• Nenhum resultado encontrado

OS CRIMES FALIMENTARES: INSOLVÊNCIA DOLOSA ENQUADRAMENTO JURÍDICO, PRÁTICA E GESTÃO PROCESSUAL

IV. Hiperligações e referências bibliográficas V Vídeo.

1. Enquadramento jurídico

1.6. Condição objectiva de punibilidade

De acordo com o disposto no artigo 227.º, n.º 1, do Código Penal, a situação de insolvência provocada pelas condutas descritas nas várias alíneas desse preceito deverá ser “reconhecida

judicialmente”.

Como dissemos, o resultado típico das condutas previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal é a insolvabilidade do devedor, independentemente de a mesma ser judicialmente reconhecida52.

A exigência do reconhecimento judicial da insolvência constitui uma condição objectiva de punibilidade53.

50 Cfr. 1.1., supra, e 1.6., infra.

51 Assim, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, loc. últ. cit..

52 Diferentemente do que sucedia no crime de insolvência dolosa tipificado no artigo 227.º do Código Penal, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, cujo n.º 2, dispunha que “[s]e a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número

anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias” (nosso

destaque).

53 Neste sentido, cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, cit., p. 627, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 1993, Processo n.º 043829 (FERREIRA DIAS), e do Tribunal da

A condição objectiva de punibilidade do crime de insolvência dolosa, nos precisos termos em que foi consagrada no artigo 227.º, n.º 1, do Código Penal – a exigência do reconhecimento judicial da insolvência – suscita uma questão importante, que se passa a analisar.

Conforme mencionámos anteriormente, determinadas categorias de devedores estão, por força do estatuído no artigo 2.º, n.º 2, do CIRE, total ou parcialmente excluídas do âmbito do regime geral da insolvência.

Cabe, agora, indagar sobre a relevância penal da sua situação de insolvência decorrente da prática das condutas descritas no artigo 227.º, n.º 1, do Código Penal.

As pessoas colectivas públicas – Estado, Regiões Autónomas, autarquias locais, institutos públicos e associações públicas – poderão encontrar-se numa situação de incumprimento generalizado das respectivas obrigações vencidas (insolvência técnica)54 e a mesma poderá resultar da prática de alguma das condutas tipificadas no n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal. Sucede, no entanto, que a situação de impotência económica dessas entidades não se repercute numa declaração judicial de insolvência, como resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea a), do CIRE. A insuficiência de recursos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais é solucionada através do aumento de tributos e de medidas de controlo de despesa, ou, quando tal não se mostre adequado, através da concessão de crédito, da emissão de dívida pública ou da transferência de capitais; já a carência económica dos institutos públicos e das associações públicas é, normalmente, ultrapassada por meio da sua reestruturação ou extinção.

Consequentemente, a insolvência das pessoas colectivas públicas não beneficia da tutela do artigo 227.º do Código Penal.

No que tange às entidades públicas empresariais, a respectiva situação de insolvência conduzirá, normalmente, à sua extinção e subsequente liquidação, a qual é determinada por decreto-lei, não lhe sendo aplicáveis as regras gerais sobre dissolução e liquidação de sociedades comerciais, nem as do processo especial de insolvência, salvo nos casos expressamente previstos nesse decreto-lei, como decorre do artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro.

Relação do Porto de 17 de Outubro de 2012, Processo n.º 833/03.6TAVFR.P2 (JOAQUIM GOMES), in www.dgsi.pt.

54 Pense-se que, de acordo com a informação prestada pelos XVIII e XIX Governos Constitucionais, em 2011, o Estado Português não dispunha de liquidez para cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, nem aquelas cujo vencimento ocorreria no curto prazo. Por esta razão, foi assinado o Programa de Assistência Económica e Financeira entre a República Portuguesa, o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia (em representação da União Europeia) e o Banco Central Europeu. Por motivos semelhantes, foi assinado o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro entre a República Portuguesa e a Região Autónoma da Madeira.

Não havendo lugar ao reconhecimento judicial da situação de insolvência das entidades públicas empresariais, não poderá ter-se por verificada a condição objectiva de punibilidade, prevista no artigo 227.º, n.º 1, do Código Penal.

Por seu turno, as empresas de seguros podem ser judicialmente declaradas insolventes, nos termos gerais previstos no CIRE, conforme resulta do artigo 121.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 94- B/98, de 17 de Abril, pelo que a sua insolvência dolosa é criminalmente punida.

O regime insolvencial das instituições de crédito (as entidades previstas nos artigos 2.º e 3.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF)) e das sociedades financeiras (as entidades previstas nos artigos 5.º e 6.º do RGICSF) encontra, actualmente, a sua previsão no Decreto-Lei n.º 199/2006, de 25 de Outubro, que procedeu à transposição para o ordenamento jurídico português da Directiva 2001/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Abril.

Nos termos do artigo 5.º do referido diploma, as instituições de crédito e as sociedades financeiras dissolvem-se apenas por força da revogação da respectiva autorização, nos termos do artigo 22.º do RGICSF, ou por deliberação dos sócios.

Ora, com relevância para o caso em apreço, são causas de revogação da respectiva autorização, a impossibilidade de a instituição honrar os seus compromissos, nomeadamente quanto à segurança dos fundos que lhe tiverem sido confiados e o incumprimento das obrigações decorrentes na participação no Fundo de Garantia de Depósitos, no Fundo de Resolução ou no Sistema de Indemnização aos Investidores (cfr. alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 22.º do RGICSF).

Sucede, porém, que, nos termos do disposto no artigo 23.º do RGICSF a legitimidade e a competência para a revogação da autorização pertencem exclusivamente ao Banco de Portugal55, pese embora a liquidação das instituições de crédito e das sociedades financeiras se processe de acordo com o CIRE.

Assim, a situação de insolvência das instituições de crédito e das sociedades financeiras é insusceptível de reconhecimento judicial, pelo que a respectiva insolvência dolosa não é punida.

No que respeita às empresas de investimento prestadoras de serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários, uma vez que lhes é aplicável o regime previsto no Decreto-Lei n.º 199/2006, de 25 de Outubro, por força do artigo 199.º-B do RGICSF, a respectiva situação de insolvência dolosa não é criminalmente punida.

Finalmente, no que respeita à insolvência dolosa dos Organismos de Investimento Colectivo, quer o anterior Decreto-Lei n.º 252/2003, de 17 de Outubro, nos seus artigos 19.º e 20.º, quer o actual Decreto-Lei n.º 63-A/2013, de 10 de Maio, nos seus artigos 23.º, 41.º e 42.º, assim 55 O que se compreende pelo severíssimo risco que seria para o sistema financeiro a possibilidade de qualquer credor requerer a declaração de insolvência de uma instituição de crédito ou de uma sociedade financeira.

como os respectivos Regulamentos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários n.º 15/2003, de 18 de Dezembro (artigos 97.º a 99.º), e n.º 5/2013, de 7 de Setembro, determinam que a respectiva situação de impotência económica é causa de revogação de autorização, cuja legitimidade e competência é exclusiva da autoridade de supervisão.

Uma última nota para dizer que a não punibilidade da insolvência dolosa das entidades acima referidas (com excepção das empresas de seguros) estende-se às pessoas singulares que pratiquem as condutas previstas no artigo 227.º, n.º 1, do Código Penal.