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Enquadramento jurídico da atividade de segurança privada

Capítulo I – Introdução ao tema

1. Enquadramento jurídico da atividade de segurança privada

1.1. Evolução legislativa

Ao longo das últimas décadas Portugal, tal como muitos outros Estados, sobretudo europeus, desinvestiu na área da segurança, quer externa, quer interna1. As forças militares, cuja atuação

em cenários de guerra praticamente se desvaneceu, salvo intervenções pontuais em alguns pontos do globo, vão sendo reduzidas. Também ao nível da segurança interna se assiste a um desinvestimento nos equipamentos e no número dos efetivos policiais.2 Por outro lado,

assiste-se a um aumento da pequena criminalidade e da criminalidade organizada e globalizada, o que conjugado com o que supra se referiu, permitiu o desenvolvimento da atividade de segurança por privados. A segurança privada foi reconhecida como uma atividade que, de forma subsidiária relativamente à desenvolvida pelas forças e pelos serviços de segurança3 e de proteção civil do Estado4, contribui para a prevenção da criminalidade. E,

nesse sentido, em 1986, foi publicada a primeira lei a regulamentar o exercício da atividade de segurança privada.5

O Decreto-Lei n.º 282/86, de 5 de Setembro surge na sequência da necessidade de adstringir a regras específicas as inúmeras sociedades e associações então existentes que se dedicavam à

prestação de serviços pessoais de segurança, de vigilância, de comercialização, de instalação e de assistência técnica de equipamentos técnicos em residências e estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços. O exercício da atividade passou a estar dependente de autorização do Ministro da Administração Interna, mediante a concessão de alvará, podendo ser exercido unicamente por empresas, singulares e coletivas, e enquanto sistema de autoproteção. A segurança privada incluía então a proteção de bens móveis e imóveis, a prestação de serviços de segurança pessoal, de transporte de fundos e de valores, a vigilância e o controle do acesso, da permanência e de circulação de pessoas em instalações, edifícios e

1 Nos termos do art.º 1.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, “a segurança interna é a atividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática.”

2 Em 2012, o Orçamento de Estado previu investimentos em matéria de segurança interna no valor de 89 milhões de euros e para 2014 prevê-se um investimento de 66.724.805€, o que corresponde a uma redução de 25,03%. No final do ano de 2012, no conjunto das duas forças de segurança (GNR e PSP), Portugal contava com 43.896 elementos policiais, quando em 2009 contava com 47.412 elementos. Em 2012 foram incorporados 549 novos guardas na GNR e nenhum na PSP e saíram do serviço ativo 1.313 elementos da GNR e 440 da PSP.

3 São forças e serviços de segurança a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Serviço de Informações de Segurança, os órgãos da Autoridade Marítima Nacional e os órgãos do Sistema da Autoridade Aeronáutica.

4 Nos termos do art.º 1.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, “a proteção civil é a atividade desenvolvida pelo Estado, Regiões Autónomas e autarquias locais, pelos cidadãos e por todas as entidades públicas e privadas com a finalidade de prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave ou catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger e socorrer as pessoas e bens em perigo quando aquelas situações ocorram.”

5 Não se considera o Decreto-Lei n.º 298/79, de 17 de agosto, que regulava apenas o regime específico de segurança das instituições de crédito e não a atividade de segurança privada em geral.

locais fechados ou vedados ao público em geral e a elaboração de estudos de segurança, o fabrico e a comercialização de material de segurança e respetivos equipamentos técnicos. A violação das obrigações impostas por este Decreto-Lei constituía contraordenação. O n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 282/86, que fixava uma incompatibilidade do exercício da atividade do pessoal de segurança privada em acumulação com o exercício de qualquer outra atividade remunerada por conta de outrem, foi julgado organicamente inconstitucional por violação do n.º 1, alínea b), do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa.6

O Tribunal Constitucional considerou que está no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República legislar de forma inovatória sobre restrições a direitos, liberdades e garantias e, como tal, o Governo não podia fixar aquela limitação por violar o direito fundamental de liberdade de escolha de profissão.

