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Capítulo III − A investigação dos crimes da atividade de segurança privada

III. Considerações finais IV Referências bibliográficas V Vídeo.

1.1. Para uma compreensão do tema

Na vida social dos povos preponderou o sistema da justiça privada, em que o titular do direito, recorrendo à força, procurava, por si só ou com o auxílio de outrem, assegurar a realização dos interesses que a comunidade, em seu entender, reconhecia como legítimos e reagir contra a violação ou a simples ameaça dos seus direitos, através da acção directa ou autodefesa. Porém, face às vicissitudes reconhecidas da ausência de legitimidade e de este modelo possibilitar lesões injustificadas ou excessivas aos direitos fundamentais dos cidadãos, o Estado reservou para si o monopólio do uso da força legítima ao firmar que, “A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei” (artigo 1.º, do Código de Processo Civil).

Contudo, ao reconhecerem-se direitos inerentes ao homem é imprescindível garantir o seu exercício e realização, sob pena da sua anulação. A segurança é, assim, a garantia dos direitos de todas as pessoas contra as agressões dos outros e, consequentemente, o pilar básico da sociedade.

Porém, a segurança limita a liberdade, pois, perante a coexistência de direitos, a garantia destes não pode ser ilimitada, e, ao invés, tal é essencial para garantia e condição do seu exercício. Do que resulta que a liberdade está, assim, intimamente interligada com a segurança. E, ao reconhecer-se tal interdependência, afigura-se como tarefa essencial garantir o equilíbrio entre ambas, pois não pode haver um excesso de liberdade que anule a segurança, nem um excesso de segurança que restrinja em demasia a liberdade. Daí que se reconheça simultaneamente o direito à liberdade e à segurança seja no artigo 3.º, da Declaração Universal dos Direito do Homem, no artigo 5.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 6.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ou no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP.

A realização do direito à segurança passou a ser condição e tarefa exclusiva do Estado e a fazer parte do interesse público primário, para além da justiça e do bem-estar. E a sua concretização dividiu-se entre a reserva do direito de acção aos tribunais − órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigo 202.º, n.os 1 e 2, da CRP) − e a função da polícia de defender da legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos (artigo 272.º, n.º 1, da CRP)1.

Contudo, a evolução do modelo de Estado, que desembocou no Estado Social, em que há uma responsabilidade administrativa máxima, quer de prestação, quer de controlo, gerou a consequente incapacidade de resposta deste, devido aos custos, à complexidade que a actividade de segurança comporta e às inúmeras solicitações das forças de segurança. Ao mesmo tempo, a actividade hiperbolizou-se, para além do que até então foi considerado ameaça do Estado e da mera ausência de violência ou conflito, ao pretender abranger todos os direitos individuais e riscos humanos2.

Por conseguinte, novos movimentos conduziram a um novo modelo, ainda não consolidado na doutrina, mas expresso em termos como Estado orientador, Estado mínimo regulador ou Estado garantia. Um destes movimentos foi a privatização da actividade da Administração Pública, ou seja, o uso misto do direito público e do direito privado. Quanto à segurança, o Estado transferiu para os particulares o dever de assumir esta responsabilidade pública e

1 A polícia é uma das funções da Administração Pública, que visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (artigo 266.º, n.º 1, da CRP) e as forças de segurança − G.N.R. e P.S.P. − estão tradicionalmente integradas no Ministério da Administração Interna. A segurança traduz-se ainda na defesa nacional quando visa proteger a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas (artigo 273.º, da CRP).

2 O conceito de segurança humana surge com o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, no seu relatório anual de 1994, e pretende proteger todas as ameaças críticas e promover a capacitação individual de cada ser humano para dirigir o seu próprio destino. Complementa a segurança do Estado e centra-se nas pessoas.

apelou à sua participação na gestão da actividade, através da colaboração, havendo assim uma privatização funcional de responsabilidades3.

No entanto, essa “delegação” de funções está limitada e condicionada a priori, pois não pode permitir retomar os vícios que justificaram a exclusividade estadual e tem de ser adequada a um modelo de gestão privada, que visa o lucro e está sujeito às leis da oferta e da procura. Não se pode permitir que os particulares exerçam poderes públicos de autoridade, nem poderes constitucionalmente atribuídos a determinados órgãos, nem que seja violado o monopólio estadual da força legítima.

Para tal, o Estado assegurou que os poderes públicos permitidos são excepcionais, enumerados, não são exercidos por qualquer pessoa, têm previsão legal expressa e a garantia de um regime público adequado. E assim, a segurança privada, primeiramente autodefesa e subsistente em meios como a legítima defesa, expandiu-se, para além do espaço inicialmente ocupado e resultante da incapacidade do Estado, quando chegou a Portugal na década de 60, com a primeira empresa de segurança privada em 1965, estabelecendo-se o mercado desde aí, até ser regulado pelo legislador.

O Estado permitiu que a actividade de segurança privada compreendesse apenas a protecção de pessoas e bens, a prevenção de crimes e a formação necessária para exercer tais funções. E, consequentemente limitou os direitos liberdades e garantias e direitos fundamentais de todos os cidadãos, somente no estrito cumprimento das limitações constitucionais, mormente do artigo 18.º, da CRP4, cedendo prerrogativas públicas na actividade de segurança privada como impedir o acesso a locais de acesso vedado ou condicionado ao público ou realizar revistas de prevenção e segurança. Por outro lado, acresceu a sua responsabilidade de regular, controlar e fiscalizar a actividade.

Actualmente a segurança é complexa, com uma permanente necessidade de adaptação às constantes mutações sociais e exige um conhecimento especializado. O revés da segurança é a suaausência, ou seja, a insegurança. Esta provoca medo, inquietação, perturbação, ansiedade e perigo e advém da violência, da criminalidade − que atinge as pessoas na sua vertente mais íntima e profunda − na falta de pertença à comunidade, num défice de cidadania, na globalização ou na fragmentação política. A insegurança é em grande parte subjectiva e radica tanto na percepção dos cidadãos da realidade envolvente como na mediatização da criminalidade pelos órgãos da comunicação social.

Concorreram ainda para o desenvolvimento e expansão da actividade − que cresceu quer no número de empresas e volume de negócios, quer na diversificação de tarefas − as mudanças 3 A privatização pode ainda ser substancial quando uma tarefa do Estado passa a ser totalmente privada, ou formal, quando as tarefas continuam públicas, porém, são geridas por entes públicos segundo o direito privado.

4 Veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 255/02, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas que estabeleciam os requisitos para o exercício da actividade de segurança privada e os meios de vigilância electrónica, de detecção de armas e outros objectos, constantes do Decreto- Lei nº 231/98, de 22.07, em virtude de se reportarem a direitos, liberdades e garantias da reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP).

na utilização do espaço urbano e circulação de pessoas, decorrente da proliferação de grandes superfícies comerciais, áreas residenciais e condomínios, bem como a exploração dos transportes públicos por privados, a especialização e novas formas de criminalidade e também alguma pressão por parte das companhias de seguros.

As vantagens do exercício privado da actividade são a proximidade, a flexibilidade, a discrição, a adaptabilidade e a rapidez. Também potencia uma redução nos custos do Estado e uma melhor gestão dos recursos de que este dispõe. Por outro lado, o perigo que tal exercício comporta decorre de serem concedidas prerrogativas que contendem directamente com os direitos, liberdades, garantias e direitos fundamentais, e traduzem-se em não serem garantidos ou serem lesados esses direitos ou ser afectado o monopólio Estadual do uso da força, através do exercício de funções que lhe estão vedadas.