

Fonte: adaptado de Travaglia et al. (2013).

O trabalho desenvolvido nesta pesquisa de Mestrado investigou o gênero oral em uma esfera bem específica, a escolar. Além disso, contou com a participação de alunos que cursavam o último ano da Educação Básica. Desta maneira, optamos por trabalhar com um gênero do argumentar (conforme Dolz, Schneuwly e Noverraz, 2004) e da esfera escolar/acadêmica (conforme Travaglia et al., 2013): o debate deliberativo. No capítulo seguinte, justificaremos essa escolha e também comentaremos, mais especificadamente, sobre esse gênero.

Já na próxima seção, buscaremos aliar os dois pontos discutidos neste capítulo ao apresentar, a partir da ótica de pesquisadores brasileiros relacionados à Linguística do Texto, abordagens e propostas para o ingresso de gêneros orais nas aulas de Língua Portuguesa da Educação Básica. Para isso, partimos da premissa de que “Quando se ensina alguém a lidar com textos, ensina-se mais do que usos linguísticos. Ensinam-se operações discursivas de produção de sentido dentro de uma dada cultura com determinados gêneros como formas de ação linguística.” (MARCUSCHI, 2008, p. 90). O gênero torna-se, por conseguinte, além de uma forma de ação linguística, um objeto de ensino e de aprendizagem.