O Decreto-Lei n.º 282/86 viria a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 276/93, de 10 de agosto.7/8 Este decreto-lei viria a reconhecer a atividade de segurança privada como complementar da atividade das forças e dos serviços integrados no sistema de segurança pública na medida em que contribuía para a melhoria da segurança dos cidadãos em geral, embora mantendo o seu caráter subsidiário. As alterações mais relevantes introduzidas por este diploma foram:

i) O objeto da atividade foi alargado passando a incluir a instalação e a gestão de centrais de alarme e a formação de pessoal de vigilância;

ii) Foram fixadas condições mais exigentes para o exercício da atividade, designadamente, foram definidos requisitos cumulativos para os que asseguram a direção efetiva de uma empresa de segurança privada, para quem fizesse parte do seu conselho de administração, para os responsáveis e diretores em exercício dos serviços de autoproteção e todo o pessoal de apoio técnico ou de vigilância envolvidos nas atividades de segurança privada e foram definidos princípios básicos de seleção e recrutamento onde se incluíram a verificação das condições físicas e psíquicas dos candidatos a pessoal de vigilância;

iii) O alvará passou a ser concedido por um período de cinco anos, renovável por tempo igual; iv) Previu-se a obrigatoriedade de adoção de um sistema de segurança privada que incluísse 6 Acórdão n.º 188/92, de 21.05.1992, Processo n.º 284/90, relator Conselheiro Ribeiro Mendes, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.

7 Este decreto-lei foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 138/94, de 23 de maio, quanto ao requisito de cidadania

portuguesa para aqueles que fazem parte do conselho de administração das empresas de segurança privada, aos responsáveis e aos diretores em exercício dos serviços de autoproteção, e alargado aos cidadãos brasileiros e aos de qualquer Estado-membro da então Comunidade Europeia ou do Espaço Económico Europeu.

8 O Decreto-Lei n.º 276/93, de 10 de agosto, foi regulamentado pela Portaria n.º 1257/93, de 11 de dezembro, que fixou os pressupostos básicos que devem ser preenchidos no processo tendente à autorização administrativa para a prestação ou exercício da atividade de segurança privada, quanto ao tipo de dependências que devem ser apresentadas nas instalações onde é desenvolvida a atividade, a forma como se deve processar a vigilância com o recurso à utilização de meios vídeo instalados em imóveis, os moldes requeridos para a instrução do processo de aprovação do modelo de uniforme a ser usado pelo pessoal de vigilância, a forma como se deve processar o registo da atividade de segurança privada e o tipo de modelo de alvará e taxas a serem cobradas pela emissão.

meios eletrónicos de vigilância das instalações e dos edifícios das entidades bancárias e parabancárias. Este decreto-lei criou o Conselho de Segurança Privada com a missão de contribuir para que a atividade de segurança privada seja exercida em respeito pelos princípios e pelas regras definidos na lei e com respeito pelos direitos dos cidadãos e pelas liberdades e garantias consagradas na lei fundamental. As condutas violadoras do cumprimento das obrigações impostas ao exercício da atividade mantiveram-se como contraordenações.

Novo regime jurídico foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de julho, revogando o anterior fixando no Decreto-Lei n.º 276/93, de 10 de agosto. Tratou-se de um diploma legal que veio incluir no objeto da atividade das empresas de segurança privada a prestação de serviços de acompanhamento, defesa e proteção de pessoas, o que até então apenas era permitido às forças e aos serviços integrados no sistema de segurança pública. Em sentido inverso, deixou de ser exclusivo destas empresas a elaboração de estudos de segurança, o fabrico e a comercialização de material e equipamentos de segurança e a formação de pessoal de vigilância, por serem consideradas atividades meramente instrumentais. A obrigatoriedade de adoção de um sistema de segurança privada que incluísse meios eletrónicos de vigilância das instalações e edifícios foi alargada ao Banco de Portugal e a todas as instituições de crédito e sociedades financeiras, públicas e privadas. Os estabelecimentos de restauração e de bebidas, onde se incluem os bares, as discotecas e as boîtes com salas ou espaços destinados a dança, foram obrigados a dispor de igual sistema de segurança privada para vigilância e controlo da entrada, da saída e da permanência de pessoas, bem como para a prevenção da entrada de armas, substâncias, engenhos e objetos de uso e porte legalmente proibidos no espaço físico onde é exercida a atividade.9

Detalhou-se com maior rigor as condições de acesso à atividade de segurança privada, nomeadamente, em matéria de requisitos dos responsáveis das empresas que desenvolvessem a atividade de segurança privada e do pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e proteção de pessoas. Em matéria de títulos que permitiam o exercício da atividade, manteve-se a necessidade do alvará para a prestação de serviços de proteção de pessoas e bens (eliminando-se o período de validade) e criou-se a licença enquanto título para o exercício da atividade de organização de serviços de autoproteção com vista à proteção de pessoas e bens. As condutas violadoras do cumprimento das obrigações impostas ao exercício da atividade mantiveram-se como contraordenações.

