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Enquadramento jurídico do crime de exercício ilícito de segurança privada

Capítulo III − A investigação dos crimes da atividade de segurança privada

III. Considerações finais

4. Enquadramento jurídico do crime de exercício ilícito de segurança privada

4.1. Bem jurídico tutelado

Como supra mencionado, o tipo de crime de exercício ilícito de segurança privada sofreu alterações que merecem uma análise mais demorada, porquanto as mesmas têm, também, reflexos ao nível da actividade investigatória da prática deste ilícito.

O crime de exercício ilícito da segurança privada está agora previsto no artigo 57º, da Lei 34/2013, de 16/05, que agora prevê que:

“1 - Quem prestar serviços de segurança privada sem o necessário alvará, licença ou

autorização é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - Quem exercer funções de segurança privada não sendo titular de cartão profissional é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

3 - Quem exercer funções de segurança privada de especialidade prevista na presente lei e para a qual não se encontra habilitado é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 4 - Na mesma pena incorre quem utilizar os serviços da pessoa referida nos números anteriores, sabendo que a prestação de serviços de segurança se realiza sem o necessário alvará, licença ou autorização, ou que as funções de segurança privada não são exercidas por titular de cartão profissional ou da especialidade.”

Esta incriminação apresenta algumas semelhanças com o crime de usurpação de funções, previsto no artigo 358º, do Código Penal, designadamente no que se refere aos bens jurídicos defendidos.

Segundo Figueiredo Dias18, o bem jurídico pode ser definido como “a expressão de um

interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso judicialmente reconhecido como valioso.”

No que ao ilícito criminal ora em análise, entendemos, como Miguel Carmo19, que esta incriminação visa salvaguardar, também, a acreditação do pessoal e das empresas de segurança privada, atento o reconhecimento do seu interesse público. Protege, ou tenta proteger, “a intangibilidade do sistema oficial de provimento no exercício de profissão de

especial interesse público, protegendo também, e de forma mediata, outros bens jurídicos como sejam: a autonomia intencional do estado, a vida, a integridade física ou a segurança”.

Deste modo, a incriminação do exercício ilícito da actividade de segurança privada visa tutelar, na sua essência, o respeito por uma função de cariz marcadamente pública, cada vez mais relevante na protecção dos cidadãos e das empresas, e, também, aproveitamos para acrescentar, a confiança que os cidadãos depositaram no estado que os governa, enquanto entidade responsável pela tutela dos seus direitos fundamentais e a quem cederam uma parte da sua soberania decisória.

18 “Direito Penal, Parte Geral – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 108.

19 “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Vol. I, Univ. Católica Editora, p. 235, citando Cristina Líbano Monteiro (“Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo III, p. 431 e ss.), a respeito do crime de usurpação de funções – art. 358,º Código Penal.

4.2 Análise do tipo

4.2.1. Elemento objectivo

No que respeita aos elementos objectivos do tipo, importa, antes de mais, sublinhar, a título de questão prévia, a importância da técnica legislativa utilizada pelo legislador no esclarecimento de eventuais dúvidas que pudessem resultar na interpretação deste diploma, designadamente para imputação do crime ora em análise.

Efectivamente, como supra exposto, todas as actividades que possam estar incluídas no âmbito do exercício da segurança privada encontram-se taxativamente definidas neste diploma legal, contendo a descrição funcional das tarefas a desempenhar em cada uma das especialidades.

Deste modo, tendo em conta a forma como o tipo está descrito, resulta evidente que o elemento objectivo está preenchido logo que o agente exerça uma actividade prevista neste diploma sem que para tal esteja legalmente habilitado.

Difere, aqui, do crime de usurpação de funções, em que o tipo exige que o agente arrogue, de forma expressa ou tácita, a qualidade que diz ou demonstra deter, quando sabia que não correspondia à verdade.

Pelo contrário, aquele ilícito não exige, para a sua aplicação, a verificação ou ocorrência de um engano propriamente dito, mas apenas o simples exercício da actividade de segurança privada sem a necessária habilitação.

É, portanto, um crime de mera actividade, em que “o tipo incriminador se preenche através da

mera execução de um comportamento20” previsto no tipo21.

No que se refere ao tipo objectivo, o novo regime legal inovou, também, não apenas no que se refere a uma maior concretização dos anteriores destinatários da norma penal, como também a uma ampliação quanto àqueles que, no regime antes vigente, não estavam incluídos no âmbito de protecção da norma.

Começando pelos nºs 1 e 2 do artigo 57º, ambos correspondem, em grande medida, ao já previsto na legislação anterior, sendo notórias, contudo, algumas pequenas alterações: assim, quanto às entidades cujos legais representantes prestam serviços de segurança privada, cabem aqui não apenas as que não tenham o necessário alvará ou licença (as identificadas, respectivamente, nos artigos 14 e 15º), como, de resto, já sucedia no regime anterior, como

20 Figueiredo Dias, obra cit., p. 289.

21 No mesmo sentido, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/03/2010, proc. 98/09.6JACBR.C1 (disponível em www.dgsi.pt), esclarecendo, a respeito do ilícito ora em análise, que “o que aqui importa é saber se o arguido estava ou não habilitado a exercer a actividade de segurança privada, e já vimos que não estava. É pois quanto basta para preencher os elementos objectivos do referido crime.”.

também, e aqui reside a primeira inovação nesta incriminação, as que não disponham de autorização para tal exercício.

