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OS CRIMES FALIMENTARES: INSOLVÊNCIA DOLOSA ENQUADRAMENTO JURÍDICO, PRÁTICA E GESTÃO PROCESSUAL

2.3. Diligências investigatórias

Neste ponto iremos atentar, de entre as condutas típicas do artigo 227.º, n.º 1, do C.P., aquelas mais comuns, e os actos em que se materializam e, paralelamente as concretas diligências e questões práticas que se suscitam em torno delas.

Mas previamente iremos fazer uma referência às diligências de prova essenciais, comuns a todos os comportamentos típicos que irão ser abordados.

Quanto à prova testemunhal revela-se essencial a inquirição do administrador de insolvência e do técnico ou revisor oficial de contas, diligência que nos parece deverá preceder as demais, já que as suas explicações técnicas poderão não só ilustrar o funcionamento da empresa, como fornecer pistas para melhor dirigir e delinear a estratégia de investigação. Acresce que o conteúdo dessas inquirições poderá revelar-se de grande utilidade, na medida em que poderá tornar dispensável a realização de perícias contabilísticas numa fase posterior do inquérito. Contudo, no caso particular dos técnicos ou revisores oficiais e contas, importa salientar que o conteúdo das suas declarações terá de ser valorado com as necessárias cautelas caso, em face dos elementos existentes nos autos, não seja possível desde logo excluir o seu eventual comprometimento com os factos a investigar.

Outras inquirições relevantes são as dos trabalhadores da insolvente, em particular os funcionários que trabalham na área financeira e administrativa, que poderão fornecer

informações importantes relativamente a instruções que tenham recebido dos sócios para a prática daquelas condutas típicas do artigo 227.º, n.º 1, do C.P..

Pode também revestir-se de utilidade a inquirição de clientes e fornecedores para se aferir de entradas e de saídas de dinheiro.

No que concerne à prova documental, é desde logo essencial a junção aos autos da certidão do registo comercial da sociedade ou das sociedades envolvidas nos factos a investigar, bem como da sentença (com nota de trânsito em julgado).

O relatório do administrador de insolvência a que se refere o artigo 155.º do C.I.R.E. pode igualmente ser relevante, uma vez que o mesmo, analisado em conjugação com as diligências encetadas pelo administrador com vista à sua elaboração, poderá fornecer dados quanto às condutas dos agentes do crime. Neste conspecto será também importante atentar nos autos de arrolamento e do balanço respeitantes aos bens apreendidos pelo administrador de insolvência (cf. artigo 151.º, do CIRE).

Deverão ainda instruir os autos, os registos contabilísticos disponíveis no próprio processo de insolvência ou em poder do técnico ou revisor oficial de contas e as declarações fiscais reportadas aos períodos em investigação, bem como do ano de exercício em que ocorreu a insolvência, e os documentos de prestação de contas entregues pelas empresas nas Conservatórias do Registo Comercial.

Quanto à prova pericial, quando se venha a concluir que não pode ser dispensada a realização de perícia, a mesma pode ser solicitada ao Núcleo de Assessoria Técnica (N.A.T.) da Procuradoria-Geral da República.14

De acordo com a Circular n.º 4/99, de 28/05 da PGR, a solicitação de intervenção do N.A.T. deve ser feita “Nos casos em que exista fundada suspeita da prática de crime, devendo os pedidos de intervenção ser acompanhados, pelo menos, das declarações fiscais integrais dos três anos anteriores e do exercício em que ocorreu a falência; dos documentos de prestação de contas entregues pelas empresas nas Conservatórias do Registo Comercial, relativos aos anos antes referidos e da indicação do técnico oficial de contas responsável pela escrita e do revisor oficial de contas (caso seja aplicável).”.

A P.J. dispõe também de uma Unidade de Perícia Financeira e Contabilística que poderá realizar aquelas perícias, devendo os respetivos pedidos ser acompanhados dos mesmos elementos acima referidos.

Sobre esta matéria convém lembrar a necessidade de formulação quesitos específicos, designadamente, não deverão ser efectuados quesitos de carácter genérico, como “averiguar 14 Nos termos do artigo 9.º, n.º2, do Estatuto do Ministério Público, o N.A.T. encontra-se na dependência da Procuradoria- Geral da República; foi criado pela Lei n.º 1/97, de 16/01, e destina-se a assegurar a assessoria e consultadoria técnica ao Ministério Público em matéria económica, financeira, bancária, contabilística e de mercado de valores mobiliários e goza de autonomia técnico-científica (artigo 1.º da referida Lei). Note-se, no entanto, que actualmente o N.A.T. dispõe de escassos meios, pelo que a sua capacidade de resposta poderá não ser a mais adequada.

qual a causa da insolvência” ou “averiguar da prática do crime de insolvência.” Aliás o artigo 154.º do C.P.P., na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 20/2013, de 21/02, exige que no despacho em que ordena a perícia, o Magistrado indique o objecto da mesma e os quesitos a que os peritos devem responder. Concretamente, deverá o Magistrado cingir-se aos comportamentos típico que se mostram já indiciados nos autos e formular os quesitos em conformidade.