Em 2002, procedeu-se a uma alteração do regime jurídico em vigor, através do Decreto-Lei n.º 94/2002, de 12 de abril, de modo a enquadrar a atividade às especificidades do Campeonato Europeu de Futebol de 2004, prevendo-se a possibilidade de a realização de espetáculos em recintos desportivos depender do cumprimento da obrigação de adoção de um sistema de segurança privada, dos vigilantes que exercessem funções de assistentes de recinto desportivo terem de ter formação inicial obrigatória e de usarem sobrevestes que os identificassem e 9 Esta matéria foi regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 263/2001, de 28 de setembro, concretizando as condições objetivas em que os estabelecimentos de restauração e de bebidas eram obrigados a dispor de um sistema de segurança privada, bem como os meios, humanos e técnicos, considerados indispensáveis ao normal funcionamento. Este Decreto-lei viria a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 101/2008, de 1 de junho, atualizando o regime do regime jurídico dos sistemas de segurança privada dos estabelecimentos de restauração e de bebidas às alterações legislativas entretanto ocorridas.

procedeu-se, ainda, à conversão do montante das coimas para euros. Também este decreto-lei foi apreciado pelo Tribunal Constitucional tendo julgado inconstitucional os seus art.º 7.º n.º 1 (quanto a todas as suas alíneas) e n.º 2 e art.º 12.º, por, em ambos os casos, se tratar de matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e, como tal, sofriam de inconstitucionalidade orgânica.10

Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro (11), na sequência da autorização legislativa da Assembleia da República, conferida pela Lei n.º 29/2003, de 22 de agosto. A alteração mais significativa, para além da eliminação das inconstitucionalidades apontadas ao decreto-lei anterior, foi a especificação das funções do pessoal de vigilância, consagrando-se, pela primeira vez, a faculdade de poderem efetuar revistas de prevenção e de segurança no controlo de acessos a recintos desportivos, a instalações aeroportuárias e a outros locais de acesso vedado ou condicionado ao público, com o único objetivo de impedir a entrada de objetos e de substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar atos de violência. E, ainda, prevê-se a possibilidade de as empresas poderem ser obrigadas a dispor de um diretor de segurança e de sujeitar o pessoal de vigilância a formação específica, remetendo-se a regulamentação para legislação complementar. Continuam a existir apenas contraordenações sendo estas qualificadas como graves e muito graves.

Este decreto-lei viria a ser alterado pelo Decreto-Lei n.º 198/2005, de 10 de novembro − clarificou as condições de emissão do cartão profissional e a natureza das entidades que exercem a segurança privada, quanto a nacionais de outros Estados-membros da União Europeia e a entidades estabelecidas em qualquer desses Estados −, pela Lei n.º 38/2008 de 8 de agosto – especificou, designadamente, o modo de exercício da faculdade de efetuar revistas de prevenção e de segurança, criou o dever das entidades fornecerem aos seus vigilantes coletes de proteção balística sempre que o risco das atividades a desenvolver o justificasse, e criminalizou o exercício da atividade de segurança privada para quem a exercesse sem o necessário alvará ou licença, exercesse as funções de vigilância sem ser titular de cartão profissional ou recorresse aos serviços de segurança sabendo que os contratados não dispunham da respetiva licença, alvará ou cartão profissional -, pelo Decreto-Lei n.º 135/2010, de 27 de dezembro – reintroduziu o período de validade de cinco anos para os alvarás e as licenças e a obrigatoriedade do averbamento das alterações dos corpos gerentes -, e pelo Decreto-Lei n.º 114/2011, de 30 de novembro – que alterou a entidade competente para a emissão dos alvarás e licenças e respetivos averbamentos.

Por fim, a lei atualmente em vigor: Lei n.º 34/2013, de 16 de maio. Vejamos o seu regime.

10 Acórdão n.º 255/02, de 12.06.2002, Processos n.º 646/96 e n.º 624/99, relator Conselheiro Guilherme da Fonseca, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.

11 Foi regulamentado pela Portaria n.º 734/2004, de 28 de junho, e pela Portaria n.º 786/2004, de 9 de julho.