Deste modo, o sancionamento jurídico-criminal estende-se, também, aos representantes legais das entidades que prestem formação profissional do pessoal de segurança privada sem a respectiva autorização do membro do Governo responsável pela área da administração interna – cfr. artigo 16º, nº 1 -, bem como aquelas entidades que prestam serviços de consultoria no âmbito da segurança privada, nos termos previstos no artigo 16º, nº 2.

Por outro lado, o novo regime legal introduz uma alteração adicional no tipo objectivo, prevista no nº 3 do artigo 57º, de onde resulta que o exercício das actividades de especialidade previstas no artigo 17º, nº 3, cujas específicas funções estão exaustivamente descritas no artigo 18º, acarretam para o agente a prática do crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada.

Quanto ao teor da incriminação constante do nº 4 do novo diploma legal, esta essencialmente reproduz, com as devidas adaptações, o que já constava do regime legal anterior, logicamente com as necessárias adaptações decorrentes das inovações introduzidas pelo novo diploma no tipo do crime supra descrito. Mantem-se, assim, a qualificação como crime da conduta do legal representante da beneficiária dos serviços de segurança privada, quando consciente de que as entidades prestadoras não estão legalmente habilitadas para o exercício de tal actividade, nos casos previstos nos nºs 1 a 3 da mesma norma.

Uma importante alteração introduzida no tipo foi a alteração generalizada da medida da pena aplicável.

De facto, se, no âmbito do regime anterior, a prática deste crime era punível com uma pena de prisão até dois anos, actualmente a pena de prisão, no seu limite máximo, sobe para os cinco anos, no caso do nº 1 do artigo 57º, e para quatro anos, nos casos previstos nos nºs 2 a 4 desta norma.

Em consequência, a tentativa passa a ser punível, atenta a condição de punibilidade prevista no artigo 23º, nº 1, do Código Penal.

Tal alteração da medida da pena tem também efeitos relevantes também ao nível da investigação do crime, como infra iremos sinteticamente demonstrar22.

4.2.2. Elemento subjectivo. Comparticipação. Concurso de crimes.

Quanto ao elemento subjectivo, seguimos, de perto, a posição de Miguel Carmo23, no sentido de que o tipo é exclusivamente doloso, pelo que o agente terá necessariamente de “representar e querer todos e cada um dos elementos da factualidade típica”, sendo certo que 22 Vide p. 23 e ss. deste estudo.

23 Obra cit., p. 236, nota 18.

o presente regime não prevê, como determina o artigo 13º do Código Penal, a punibilidade do crime por negligência.

Deste modo, é perfeitamente plausível a eventualidade de o agente agir em situação de erro a que alude o artigo 16º, nº 2, do Código Penal, o que, necessariamente, terá como consequência a exclusão do dolo e, por conseguinte, a impossibilidade de o agente ser punido por este crime.

Quanto à comparticipação, não existe qualquer especialidade a registar, porquanto pode estar presente em qualquer uma das suas modalidades.

A respeito da eventualidade de concurso de crimes, importa, desde logo, referir, tendo também em consideração a semelhança quanto aos bens jurídico tutelados, que este crime encontra-se numa posição de concurso aparente com o crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358º do Código Penal, aplicando-se, aqui, a regra da especialidade, e, desta forma, o tipo previsto nesta lei especial.

No entanto, contrariamente ao defendido por Miguel Carmo24, entendemos que, em relação aos crimes de exercício ilícito de segurança privada e de falsificação e contrafacção de documentos, previsto no artigo 256º, do Código Penal, estes encontram-se em concurso real e efectivo, porquanto ambos protegem bens jurídicos diferentes.

Assim, enquanto o primeiro protege a intangibilidade do sistema oficial de provimento no exercício de profissão de especial interesse público, o segundo protege a fé pública dos documentos, da segurança e sua credibilidade no tráfico jurídico probatório.

Da mesma forma, existirá concurso real e efectivo entre o crime de exercício ilícito de segurança privada e os crimes de extorsão, previsto no artigo 223º, coacção, previsto no artigo 154º, ameaças, previsto no artigo 153º e ofensas à integridade física, previsto no artigo 143º, todos do Código Penal.

4.3. Da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.

Uma última referência ao disposto no artigo 58º, que prevê a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas25.

Mantém-se, no essencial, o que já se encontrava previsto no diploma anterior.

Neste ponto, importa apenas sublinhar que o legislador respondeu à dificuldade interpretativa da norma vigente no regime anterior, que incidia a responsabilidade das pessoas colectivas apenas às condutas previstas no anterior nº 1 do artigo 32º-A (actualmente, nºs 1 e 2 do artigo 24 Obra cit., p. 236, nota 22.

25 A responsabilidade penal das pessoas colectivas ocorre nos termos gerais, previstos nos artigos 10º, 11º, nº 1, als. a) a c), e nºs 4 a 11, e 12º, todos do Código Penal.

57º), excluindo a responsabilização das entidades previstas no nº 2 do aludido artigo 32º-A (actualmente, nº 4 do artigo 57º).

Agora, com a nova redacção do artigo 58º, a responsabilização das pessoas colectivas e equiparadas estende-se a todos os comportamentos tipificados no artigo 57º.

5. Da Fiscalização e Investigação do Crime de Exercício Ilícito da Actividade de