2.3.1. As condutas típicas da alínea a) do artigo 227.º do C.P.

Pune esta norma o devedor que, com intenção de prejudicar os credores “Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património.”.

Pela sua frequência destacamos aqui o último segmento da norma, o acto de “Fazer desaparecer o património”. Habitualmente traduz-se na transferência de imobilizado (imóveis e móveis), trabalhadores e carteira de clientes para outra sociedade com o mesmo objecto social da primeira, cujo s sócios são os mesmos da primeira (geralmente familiares), sem que o valor correspondente a essa transferência seja integrado no património da sociedade anterior. Em primeiro lugar há que aferir se a transferência de imobilizado foi efectivamente concretizada e em que termos, pois esse acto pode nada ter que ver com a intenção de causar prejuízos aos credores e visar a insolvência. A fim de deslindar o real motivo de tal conduta há que analisar as fichas de imobilizado de ambas as sociedades (acessíveis através dos técnicos oficias de contas).

Tendo-se verificado a transferência, há que analisar extractos bancários de ambas as sociedades, com referência às datas em causa, no sentido de se perceber se a primeira sociedade recebeu qualquer contrapartida financeira por aquela operação.

Para este efeito deverá o magistrado do Ministério Público invocar o artigo 79.º, n.º 2, al. d), do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, (com a redacção dada pela Lei n.º 36/2010, de 02/09), que permite a revelação de factos e de elementos cobertos pelo segredo bancário, a solicitação do Ministério Público.

Em fase ulterior, em sede de interrogatório, por exemplo, pode o arguido alegar, designadamente, que as verbas da transferência foram utilizadas para pagar dívidas da sociedade a fornecedores, trabalhadores com salários em atraso ou encargos para com o Estado. Neste caso, no sentido de aferir da veracidade desta alegação, há que analisar a contabilidade, inquirir os fornecedores da sociedade e seguir o rasto do dinheiro.

No caso de a segunda sociedade ser de direito estrangeiro (sociedade offshore) é importante apreender documentação que comprove que o sócio da insolvente é também sócio daquela sociedade. Para o efeito, é imprescindível solicitar ao Banco de Portugal que informe se a sociedade offshore é titular de contas abertas em Portugal e, na afirmativa, verificar desde logo quais são as pessoas autorizadas a movimentá-las, analisar os extratos bancários e

indagar qual a proveniência e destino do dinheiro e, por essa via, aferir se o titular da conta de origem e de destino se reúnem na mesma pessoa.

Esses documentos podem encontrar-se em escritórios de consultoria pelo que pode justificar- se a realização de buscas, sendo que, neste caso, poderá estender-se a punibilidade aos consultores, nos termos do n.º 2 do 227.º do C.P..

2.3.2. As condutas típicas da alínea b) do artigo 227.º do C.P.

Prevê esta alínea a diminuição fictícia do activo (rectius património líquido), através da dissimulação de coisas, invocação de dívidas supostas, reconhecimento de créditos fictícios, incitação de terceiros a apresentá-los, ou da simulação, por qualquer outra forma, de uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida.

No que se refere à diminuição do património líquido, verifica-se com frequência que se consubstancia na prática na constituição fictícia de suprimentos dos sócios.

Nestes casos importará analisar a contabilidade da sociedade e os elementos bancários e verificar se os suprimentos à sociedade foram ou não efectivamente realizados.

Outra hipótese será o desvio de quantias que se destinavam a integrar o património da sociedade. Por exemplo, o cliente da sociedade paga, mas o sócio desvia essa verba para outros fins. Também neste caso o sócio pode justificar a não entrada do dinheiro na sociedade, alegando que o usou para pagar dívidas desta. Importo por isso indagar da veracidade desta explicação, como já referido supra. A título exemplificativo, perante a alegação de que o valor pago destinou-se a liquidar salários em atraso, será essencial inquirir os trabalhadores (entre os quais aqueles funcionários administrativos que têm a seu cargo o processamento dos salários) e averiguar da existência de elementos contabilísticos e bancários que reflictam essa realidade.

2.3.3. As condutas típicas da alínea c) do artigo 227.º do C.P.

Aqui prevê-se a criação ou agravamento artificial de prejuízos ou redução de lucros.

Esta conduta pode traduzir-se, designadamente, na compra de matéria-prima a preços superiores aos de mercado ou produzida por uma outra sociedade cujos sócios são os mesmos, levantamento de suprimentos, e na realização de empréstimos sem cobrança de juros a outras sociedades que têm os mesmos sócios.

Nestas situações, após junção das respectivas certidões de registo comercial e audição dos técnicos oficiais de contas ou revisores oficiais de contas, para além da análise cruzada das contabilidades das empresas, bem como dos extratos bancários das contas de ambas as

sociedades, importará inquirir trabalhadores que eventualmente tenham transitado da sociedade insolvente.